Comentário do blog: a reprodução deste conto de Tolstói tem objetivos apenas didáticos, porque fez parte do conteúdo de uma matéria que estudamos na Faculdade de Letras da USP.
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Breve comentário
O que faz uma obra literária perdurar ao longo do tempo como algo que mereça ser lido nos tempos futuros?
Algumas possibilidades: suas qualidades técnicas em termos de composição; sua importância para o momento histórico vivido; uma quantidade grande de sorte ou acasos para que não se perca em guerras, expurgos, cataclismos etc.
Algumas obras literárias são pequenas preciosidades. Jóias raras.
Cito como exemplo, o conto Kolstomer, de Tolstói. Com alguns excertos é possível apreciar a grandeza da técnica, do tema, e do momento histórico (século XIX).
Grandes obras são atemporais. Imagino o mesmo personagem hoje – século XXI – com as mesmas reflexões.
Alguns trechos do capítulo seis falam por si sós da grandeza do conto.
“Já antes eu tivera certa tendência para a seriedade e a meditação, mas então sofri uma transformação definitiva. Meu pelo, que despertara desprezo tão estranho entre as pessoas, minha desgraça inesperada e, além disso, minha situação especial na cavalhada, que pressentia, mas que não conseguia explicar a mim mesmo, obrigaram-me a concentrar-me ainda mais dentro de meu íntimo. Refleti sobre a injustiça dos homens, que me censuravam por causa da cor da pele; sobre a inconstância do amor materno e, em geral, do amor feminino, que dependia de certas circunstâncias físicas. Principalmente, meditei sobre as particularidades daquele estranho animal a que chamam gênero humano e a que estamos tão estreitamente ligados...”
Vejam, estamos lendo as percepções de um cavalo a respeito de sua vida, a respeito do ser com quem interage – estranho animal humano – e, sobretudo, lendo sobre o teor dos problemas enfrentados por ele de preconceito por sua cor de pele e de outras condições sociais, que ele comenta também ao longo do conto, como origem e jeito de ser.
O melhor das reflexões do cavalo vem quando ele começa a descrever sobre a peculiaridade humana da “propriedade”, de nominar as coisas como posses: seu, meu, sua e minha... É FANTÁSTICO!
“Compreendi muito bem o que dizia a respeito dos açoites e do cristianismo. Mas ficou completamente obscura para mim a palavra SEU, pela qual pude deduzir que estabeleciam um vínculo a ligar-me ao chefe das cavalariças. Então, não pude compreender de modo algum em que consistiria tal vínculo. Só muito depois, quando me separaram dos demais cavalos, é que expliquei a mim mesmo o que aquilo representava. Naquela época, eu não era capaz de entender a significação do fato de ser EU propriedade de um homem. As palavras MEU CAVALO, referindo-se a mim, a um cavalo vivo, pareciam-me tão estranhas como as palavras MINHA TERRA, MEU AR, MINHA ÁGUA.”
Depois de um tempo, o cavalo entende e explica a si mesmo o que significavam aqueles conceitos:
“Querem dizer o seguinte: os homens não dirigem a vida com fatos, mas com palavras. Não os preocupa tanto a possibilidade de fazer ou deixar de fazer alguma coisa, como a de falar de objetos diferentes mediante palavras convencionadas. Essas palavras, que consideram muito importantes, são, sobretudo, MEU ou MINHA, TEU ou TUA. Aplicam-nas a todas as espécies de coisas e de seres, inclusive à terra, aos seus semelhantes e aos cavalos.”
Agora vêm as conclusões hilárias sobre o quão ridículos somos sobre esses tais direitos de posse e propriedade que arrotamos em relação às pessoas e coisas.
“... convenci-me de que o conceito de MEU – e não só com relação a nós, cavalos – não tem qualquer outro fundamento além de um baixo instinto animal, que os homens chamam sentimento ou direito de propriedade. O homem diz MINHA CASA, mas nunca vive nela; preocupa-se só em construí-la e mantê-la (...) Há pessoas que chamam SUA uma extensão de terra e nunca a viram nem passaram por ela (...) Há homens que chamam de suas certas mulheres, e estas convivem com outros homens. As pessoas não procuram, em sua vida, fazer o que consideram o bem, e sim a maneira de poder dizer do maior número possível de coisas: É MEU...”
Depois de observações tão sábias por parte de nosso personagem cavalo, a conclusão a que ele chega sobre nós, humanos, e eles, cavalos, é LÓGICA, e diria até RACIONAL:
“...só por este fato podemos dizer, com segurança, que, entre os seres vivos, nos encontramos em nível mais alto que o dos homens. A atividade dos homens, pelo menos a dos homens com quem tenho tratado, se traduz em palavras, ao passo que a nossa se manifesta em fatos.”
Nossa! Lembrei-me daquele refrão "Cazuziano" que tanto gosto de usar “suas ideias não correspondem aos fatos”.
MAS, como queremos ser otimistas, vamos dizer que não podemos generalizar toda a raça animal humana, pois como o próprio cavalo referiu suas conclusões aos homens com quem tem tratado, acreditamos que existem SIM seres humanos que buscam MAIS FATOS QUE SIMPLES PALAVRAS.
William
Bibliografia:
TOLSTOI, Leão. Obra Completa, Volume III. Nova Aguilar, 2004.
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(o texto abaixo está incompleto, ele vai até o capítulo VIII, quarta-noite. Não consegui terminar a digitação. Pela edição que tenho do texto, faltaram dez páginas, um terço do conto)
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(Dedicado à memória de M. A. Stakovitch)
CAPÍTULO PRIMEIRO
A abóbada celeste se alteava, a aurora se estendia, o orvalho de um prateado fosco se tornava mais branco, a lua minguante ia perdendo vida e o bosque adquiria sonoridades. A gente já se levantava e, no estábulo da casa senhorial, começavam a ouvir-se, cada vez mais frequentes, os bufidos, os rumores de palha remexida e até mesmo os relinchos, irritados e friorentos, dos cavalos que, reunidos, pareciam brigar por causa de alguma coisa.
- Olá! Está quase na hora! Estão com fome? - exclamou o velho cavalariço, abrindo as portas rangentes do estábulo. - Aonde vais? - gritou, ameaçando uma égua que se havia adiantado.
O cavalariço Nester, com um casaco apertado por uma correia, levava o chicote ao ombro e o pão, enrolado numa toalha, enfiado na cintura. Nas mãos tinha uma sela e um freio.
Os cavalos não se assustaram em absoluto nem os ofendeu o tom zombeteiro. Mostraram-se indiferentes e afastaram-se da porta sem pressa. Só uma velha égua baia, obscura e de grandes crinas, baixou as orelhas e virou-se de costas, rapidamente. Então, uma potranca, que estava mais distante e nada tinha a ver com o assunto, relinchou e empurrou sua vizinha.
- Eh! - tornou a gritar o cavalariço em tom mais alto e mais ameaçador do que antes, dirigindo-se ao fundo do estábulo.
De todos os cavalos que ali se encontravam (havia cerca de uma centena), o que mostrava menos impaciência era um cavalo mosqueado, que permanecia solitário a um canto, com os olhos caídos, lambendo um tronco de carvalho. Não se sabe que gosto achava nele, mas, enquanto o fazia, sua expressão era séria e pensativa.
- Basta de mimos! - exclamou o cavalariço, no mesmo tom de antes, e aproximou-se dele, deixando sobre um monte de esterco a sela e uma manta suja.
O cavalo mosqueado deixou de lamber o tronco e, ficando imóvel, fitou Nester por longo tempo. Não se riu, nem se aborreceu, nem sequer franziu a testa; limitou-se a suspirar profundamente e a virar a cabeça. O cavalariço rodeou-lhe o pescoço com os braços e pôs-lhe o freio.
- Por que suspirar? - perguntou.
O cavalo agitou a cauda, como se dissesse: "Não é por coisa alguma, Nester". O cavalariço cobriu-lhe o lombo com a manta e colocou a sela. O cavalo baixou as orelhas, expressando, ao que parece, seu descontentamento, e por isso Nester chamou-o de inútil e apertou-lhe a cilha. Então, o cavalo se inflou, mas o cavalariço enfiou-lhe um dedo na boca e bateu-lhe com o joelho no ventre, de modo que o animal se viu obrigado a expirar o ar. Apesar disso, baixou as orelhas e até virou a cabeça enquanto o homem lhe colocava a rédea. Bem sabia que isso não lhe serviria de nada, mas achava necessário manifestar que aquilo lhe era desagradável e que sempre o demonstraria. Quando ficou selado, adiantou a pata esquerda e começou a mascar o freio, não se sabe por que motivo, pois já era tempo de que soubesse que um freio não pode ter sabor algum.
Nester montou, com ajuda do estribo curto, desenrolou o chicote, libertou as abas do casaco, sentou-se na sela com esse estilo próprio dos cocheiros, caçadores e cavalariços e sacudiu as rédeas. O cavalo ergueu a cabeça, demostrando que estava disposto a ir onde lhe ordenassem, mas não se moveu do lugar. Sabia que Nester, antes de sair montado nele, teria de dizer muitas coisas, aos gritos, como, por exemplo, dar ordens a outro cavalariço, Vaska, e aos cavalos. De fato, Nester começou a gritar:
- Vaska, Vaska! Soltaste os cavalos? Que fazes, estúpido? Eh! Estás dormindo? Abre, para que as éguas saiam primeiro.
Rangeram as portas e Vaska, semi-adormecido, mal-humorado e segurando um cavalo pelas rédeas, afastou-se para um lado a fim de deixar os animais passarem. Começaram a desfilar, pisando a palha com cuidado e cheirando-a, éguas jovens, potros de crinas cortadas, potrinhos de mama e éguas grávidas, que atravessavam as portas passando as barrigas com precaução. As potras se juntavam de duas em duas e até de três em três, pondo a cabeça sobre o lombo das companheiras e apressando-se em sair, com o que de cada vez recebiam invectivas dos cavalariços. Os de mama às vezes se enfiavam entre as patas das mães de outros e relinchavam sonoramente respondendo à chamada das suas.
Uma potra muito travessa, mal se viu fora, virou a cabeça e pôs-se a dar coices e a relinchar; no entanto, não se atreveu a passar à frente da velha égua cinzenta Kuldiba, que, como sempre, ia à frente da eguada com expressão grave, andar pesado e balançando a barriga. Em poucos minutos, o estábulo, tão animado até pouco antes, ficou triste e vazio; erguiam-se melancólicos os postes do telheiro e só se via a palha pisoteada e revolvida de esterco. Por muito acostumado que estivesse a esse espetáculo, o cavalo mosqueado sentiu uma impressão penosa. Como se fizesse uma saudação, inclinou e levantou de leve a cabeça, suspirou até onde o permitia a cilha que lhe cingia o ventre e, movendo as patas intumescidas, seguiu atrás da égua, levando ao lombo ossudo o velho Nester.
"Sei que, quando sairmos pelo caminho, ele fará fogo e acenderá seu cachimbo de pau com enfeites de cobre, que traz preso a uma corrente" - pensou o cavalo. - "Isto me alegra, porque, de manhã cedo, quando ainda há orvalho, esse cheiro me agrada e me recorda muitas coisas gratas; só o que me incomoda é que o velho, quando está de cachimbo entre os dentes, fica fanfarrão, imagina que é personagem importante e sempre se senta de lado, machucando-me. Mas, tanto faz! Não é novidade, para mim, sofrer a fim de satisfazer o prazer dos outros. Que o pobre faça castelos! Só os pode fazer quando está sozinho, quando ninguém o vê. Assim, que monte de lado!", continuou a refletir o cavalo, enquanto avançava pelo meio do caminho, pisando cautelosamente com as patas curvadas.
CAPÍTULO II
Tendo levado a eguada para junto do rio, onde devia pastar, Nester apeou-se e tirou os arreios do cavalo. Os animais foram-se dispersando lentamente, pelo prado não pisado, coberto de orvalho e de um bafo que subia tanto da terra como do rio, o qual ali fazia uma volta.
Depois de tirar as rédeas do cavalo mosqueado, Nester coçou-lhe o pescoço e ele fechou os olhos, em sinal de agradecimento e de prazer.
- O velho gosta disso - murmurou Nester.
- Na verdade, o cavalo não gostava daquilo; fingia, por delicadeza. Por isso movera a cabeça, em sinal de aprovação. Logo, de modo completamente inesperado e sem motivo algum, Nester, supondo provavelmente que uma familiaridade excessiva poderia dar ideia equívoca a respeito de sua importância, empurrou a cabeça do cavalo e, brandindo a rédea, golpeou-lhe as pernas delgadas; e, sem dizer nada, foi sentar-se num tronco, no alto da colina, onde em geral costumava instalar-se.
Esse procedimento entristeceu o cavalo mosqueado, mas aparentou indiferença e, movendo a cauda rala e farejando algo, dirigiu-se para o rio, arrancando de passagem algumas ervas, só para distrair-se. Sem prestar atenção ao que faziam a seu redor as éguas jovens, os potros e potrinhos, que se alegravam com a manhã, e sabendo que o mais conveniente à sua saúde e sobretudo a seus anos era beber em jejum e comer depois, escolheu um lugar onde a margem era mais plana, fincou os cascos e esporões na água, enfiou nela o focinho e começou a beber aos sorvos, através dos lábios fendidos, movendo as ancas e agitando com prazer a cauda, de tronco ralo.
Uma égua baia, que sempre enraivecia o velho e lhe causava toda espécie de desgostos, aproximou-se dele andando pelo rio, como se por necessidade, mas realmente com o propósito de turvar-lhe a água diante do focinho. Mas o cavalo mosqueado já havia bebido bastante e, como se não notasse a intenção da égua, tirou tranquilamente, uma após a outra, as patas afundadas no lodo, sacudiu a cabeça e, afastando-se dos jovens, foi pastar. Esteve comendo durante três horas seguidas, quase sem parar em absoluto, mudando somente a posição das patas e tratando de não pisar a relva inutilmente. Depois de ter-se saciado a ponto de se lhe prender o ventre, como um saco, às costelas magras, deitou-se sobre as patas doloridas, buscando o modo por que menos lhe doessem, sobretudo a da direita, que era a mais fraca, e dormiu.
Existe a velhice majestosa, a repulsiva, assim como a velhice lamentável. Também há a majestosa e a repulsiva unidas. A do velho cavalo mosqueado era precisamente deste último gênero.
Era alto; media pelo menos dois archines e três verchki. Seu pelo era mosqueado de preto; ou antes, fora assim, pois na atualidade as manchas negras se haviam tornado de cor castanha suja. Sua pele consistia de três manchas: uma, na cabeça, estendendo-se até metade do pescoço e com uma calva irregular junto do nariz; as grandes crinas eram em parte brancas e em parte castanhas. A segunda cobria-lhe o flanco direito até a metade do ventre; a terceira, à garupa, abarcava a parte superior da cauda, descendo até metade das ancas. O resto da cauda era branco e matizado. A grande cabeça ossuda, com profundas cavidades sobre os olhos e com o lábio inferior, outrora preto, caído e fendido, pendia pesadamente do pescoço curvo e magro, que parecia de pau. O beiço caído deixava ver a língua pretuça, mordida de um lado, e os restos de uns dentes amarelentos e cariados. As orelhas, uma das quais estava torta, pendiam de ambos os lados da cabeça, e só de vez em quando se levantavam com indolência, para afugentar as pesadas moscas. Uma grande mecha do topete caía-lhe por trás de uma orelha; a testa nua estava afundada e rugosa e a pele tombava, formando bolsas. No pescoço e na cabeça, as veias se entrelaçavam, fazendo nós que se contraíam ao menor contacto com as moscas. Sua expressão era severa, concentrada e cheia de paciência e sofrimento. Suas patas dianteiras arqueavam-se nos joelhos; e numa delas, em que a mancha escura chegava até a metade da perna, havia um inchaço do tamanho de um punho fechado. As patas traseiras eram mais fortes, mas estavam muito roçadas nas ancas, onde por certo não tornaria o pelo a crescer. As quatro patas pareciam desmesuradamente largas em relação à delgadez do corpo. As costelas, embora fortes, estavam tão abertas e tensas, que a pele parecia estar pregada nos espaços intercostais. O peito e o lombo apresentavam sinais de antigos golpes e, na garupa, via-se uma ferida infectada; o tronco da cauda estava pelado e assinalavam-se as vértebras. Também na garupa, de cor castanha e perto da cauda, havia outra ferida, coberta de pelos brancos, do tamanho de uma palma de mão, que parecia produzida por mordedura, e uma cicatriz em forma de espátula. As patas de trás e a cauda estavam sempre sujas, por causa de seus constantes desarranjos intestinais. O pelo de todo o corpo embora curto, mantinha-se liso. No entanto, e a apesar da velhice repulsiva desse cavalo, um conhecedor afirmaria logo que, em outros tempos, fora um animal magnífico.
Um conhecedor diria, ainda, que só há na Rússia uma raça capaz de produzir ossatura tão ampla, tais cascos, pernas tão delgadas, pescoço tão bem colocado e, sobretudo, crânio tão perfeito, olhos tão grandes, negros e diáfanos, tais nós de veias no pescoço, junto à cabeça e uma pele e pelo tão finos. De fato, havia algo de majestoso na figura daquele cavalo, na terrível mescla de sinais repelentes da decrepitude com a expressão de aprumo e a serena consciência de sua beleza e de sua força.
Como ruína viva, permanecia de pé, em meio do prado coberto de orvalho, enquanto, a seu redor, se ouviam bufar, dar patadas e relinchar os potros novos da cavalhada dispersa.
CAPÍTULO III
Erguera-se o sol por cima do bosque e brilhava radioso, banhando de luz a relva e as sinuosidades do rio. O orvalho secava-se, formando grossas gotas. Aqui e ali, perto de um pequeno pântano e sobre o bosque, esfumavam-se os vapores matinais como tênue nuvenzita. Encrespavam-se as nuvens, mas ainda não se levantara o vento. Do outro lado do rio crescia centeio, verde ainda, e havia cheiro de vegetação fresca e de flores. Com voz rouca, um cuco cantava no bosque, e Nester, deitado de costas, contava quantos anos ainda lhe restariam de vida. Umas calhandras revoluteavam sobre o campo de centeio e o prado. Uma lebre tardia, surpreendida pela cavalhada, saltou para um lugar descoberto e refugiou-se ao pé de um arbusto, prestando atenção aos ruídos. Vaska ficara a dormir com a cabeça na relva e as éguas passaram diante dele, indo mais longe que antes. As velhas bufavam enquanto iam abrindo um sulco na relva e todas escolhiam lugares onde ninguém as pudesse incomodar. Mas já não comiam, apenas se deleitavam em mordiscar as ervas mais gostosas. Imperceptivelmente, toda a manada avançava na mesma direção. E, como sempre, a velha Kuldiba, gravemente à frente dos demais, indicava a possibilidade de ir mais adiante. A jovem Muchka, uma égua negra que tivera pela primeira vez um potrinho, relinchava sem parar e, com a cauda ao vento, chamava o filhote, que folgava a seu lado, de joelhos trêmulos. Uma égua jovem, chamada Lastochka, de cor baia escura e pelo liso e reluzente como se fosse de cetim, baixava a cabeça de modo tal que o negro topete sedoso lhe cobria a testa e os olhos, e brincava com a relva, arrancando-a jogando-a ao chão e pisoteando-a com os cascos úmidos de orvalho. Um dos filhotes maiores, inventor de um brinquedo, já elevara vinte e seis vezes a cauda curta, encrespada em trompa, caracoleando em volta da mãe, que pastava tranquilamente, pois já se acostumara com o caráter do filho, e só de vez em quando o fitava de soslaio, com grande olho negro. Um dos potrinhos menores, preto e cabeçudo, de topete encrespado entre as orelhas, e pequena cauda ainda meio de lado, tal como a tivera nas entranhas maternas, de orelhas tesas e vista fixa, imóvel, olhava o potro folgazão, talvez invejando-o ou talvez a perguntar para que fazia ele aquilo. Uns mamavam, empurrando com o focinho o ventre das mães; outros, sem saber por que, apesar de que as mães os chamassem, corriam desajeitadamente a trote em direção contrária, como se buscassem algo, e logo, sem razão aparente, detinham-se e prorrompiam em relinchos penetrantes e desesperados. Alguns estavam deitados, outros aprendiam a pastar ou se entretinham em coçar-se atrás da orelha com a pata traseira. Duas éguas prenhas estavam separadas do grupo, movendo lentamente as pernas, andando sem deixar de pastar. Via-se que todos respeitavam seu estado e que nenhum potro novo se atrevia a molestá-las. Se alguma potra travessa se atrevia a aproximar-se demasiado, um só movimento de orelhas ou de cauda era suficiente para fazer com que visse a impropriedade de sua conduta.
As potras de um ano de idade, que tinham as crinas cortadas, fingiam ser adultas e sérias; muito raramente saltavam ou se reuniam aos grupos alegres. Comiam a relva com atitude digna, arqueando os pescoços de cisne e meneando as caudas aparadas. Da mesma forma que as grandes, algumas se deitavam, se espojavam ou se coçavam mutuamente. O grupo mais alegre era formado pelos potros de dois e três anos e pelas éguas estéreis, que quase sempre andavam juntas. Entre elas se ouviam bufos, relinchos, saltos e grunhidos. Aproximavam-se umas das outras, colocavam a cabeça sobre as costas da companheira, farejavam-se, brincavam e, por vezes, sacudindo a cauda e levantando-a, corriam a trote ou a galope, com jeito altivo e presumindo diante das companheiras. A mais bonita e empreendedora desse grupo de potras era a travessa potranca baia. As demais a imitavam em qualquer coisa que fizesse e toda a manada a seguia a todos os lugares. Naquela manhã, sentia-se especialmente brincalhona. Inspirara-se-lhe a veia da alegria, como acontece com as pessoas. Depois de haver escarnecido do velho cavalo mosqueado, saíra trotando ao longo da água; em seguida, fingiu que se assustava; relinchou e correu, a toda velocidade, pelo prado, obrigando Vaska a correr atrás dela e das companheiras que a seguiam. Depois, entreteve-se comendo um pouco e espojando-se. Zombou das velhas, cortando-lhes o caminho; separou um potrinho da mãe e perseguiu-o, como se quisesse mordê-lo. A mãe, assutada, deixou de comer, e o potrinho gemia com voz penosa, mas a potranca nem sequer o tocou, limitando-se a fazer-lhe medo e dando com isso um espetáculo que suas companheiras contemplaram com prazer. Depois, ocorreu-lhe apaixonar um cavalinho que puxava um arado, do outro lado do rio, manejado por um camponês. A potra se deteve, levantou a cabeça com ar altivo, virando-a docemente de lado, sacudiu-se e relinchou com voz doce e delicada. Naquele relincho soava a zombaria, mas também havia sentimento e certa tristeza. Expressava desejo, aspiração e promessa de amor.
Ali a codorniz, correndo de um lado para outro, entre os juncais espessos, chama apaixonadamente seu amigo; ali o cuco e a calhandra cantam seu amor e as flores transmitem umas às outras, por meio do vento, o pólen aromático.
"Também sou moça, formosa e forte - dizia a potra em seu relincho - Mas ainda não me foi outorgado provar a doçura deste sentimento, nem sequer ainda me viu um só amante".
E esse relinchar, tão significativo, ressoou pelo prado e chegou até ao cavalinho, que ergueu as orelhas e se deteve. O mujique o fustigou, mas o cavalinho estava enfeitiçado por aquela voz distante e relinchou também. Irritou-se o camponês, puxou as rédeas e deu-lhe uma pancada tão forte na barriga que o animal continuou seu caminho sem ter podido terminar o relincho. Sentiu-se invadido pela doçura e pela tristeza enquanto chegavam à cavalhada, do distante campo de centeio, os sons de seu relincho apaixonado e da voz iracunda do mujique.
Se bastara o som daquela voz para impressionar o cavalinho a ponto de fazê-lo esquecer seu dever, que não teria acontecido se houvesse visto a bela e travessa potra que o chamara, com as ventas dilatadas, aspirando o ar como se algo a atraísse, vibrando em todo o corpo jovem e formoso?
Mas a égua moça não se deteve por muito tempo a pensar em suas impressões. Quando se extinguiu a voz do cavalinho, relinchou zombeteiramente e, baixando a cabeça, começou a escavar a terra com uma das patas, e a seguir foi despertar e encolerizar o cavalo mosqueado. Este era sempre a vítima e o bufão daquela juventude feliz. Faziam-no padecer mais do que as pessoas. Não fizera mal a uns nem a outros. As pessoas precisavam dele, pelo menos; por que, porém, o mortificavam aquelas éguas novas?
CAPÍTULO IV
Ele era velho e elas, novas. Ele era fraco e elas, bem nutridas. Ele estava sempre triste e elas, sempre alegres. Portanto, era ele um ser alheio, completamente diferente e não havia razão para terem pena dele. Os cavalos só costumam ter pena de si mesmos e, de vez em quando, só sentem piedade daqueles em cuja pele podem imaginar a si próprios; mas que culpa teria o cavalo mosqueado de ser velho, magro e feio? Parece que nenhuma. Contudo, segundo os cavalos, era culpado de tudo isso; segundo eles, só têm razão os que são fortes, jovens e felizes, os que têm tudo à sua frente, aqueles cujos músculos estremecem por causa de uma tensão inútil e cuja cauda se levanta em trompa. Talvez o cavalo mosqueado compreendesse isso e, nos momentos tranquilos, reconhecesse que a culpa era sua, que já havia vivido sua vida e que chegara a hora de pagar seu tributo. Mas, no fundo, era um cavalo e, com frequência, incapaz de reprimir sentimentos como o desgosto, a tristeza e a indignação ao contemplar esses jovens que o sentenciavam por uma coisa que também eles teriam de sofrer no fim da vida. Um sentimento aristocrático era também a causa daquele procedimento desapiedado. Cada uma daquelas potras descendia, por parte de pai ou de mãe, do célebre Smetanka; e o cavalo mosqueado era de procedência desconhecida. Era um cavalo adventício; haviam-no comprado, três anos antes, numa feira, por oitenta rublos em notas de banco.
A potra baia, como se estivesse dando um passeio, aproximou-se das próprias narinas do cavalo mosqueado e empurrou-o. Este já sabia do que se tratava; sem abrir os olhos, baixou as orelhas e mostrou os dentes. A potra virou as costas e fez como se lhe quisesse dar um coice. O cavalo mosqueado abriu os olhos e afastou-se. Já não tinha sono e começou a comer. A potra travessa aproximou-se de novo dele, seguida por suas companheiras. Uma destas, de dois anos de idade e muito estúpida, que sempre imitava a baia em tudo, ia também fazê-lo desta vez e, como ocorre em tais casos, passou do limite. Em geral, a égua baia aproximava-se do cavalo mosqueado, como se fosse fazer alguma coisa, e passava diante mesmo de seu focinho, sem dirigir-lhe a vista, de modo que ele não sabia se deveria irritar-se ou não; e aquilo era realmente divertido. Desta vez fez o mesmo, mas a que a seguia e que estava especialmente alegre empurrou o mosqueado com toda a desenvoltura. Este tornou a mostrar os dentes, relinchou e, com agilidade inesperada nele, lançou-se atrás dela e mordeu-lhe a anca. A égua respondeu dando forte coice nas fracas costelas do velho, que até emitiu um gemido surdo. Quis correr a persegui-la, mas logo mudou de parecer e se afastou, com suspiro profundo. Provavelmente, toda a juventude da cavalhada considerou como ofensa pessoal a insolência que o velho cavalo se permitira com relação à potra nova; durante o resto daquele dia não o deixaram pastar nem lhe deram um momento de descanso, de modo que até o cavalariço teve de intervir várias vezes para separá-los, sem poder compreender o que havia sucedido. O cavalo mosqueado estava tão ofendido que ele próprio se aproximou de Nester quando o velho se dispôs a recolher a manada e se sentiu mais feliz e tranquilo quando selado e montado.
Deus sabe o que pensaria ao levar às costas o velho Nester. Talvez pensasse, com amargura, na impertinente e cruel juventude, ou, com aquela altivez desdenhosa e silenciosa própria dos velhos, perdoasse seus ofensores; mas o caso é que não deixou suas reflexões transparecerem, até que regressaram à casa.
Naquela noite, chegaram uns parentes de Nester. Ao conduzir a cavalhada diante das isbás dos servos, notou um carro com um cavalo amarrado à frente da escadinha de sua casa. Apressou-se tanto em recolher a cavalhada que, sem desencilhar o cavalo mosqueado, deixou-o no pátio e, ordenando a Vaska que ele o fizesse, fechou a porta e foi ver seus parentes. Talvez por causa da ofensa feita à potra nova, bisneta de Smetanka, pelo "tinhoso inútil", de pais desconhecidos, comprado numa feira, que havia molestado o sentimento aristocrático de toda a cavalhada, ou talvez porque o cavalo mosqueado, tendo ao lombo a sela alta sem cavaleiro, oferecesse um aspecto estranho e fantástico para as éguas, o fato é que naquela noite sucedeu algo insólito na cavalariça. Todas as éguas, tanto as jovens como as mais velhas, perseguiram o cavalo mosqueado, mostrando os dentes e obrigando-o a correr de um lado para outro; e ouviram-se os coices que lhe davam nos flancos delgados, assim como sua pesada respiração. O cavalo já não podia suportar mais aqueles golpes, nem era capaz de evitá-los. Deteve-se em meio do pátio e sua cara expressou primeiro uma débil raiva senil e impotente e, depois, o desespero. Baixou as orelhas. E, subitamente, aconteceu algo que obrigou todos a ficarem quietos. Viazopurika, a mais velha das éguas, aproximou-se dele, cheirou-o e suspirou. O cavalo mosqueado suspirou também.
CAPÍTULO V
No centro do pátio, iluminado pela lua, via-se a figura alta do cavalo mosqueado e o arção saliente. Os cavalos, imóveis, permaneciam em seu redor, observando profundo silêncio, como se tivessem acabado de inteirar-se de algo extraordinário. E assim era, com efeito.
Eis aqui o que o cavalo lhes contou:
PRIMEIRA NOITE
"Sim, sou filho de Liubesni I e de Baba. Meu nome de linhagem é Mujique I. Sou Mujique I e, para os da rua, Kolstomer, assim apelidado pelo vulgo em razão de minha marcha ampla, que nunca teve igual em toda a Rússia. Não há no mundo um cavalo de sangue mais nobre que o meu. Eu nunca vos teria dito isso. Para quê? Nunca me teríeis reconhecido. Como até há pouco não me havia reconhecido Viazopurika, que esteve comigo em Krenovo. Sem o testemunho dela, não me acreditaríeis. Eu nunca vos teria dito isso. Não necessito da compaixão cavalar. Mas quisestes que eu o dissesse. Pois bem: sou aquele Kolstomer que os caçadores procuram em vão, o Kolstomer que conheceu pessoalmente o conde e que foi vendido por haver vencido o favorito dele, Liebed.
Quando nasci, não sabia o que significava a palavra mosqueado. Acreditava que era um cavalo comum. Recordo que a primeira observação que fizeram sobre minha pele nos surpreendeu profundamente, a mim e a minha mãe. Devo ter nascido de noite; já para a madrugada, bem lambido por minha mãe, estava de pé. Lembro que incessantemente desejava algo e que tudo me parecia muito estranho e simples ao mesmo tempo. Os estábulos ficavam num corredor largo e tépido, com portas de grades, que deixavam ver o exterior. Minha mãe me ofereceu as tetas, mas eu era tão ingênuo que tanto a empurrava com o focinho entre as patas dianteiras como no ventre. De repente, minha mãe se virou para a porta e, passando por cima de mim, afastou-se para um lado. O palafreneiro que tratava de nós contemplava-nos através das grades.
- A Baba pariu! - exclamou, abrindo o ferrolho; e, andando pela palha fresca, abraçou-me com as duas mãos. - Olha, Taras, é um potro mosqueado. Parece uma pega.
Soltei-me de seus braços, e caí de joelhos.
- Que diabrete! - disse o cavalariço.
Minha mãe ficou inquieta, mas não fez nada para defender-me. Limitou-se a suspirar profundamente e afastou-se um pouco. Chegaram outros cavalariços e puseram-se a examinar-me. Um deles correu a avisar o chefe do estábulo. Todos se riam de minhas manchas e me davam nomes estranhos. Nem mesmo minha mãe entendia o significado dessas palavras. Até então, não houvera em nossa linhagem um só cavalo de pele mosqueada. Não pensávamos que isso pudesse ser mau de qualquer forma. E já então todos louvavam minha constituição e minha força.
- Como é esperto! Não se pode segurá-lo! - disse o palafreneiro.
Pouco depois chegou o chefe das cavalariças e estranhou minha cor; pareceu até ficar desgostoso.
- A quem puxou esse monstro? O general não quererá deixá-lo nas cavalariças - disse ele. - Ah, Baba, boa coisa nos fizeste! - acrescentou, dirigindo-se a minha mãe. - Teria sido melhor que fosse calvo; mas mosqueado...
Minha mãe nada respondeu e, como sempre em tais casos, suspirou.
- A quem terá saído? Parece um mujique. Não podemos deixá-lo na cavalhada, seria uma vergonha. No entanto, é um bom cavalo - dizia o chefe, assim como todos os demais, enquanto me contemplavam.
Poucos dias depois, o general em pessoa veio ver-me. De novo, não sei por que, todos se horrorizaram e invectivaram minha mãe pela cor de minha pele.
- No entanto, é um bom cavalo, um cavalo muito bom - diziam todos os que me viam.
Até a primavera, ficamos separados, cada qual com sua mãe; e só algumas vezes, quando o sol derretia a neve do telhado dos estábulos, nos levavam ao grande pátio coberto de palha fresca. Ali conheci todos os meus parentes, tanto os próximos como os afastados. Ali vi como, por portas diferentes, saíam as éguas mais famosas daquele tempo, com seus rebentos. Entre elas se encontravam a velha Golanka, Muchka, a filha de Smetanka, Krasnuka e a hacaneia de sela Dobrokotika. Todas as celebridades daquela época se reuniam ali com seus filhos, passeavam ao sol, espojavam-se na palha fresca e cheiravam-se mutualmente, da mesma forma que os cavalos de hoje. Não esqueço até agora o aspecto que apresentava aquela eguada, cheia de potras formosas. Estranha-vos pensar que, em meu tempo, fui jovem e esperto, mas foi assim. Ali se encontrava também esta mesma Viazopurika, que então era uma potranca de um ano, simpática, alegre e cheia de vivacidade; mas direi, sem querer ofendê-la, que, embora aqui a considerem uma raridade de seu sangue, naquele estábulo era um dos piores exemplares. Ela mesma o confirmará.
Minha pele mosqueada, que tanto desagradava aos homens, era, em compensação, apreciada pelos cavalos. Todos me rodeavam e, admirados, brincavam comigo. Comecei a esquecer as palavras das pessoas a respeito de minha pele e sentia-me feliz. Mas não tardei a conhecer a primeira dor de minha vida, causada por minha própria mãe. Quando a neve começou a derreter-se, as codornizes piavam sob os beirais dos telhados e a primavera começou a sentir-se com mais força no ar; minha mãe transformou-se com relação a mim. Seu caráter mudou por completo. Ora, sem causa aparente, começava a brincar, correndo pelo pátio, coisa que não convinha em absoluto à sua idade; ora permanecia pensativa e relinchava; ora mordia e trocava coices com as companheiras. Às vezes, cheirava-me e fungava, com desgosto. Ou então, saia a tomar sol e apoiava a cabeça no pescoço de sua prima Kupchika, ficando a coçar-lhe o lombo por muito tempo, em atitude pensativa, sem deixar que me aproximasse de suas tetas. Um dia, o chefe das cavalariças ordenou que pusessem freio em minha mãe e levaram-na do estábulo. Minha mãe relinchou; respondi e quis acompanhá-la, mas nem sequer ela me fitou. Taras, o criado, agarrou-me no momento em que fechavam a porta atrás de minha mãe. Precipitei-me, derrubando-o sobre a palha, mas a porta estava fechada e só pude ouvir os relinchos de minha mãe, que se afastava. Já não me chamava e em sua voz se distinguia uma expressão completamente diferente. A seus relinchos responderam outros muito possantes; segundo soube depois, eram os de Dobri I, que, conduzido por dois cavalariços, ia ao seu encontro. Não me lembro como Taras saiu do estábulo; sentia-me demasiado triste. Pressentia que acabara de perder para sempre o amor de minha mãe. "E tudo isso, só por ser um cavalo mosqueado", pensava, recordando as palavras dos homens a respeito de minha pele. Foi tal a raiva que me invadiu que comecei a dar pancadas com a cabeça na parede do estábulo, até cair exausto e coberto de suor.
Ao fim de algum tempo, minha mãe voltou. Ouvia-a chegar a trote e aproximar-se do estábulo com passos diferentes. Abriram-lhe a porta; mal a reconheci, tanto se havia rejuvenescido e embelezado. farejou-me, fungou e começou a relinchar. Por sua expressão, notei que já não me queria. Falou-me de como Dobri era formoso e de quanto o amava. Aqueles encontros se repetiram e cada vez mais esfriavam minhas relações com a minha mãe.
Em breve nos deixaram sair ao prado. Então, conheci novas alegrias, que substituíram a perda do amor materno. Tinha amigas e companheiros; aprendemos juntos a comer a relva, a relinchar como os mais velhos e a galopar em volta de nossas mães, com a cauda erguida. Foi um período feliz. Tudo me era perdoado; todos me estimavam, me admiravam e eram condescendentes, fizesse eu o que fizesse; mas isso durou pouco. Não tardou a acontecer-me uma coisa terrível".
O cavalo mosqueado suspirou profundamente e afastou-se do grupo.
Amanhecera já desde algum tempo. As portas rangeram e entrou Nester. Os cavalos se separaram. O cavaleiro arranjou a sela do velho mosqueado e levou a cavalhada para fora.
CAPÍTULO VI
SEGUNDA NOITE
Depois de novamente recolhidos os cavalos, voltaram eles a reunir-se em redor do velho mosqueado.
"No mês de agosto, separaram-nos de nossas mães - disse o cavalo, continuando sua narrativa. - Senti pesar intenso. Via que minha mãe levava em suas entranhas meu irmão mais novo, o célebre Usane, e que eu já não era para ela o mesmo de antes. Não sentia ciúmes, mas tornava-me cada vez mais frio em relação a ela. Além disso, sabia que, ao separar-me de minha mãe, levar-me-iam ao departamento dos potros, onde estes eram encerrados em grupos de dois ou três e de onde saía para o ar livre, todos os dias, uma manada de potros novos. Fiquei com o potro Mili; era um cavalo de sela e mais tarde foi montado pelo imperador, sendo reproduzido em selos, gravuras e estátuas. Então, não passava de um filhote de pelo delicado e reluzente, pescoço de cisne e patas delgadas e retas. Sempre estava alegre e mostrava-se afetuoso e amável; sempre estava disposto a brincar, a lamber-se e a fazer pilhérias tanto com os cavalos como com as pessoas. Sem querer, tornamo-nos amigos, porque vivíamos juntos; e essa amizade se manteve durante toda a nossa adolescência. Era alegre e despreocupado; já naquela época começava a interessar-se pelo amor, brincava com as éguas jovens e zombava de minha inocência. Para grande infelicidade minha, quis imitá-lo, por amor-próprio; e muito depressa deixei que o amor me arrastasse. Esta inclinação precoce foi a causa de uma mudança importantíssima em meu destino. Acontece que me enamorei.
Viazopurika tinha um ano mais do que eu e éramos muito bons amigos; mas, para os fins de outono, observei que começava a evitar-me... Não contarei a triste história de meu primeiro amor; a própria Viazopurika deve lembrar-se de minha louca paixão, que terminou com uma mudança importantíssima em minha vida. Os cavalariços expulsaram Viazopurika e me deram uma sova. Conduziram-me a um estábulo especial, onde passei a noite inteira relinchando, como se pressentisse o acontecimento que iria ocorrer no dia seguinte.
De manhã, chegaram ao pátio do estábulo o general, o chefe das cavalariças, o palafreneiro e os ajudantes; e armou-se grande gritaria. O general ralhava com o chefe, que se desculpava, dizendo que ele não havia mandado que me soltassem e que os ajudantes o haviam feito por sua conta. O general ameaçou mandar açoitar a todos eles e disse que não poderiam ser conservados todos os potros. O chefe prometeu cumprir suas ordens. Depois, calaram-se e saíram dali. Não compreendi nada; mas notei que algo se tramava contra mim.
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No dia seguinte, deixei de relinchar para sempre e tornei-me o que sou agora. O mundo mudou completamente ante meus olhos. Nada me era agradável; fechei-me em mim mesmo e comecei a refletir. A princípio, tudo me pareceu odioso. Até deixei de comer, de beber e de andar. Nem sequer pensava em brincar. Às vezes, vinham-me desejos de caracolear, de galopar ou de relinchar; mas imediatamente se apresentava a terrível pergunta: "Para quê? Com que fim?" E minhas últimas forças me abandonavam.
Certa vez me tiraram à noite, quando a cavalhada regressava do prado. De longe avistei uma nuvem de poeira e os contornos confusos de nossas mães. Ouvi os relinchos alegres e o ruído dos cascos. Detive-me, embora o freio, puxado pelo criado que me levava, me ferisse a nuca; e fitei a cavalhada que se aproximava da mesma forma por que se fita a felicidade que se perdeu para sempre. As éguas aproximavam-se e pude distinguir, uma por uma, as silhuetas belas, majestosas, sãs e bem nutridas que eu conhecia. Algumas delas também me olharam. Já não sentia a dor que me produzia o freio que o criado puxava. Esqueci-me de minha condição e, sem querer, relinchei e corri a trote; mas meu relincho soou triste, lamentável e ridículo. As éguas não se riram de mim, mas notei que muitas desviavam a vista, por decoro. Ao que parece, eu lhes inspirava repulsa, dó, desgosto e, sobretudo, riso. Fazia-as rir o meu pescoço esquálido e inexpressivo, a minha cabeça enorme (durante aquele tempo eu havia emagrecido), minhas amplas patas sem garbo e meu porte estúpido ao empreender um leve trote em volta do criado, por hábito antigo. Ninguém respondeu a meu relincho e todos me viraram as costas. Logo compreendi tudo: compreendi até que ponto me tornara estranho para todos eles, e nem lembro sequer como voltei.
Já antes eu tivera certa tendência para a seriedade e a meditação, mas então sofri uma transformação definitiva. Meu pelo, que despertava desprezo tão estranho entre as pessoas, minha desgraça inesperada e, além disso, minha situação especial na cavalhada, que pressentia, mas que não conseguia explicar a mim mesmo, obrigaram-me a concentrar-me ainda mais dentro de meu íntimo. Refleti sobre a injustiça dos homens, que me censuravam por causa da cor da pele; sobre a inconstância do amor materno e, em geral, do amor feminino, que dependia de certas circunstâncias físicas. Principalmente, meditei sobre as particularidades daquele estranho animal a que chamam gênero humano e a que estamos tão estreitamente ligados, e sobre as particularidades a que se devia minha condição, que pressentia mas não chegava a entender. A importância dessa particularidade e das propriedades humanas sobre as quais ela se baseava foi-me revelada pelo acontecimento seguinte.
Foi no inverno, na época das festas. Durante todo o dia haviam-me deixado sem comer e sem beber. Posteriormente, inteirei-me de que isso acontecera porque o palafreneiro se embriagara. O chefe dos estábulos veio ver-me e, ao verificar que eu não tinha ração, começou a invectivar o criado (que não se encontrava ali) com palavras grosseiras; depois, saiu. No dia seguinte, o palafreneiro, acompanhado de outro criado, entrou no estábulo para dar-me a ração. Notei que estava especialmente pálido e triste. Sobretudo, em suas largas costas notava-se algo de significativo, que despertava compaixão. Atirou o feno por cima da grade, com gesto de aborrecimento e, quando me aproximei, com a intenção de por a cabeça em seu ombro, assestou-me um murro tão forte, em pleno focinho, que retrocedi. Depois, deu-me um pontapé na barriga.
- Se não fosse por causa desse tinhoso não teria acontecido nada! - exclamou.
- Por que dizes isso? - perguntou o outro criado.
- Falta de cuidado: o chefe não inspeciona os cavalos do conde. Mas o seu potro, vem visitá-lo duas vezes por dia.
- Deram-lhe esse mosqueado de presente?
- O diabo sabe se o deram ou se o venderam. O fato é que podemos matar de fome os cavalos do conde; ele não se preocupa com isso, em absoluto. Atreva-se alguém, no entanto, a deixar sem ração o seu potro. "Deita-te", disse-me ele. E começaram a acoitar-me. Não parece cristão. Tem mais pena dos animais que das pessoas. Deve ser herege. O bárbaro contou pessoalmente os açoites que me davam. Nem mesmo o general manda açoitar assim. Fiquei com as costas todas lanhadas.
Compreendi muito bem o que dizia a respeito dos açoites e do cristianismo. Mas ficou completamente obscura para mim a palavra seu, pela qual pude deduzir que estabeleciam um vínculo a ligar-me ao chefe das cavalariças. Então, não pude compreender de modo algum em que consistiria tal vínculo. Só muito depois, quando me separaram dos demais cavalos, é que expliquei a mim mesmo o que aquilo representava. Naquela época, eu não era capaz de entender a significação do fato de ser eu propriedade de um homem. As palavras "meu cavalo", referindo-se a mim, a um cavalo vivo, pareciam-me tão estranhas como as palavras "minha terra", "meu ar", "minha água".
No entanto, elas exerceram sobre mim enorme influência. Sem cessar pensava nelas e só depois de longo contato com os seres humanos pude explicar-me a significação que, afinal, lhes é atribuída. Querem dizer o seguinte: os homens não dirigem a vida com fatos, mas com palavras. Não os preocupa tanto a possibilidade de fazer ou deixar de fazer alguma coisa, como a de falar de objetos diferentes mediante palavras convencionais. Essas palavras, que consideram muito importantes, são, sobretudo, meu ou minha, teu ou tua. Aplicam-nas a todas as espécies de coisas e de seres, inclusive à terra, ao seus semelhantes e aos cavalos.
Além disso, convencionaram que uma pessoa só pode dizer meu a respeito de uma coisa determinada. E aquele que puder aplicar a palavra "meu" a um número maior de coisas, segundo a convenção feita, considera-se a pessoa mais feliz. Não sei por que as coisas são desse modo; mas sei que são assim. Durante muito tempo procurei compreender isso, supondo que daí viria algum proveito direto; mas verifiquei que isso não era exato.
Muitas pessoas das que me chamavam seu cavalo nem mesmo me montavam; mas outras o faziam. Não eram elas as que me davam de comer, mas outros estranhos. Também não eram as pessoas que me faziam bem, mas os cocheiros, os veterinários e, em geral, pessoas desconhecidas. Posteriormente, quando ampliei o círculo de minhas observações, convenci-me de que o conceito de meu - e não só com relação a nós, cavalos - não tem qualquer outro fundamento além de um baixo instinto animal, que os homens chamam sentimento ou direito de propriedade. O homem diz "minha casa", mas nunca vive nela; preocupa-se só em construí-la e mantê-la. O comerciante diz "minha loja", ou "meus tecidos", por exemplo, mas não faz suas roupas com os melhores tecidos que vende na loja. Há pessoas que chamam sua uma extensão de terra e nunca a viram nem passaram por ela. Há outras que dizem serem suas certas pessoas que nunca viram nesta vida e a única relação que têm com elas consiste em causar-lhes dano. Há homens que chamam de suas certas mulheres, e estas convivem com outros homens. As pessoas não procuram, em sua vida, fazer o que consideram o bem, e sim a maneira de poder dizer do maior número possível de coisas: é meu. Agora estou persuadido de que nisso reside a diferença essencial entre nós e os homens. Portanto, sem falar de outras prerrogativas nossas, só por este fato podemos dizer, com segurança, que, entre os seres vivos, nos encontramos em nível mais alto que o dos homens. A atividade dos homens, pelo menos a dos homens com quem tenho tratado, se traduz em palavras, ao passo que a nossa se manifesta em fatos. Assim, pois, o chefe das cavalariças açoitou o criado porque havia adquirido o direito de chamar-me seu cavalo. Este descobrimento, que profundamente me consternou, assim como os conceitos que minha pele despertara entre as pessoas e a volubilidade de minha mãe, obrigaram-me a tornar-me o cavalo sério e pensativo que sou.
Sentia-me três vezes desgraçado: meu pelo era mosqueado, haviam-me castrado e os homens imaginavam que eu não pertencia a Deus nem a mim mesmo, como é próprio de todo ser vivente, e sim, a um cavalariço.
Disto se derivaram numerosas consequências. A primeira delas foi que me separaram dos outros cavalos, alimentaram-me melhor e me ajaezaram antes do que em geral costuma fazer-se. Ajaezaram-me, pela primeira vez, aos dois anos de idade. Lembro-me de que o chefe das cavalariças, que imaginava que eu lhe pertencia, em companhia de uma série de criados, começou a pôr-me arreios, esperando que eu me encabritasse ou me rebelasse. Amarraram-me com cordas, para introduzir-me entre varais. Puseram-me às costas uns arneses em forma de cruz, que ataram às varas, para que eu não desse coices; e eu só esperava uma oportunidade de demonstrar-lhes meu amor ao trabalho. Assombraram-se ao ver que me portava como um cavalo velho. Passearam comigo e fui-me exercitando a correr a trote. Cada dia que se passava, maiores eram os meus progressos, de maneira que, três meses depois, o próprio general e muitos outros louvaram minha andadura. Mas, coisa estranha: como imaginavam que eu não me pertencia a mim mesmo, e sim ao chefe dos estábulos, minhas andaduras tinham aplicações muito diferentes das dos meus companheiros.
A meus irmãos, os potros, faziam com que corressem e cronometravam suas corridas. Examinavam-nos detidamente, atrelavam-nos a carruagenzinhas douradas e os cobriam com ricas gualdrapas. Eu, porém, puxava a carruagem comum do cavalariço, quando ele ia tratar de seus assuntos em Chesmene e outras aldeias. Tudo isto era devido à minha pele e, sobretudo, a que, na sua opinião, eu não pertencia ao conde, mas ao chefe dos estábulos.
Amanhã, se ainda vivermos, contar-vos-ei a consequência principal que teve para mim o direito de propriedade que o chefe dos estábulos se atribuía".
Durante todo aquele dia, os cavalos trataram Kolstomer com respeito. Mas o trato que Nester lhe dispensou foi tão grosseiro como sempre. O cavalinho do mujique, ao aproximar-se a cavalhada, relinchou; e a jovem égua baia tornou a exibir sua coqueteria.
CAPÍTULO VII
TERCEIRA NOITE
Saiu a lua e seu fino alfanje iluminou a figura de Kolstomer, que permanecia no meio do pátio. Os cavalos se agruparam à sua volta.
"A consequência principal e extraordinária de não pertencer eu ao conde nem a Deus, mas ao chefe das cavalariças - continuou o velho mosqueado - foi que aquilo que em geral constitui o nosso maior mérito, isto é, a marcha rápida, deu motivo a que me expulsassem da cavalhada. Um dia, faziam provas com Liebed, e o cavalariço, que chegava de chesmene montado em mim, aproximou-se da pista. Liebed passou junto de nós; corria bem, mas bamboleava-se e não tinha aquela pureza de movimentos que eu adquirira ao exercitar-me. Instantaneamente, ao contacto de uma pata com o chão, eu levantava a outra, sem fazer o menor esforço em vão, aproveitando-me disso para correr para a frente. Quando Liebed passou diante de nós, corri para a pista e o chefe das cavalariças não me reteve.
- Querem que experimentemos o meu mosqueado? - gritou.
E, quando Liebed chegou por segunda vez perto de mim, o cavalariço soltou-me. Liebed já havia tomado carreira e, por isso, fiquei para trás na primeira volta, mas, na segunda, fui recuperando terreno, alcancei-o e passei à sua frente. Fizeram outra prova e o resultado foi idêntico. Eu era melhor corredor. Isto horrorizou a todos. Decidiram vender-me quanto antes e, para quanto mais longe, melhor, para que nem sequer se ouvisse falar de mim. "Se o conde souber disso, passaremos maus bocados", diziam. E venderam-me a um traficante de cavalos.
Com ele estive pouco tempo. Comprou-me um hussardo, que fora lá a negócios de remonta. Tudo aquilo era tão injusto e tão cruel que me alegrei quando me afastaram de Krenovo, separando-me em definitivo de tudo quanto me era agradável e querido. Permanecendo com a cavalhada eu sofria demasiado. Aos outros esperavam o amor, as honrarias, a liberdade; a mim, só o trabalho e as humilhações, as humilhações e o trabalho, até o fim de minha vida. Por quê? Por que eu era mosqueado e porque, em razão disso, tinha de pertencer a alguém".
Naquela noite, Kolstomer não pôde prosseguir sua narrativa. Aconteceu um fato que semeou agitação entre os cavalos. Rupchika, uma potra prenhe, que escutara o relato desde o início, virou-se de repente e dirigiu-se com lentidão para debaixo do telhado, onde se pôs a gemer tão fortemente que chamou a atenção de todos; depois, deitou-se, levantou-se e tornou a deitar-se. As éguas velhas compreenderam de que se tratava, mas as jovens se inquietaram e, abandonando o cavalo mosqueado, rodearam a enferma. Para o amanhecer, havia um potro novo, que se bamboleava nas perninhas. Nester chamou o criado. Levaram a égua e o potrinho para o estábulo e os demais foram para o prado.
CAPÍTULO VIII
QUARTA NOITE
Ao anoitecer, quando as portas se fecharam e tudo ficou em silêncio, o mosqueado assim continuou:
"Pude fazer múltiplas observações a respeito das pessoas e dos cavalos durante a época em que fui passando de dono para dono. Dois amos foram os que me tiveram por mais tempo: o oficial de hussardos, que era um príncipe; e depois uma velha, que vivia em Nikolai Ivavleni.
Com o hussardo passei os melhores dias de minha vida.
Embora tenha sido ele a causa de minha ruína, embora não tivesse estima a ninguém, eu o estimava e estimo, precisamente por isso. Agradava-me ver que ele era elegante, feliz e rico e que, por isso mesmo, a ninguém amava. Compreendeis esse elevado sentimento cavalar. Sua frieza, sua crueldade e minha dependência dele emprestavam força singular a meu afeto. E, em meus bons tempos, pensava: "Mata-me, extenua-me; sentir-me-ei tanto mais feliz".
Comprou-me do traficante de cavalos, que por sua vez me adquirira do cavalariço por oitocentos rublos. Elogiou-me, porque ninguém tinha cavalos mosqueados. Foi minha época melhor. O hussardo tinha uma amante. Soube disso porque todos os dias eu o levava à casa dela e, às vezes, tinha que levar os dois. A amante era muito bela, o hussardo era distinto e também o era seu cocheiro. Por isso eu queria bem a todos. E vivia a meu gosto. Minha vida transcorria da maneira seguinte: de manhã, o criado vinha limpar-me. Era um moço novo, que procedia de família camponesa. Abria a porta, para que saísse o bafo; tirava o esterco, removia as gualdrapas dos cavalos e começava a raspar-me o corpo com escovas, brossa e almofaça. Eu, de brincadeira, mordiscava-lhe a manga e batia com as patas no chão. Depois, levavam-nos, uns após os outros, a umas tinas de água fria; e o rapaz admirava minha pele mosqueada, minhas patas retas "como umas flechas", meus cascos largos e meu lombo lustroso, "sobre o qual se podia dormir". Enfiava feno pelas grades da porta e colocava aveia na manjedoura de carvalho. Depois, vinha Feofane, o cocheiro principal.
O amo e o cocheiro se pareciam. Ambos eram valentes e não gostavam de ninguém, a não ser de si mesmos; por isso, todos os apreciavam. Feofane costumava usar camisa vermelha e calças de feltro. Gostava de vê-lo chegar, nos dias de festa ,com os cabelos untados de brilhantina. Costumava exclamar: "Então, não te lembras de mim?" E empurrava-me com o cabo do forcado, mas sem fazer-me dano, só para pilheriar. Eu compreendia imediatamente; agachava as orelhas e rangia os dentes. Havia um potro preto que formava parelha com outro. De noite, também me atrelavam com ele. Chamava-se Polkane, não entendia as brincadeiras e era mau como um demônio. No estábulo, permanecíamos um ao lado do outro e ele me atormentava seriamente. Feofane não lhe tinha medo. Costumava aproximar-se dele claramente e soltar um grito; o potro parecia disposto a matá-lo, mas Feofane esquivava-se e conseguia lançar-lhe a corda ao pescoço. Uma vez, tomamos ambos a rédea nos dentes, em Kuznietski. Mas nem o amo nem o cocheiro se assustavam; ambos riram, gritaram às pessoas que se afastassem e depois retomaram as rédeas para que não atropelássemos ninguém.
Servindo ao hussardo, perdi minhas melhores faculdades e a metade de minha vida. Ali comecei a ressentir-me das pernas. Mas, apesar disto, foi a melhor época de minha existência. Às doze horas costumavam atrelar-nos, depois de nos untarem os cascos e de nos refrescarem o topete e as crinas.
O trenó era de junco trançado e tapizado de veludo: os arneses tinham pequenas fivelas de prata e as rédeas eram de seda.
Os arneses ajustavam-se tão bem que, quando estávamos prontos e encilhados, não se podia distinguir onde terminavam eles e onde começava o cavalo. Costumavam atrelar-me num telheiro. Chegava Feofane - que tinha as cadeiras mais largas que os ombros - com um cinturão vermelho que lhe chegava quase debaixo dos braços; examinava os arreios, sentava-se e, depois de ajeitar o cafetã, dizia umas palavras por pilhéria, preparava o chicote apenas por formalidade, pois quase nunca me fustigava e exclamava: "Andemos". Saíamos pela porta da cocheira; a cozinheira, que ia esvaziar o balde, parava no umbral; e os homens que traziam lenha ao pátio olhavam-nos com os olhos esbugalhados. Dávamos uma voltazinha e parávamos. Então chegavam os lacaios e os outros cocheiros, que se punham a falar. Assim esperávamos todos, por vezes, até três horas seguidas, junto à porta da casa, dando de vez em quando um pequeno passeio e detendo-nos de novo. Finalmente, ouvia-se barulho junto à porta; saía correndo o encanecido e barrigudo Tikone, vestido de fraque e ordenava: "A carruagem!" Então não havia a maneira estúpida de gritar: "Para a frente!", como se eu não soubesse que se deve andar para adiante e não para trás. Feofane estalava a língua. Aproximávamo-nos da escada e aparecia o patrão, ao mesmo tempo displicente e apressado, como se nada houvesse de surpreendente em Feofane, ou nos cavalos. O cocheiro estirava os braços e curvava as costas a ponto de parecer impossível que os mantivesse assim por muito tempo. O príncipe trajava barretina e um capote de pele de castor que lhe cobria o belo rosto corado, de sobrancelhas negras, que nunca deveria encobrir-se. Fazendo tilintar o sabre e as esporas, caminhava pelo tapete, como se tivesse pressa, sem prestar atenção a mim e a Feofane, quando todos nos admiravam. Ao chegar à escada, eu sacudia a cabeça e minhas finas crinas, saudando o príncipe. Quando estava de bom humor, ele pilheriava com Feofane; e este, virando levemente a cabeça e sem baixar os braços, fazia um sinal imperceptível com as rédeas, que eu entendia. Empreendia a marcha, estremecendo em cada músculo e lançando a neve suja sob a parte dianteira do trenó. Também não havia naquele tempo o costume tolo de gritar: "Eh!", como se o cocheiro sentisse alguma dor; mas só "Cuidado!" Feofane gritava: "Atenção! Cuidado!" e as pessoas se afastavam, detinham-se e, virando o pescoço, contemplavam o formoso cavalo, assim como o patrão e o cocheiro, todos distintos.
CAPÍTULO PRIMEIRO
A abóbada celeste se alteava, a aurora se estendia, o orvalho de um prateado fosco se tornava mais branco, a lua minguante ia perdendo vida e o bosque adquiria sonoridades. A gente já se levantava e, no estábulo da casa senhorial, começavam a ouvir-se, cada vez mais frequentes, os bufidos, os rumores de palha remexida e até mesmo os relinchos, irritados e friorentos, dos cavalos que, reunidos, pareciam brigar por causa de alguma coisa.
- Olá! Está quase na hora! Estão com fome? - exclamou o velho cavalariço, abrindo as portas rangentes do estábulo. - Aonde vais? - gritou, ameaçando uma égua que se havia adiantado.
O cavalariço Nester, com um casaco apertado por uma correia, levava o chicote ao ombro e o pão, enrolado numa toalha, enfiado na cintura. Nas mãos tinha uma sela e um freio.
Os cavalos não se assustaram em absoluto nem os ofendeu o tom zombeteiro. Mostraram-se indiferentes e afastaram-se da porta sem pressa. Só uma velha égua baia, obscura e de grandes crinas, baixou as orelhas e virou-se de costas, rapidamente. Então, uma potranca, que estava mais distante e nada tinha a ver com o assunto, relinchou e empurrou sua vizinha.
- Eh! - tornou a gritar o cavalariço em tom mais alto e mais ameaçador do que antes, dirigindo-se ao fundo do estábulo.
De todos os cavalos que ali se encontravam (havia cerca de uma centena), o que mostrava menos impaciência era um cavalo mosqueado, que permanecia solitário a um canto, com os olhos caídos, lambendo um tronco de carvalho. Não se sabe que gosto achava nele, mas, enquanto o fazia, sua expressão era séria e pensativa.
- Basta de mimos! - exclamou o cavalariço, no mesmo tom de antes, e aproximou-se dele, deixando sobre um monte de esterco a sela e uma manta suja.
O cavalo mosqueado deixou de lamber o tronco e, ficando imóvel, fitou Nester por longo tempo. Não se riu, nem se aborreceu, nem sequer franziu a testa; limitou-se a suspirar profundamente e a virar a cabeça. O cavalariço rodeou-lhe o pescoço com os braços e pôs-lhe o freio.
- Por que suspirar? - perguntou.
O cavalo agitou a cauda, como se dissesse: "Não é por coisa alguma, Nester". O cavalariço cobriu-lhe o lombo com a manta e colocou a sela. O cavalo baixou as orelhas, expressando, ao que parece, seu descontentamento, e por isso Nester chamou-o de inútil e apertou-lhe a cilha. Então, o cavalo se inflou, mas o cavalariço enfiou-lhe um dedo na boca e bateu-lhe com o joelho no ventre, de modo que o animal se viu obrigado a expirar o ar. Apesar disso, baixou as orelhas e até virou a cabeça enquanto o homem lhe colocava a rédea. Bem sabia que isso não lhe serviria de nada, mas achava necessário manifestar que aquilo lhe era desagradável e que sempre o demonstraria. Quando ficou selado, adiantou a pata esquerda e começou a mascar o freio, não se sabe por que motivo, pois já era tempo de que soubesse que um freio não pode ter sabor algum.
Nester montou, com ajuda do estribo curto, desenrolou o chicote, libertou as abas do casaco, sentou-se na sela com esse estilo próprio dos cocheiros, caçadores e cavalariços e sacudiu as rédeas. O cavalo ergueu a cabeça, demostrando que estava disposto a ir onde lhe ordenassem, mas não se moveu do lugar. Sabia que Nester, antes de sair montado nele, teria de dizer muitas coisas, aos gritos, como, por exemplo, dar ordens a outro cavalariço, Vaska, e aos cavalos. De fato, Nester começou a gritar:
- Vaska, Vaska! Soltaste os cavalos? Que fazes, estúpido? Eh! Estás dormindo? Abre, para que as éguas saiam primeiro.
Rangeram as portas e Vaska, semi-adormecido, mal-humorado e segurando um cavalo pelas rédeas, afastou-se para um lado a fim de deixar os animais passarem. Começaram a desfilar, pisando a palha com cuidado e cheirando-a, éguas jovens, potros de crinas cortadas, potrinhos de mama e éguas grávidas, que atravessavam as portas passando as barrigas com precaução. As potras se juntavam de duas em duas e até de três em três, pondo a cabeça sobre o lombo das companheiras e apressando-se em sair, com o que de cada vez recebiam invectivas dos cavalariços. Os de mama às vezes se enfiavam entre as patas das mães de outros e relinchavam sonoramente respondendo à chamada das suas.
Uma potra muito travessa, mal se viu fora, virou a cabeça e pôs-se a dar coices e a relinchar; no entanto, não se atreveu a passar à frente da velha égua cinzenta Kuldiba, que, como sempre, ia à frente da eguada com expressão grave, andar pesado e balançando a barriga. Em poucos minutos, o estábulo, tão animado até pouco antes, ficou triste e vazio; erguiam-se melancólicos os postes do telheiro e só se via a palha pisoteada e revolvida de esterco. Por muito acostumado que estivesse a esse espetáculo, o cavalo mosqueado sentiu uma impressão penosa. Como se fizesse uma saudação, inclinou e levantou de leve a cabeça, suspirou até onde o permitia a cilha que lhe cingia o ventre e, movendo as patas intumescidas, seguiu atrás da égua, levando ao lombo ossudo o velho Nester.
"Sei que, quando sairmos pelo caminho, ele fará fogo e acenderá seu cachimbo de pau com enfeites de cobre, que traz preso a uma corrente" - pensou o cavalo. - "Isto me alegra, porque, de manhã cedo, quando ainda há orvalho, esse cheiro me agrada e me recorda muitas coisas gratas; só o que me incomoda é que o velho, quando está de cachimbo entre os dentes, fica fanfarrão, imagina que é personagem importante e sempre se senta de lado, machucando-me. Mas, tanto faz! Não é novidade, para mim, sofrer a fim de satisfazer o prazer dos outros. Que o pobre faça castelos! Só os pode fazer quando está sozinho, quando ninguém o vê. Assim, que monte de lado!", continuou a refletir o cavalo, enquanto avançava pelo meio do caminho, pisando cautelosamente com as patas curvadas.
CAPÍTULO II
Tendo levado a eguada para junto do rio, onde devia pastar, Nester apeou-se e tirou os arreios do cavalo. Os animais foram-se dispersando lentamente, pelo prado não pisado, coberto de orvalho e de um bafo que subia tanto da terra como do rio, o qual ali fazia uma volta.
Depois de tirar as rédeas do cavalo mosqueado, Nester coçou-lhe o pescoço e ele fechou os olhos, em sinal de agradecimento e de prazer.
- O velho gosta disso - murmurou Nester.
- Na verdade, o cavalo não gostava daquilo; fingia, por delicadeza. Por isso movera a cabeça, em sinal de aprovação. Logo, de modo completamente inesperado e sem motivo algum, Nester, supondo provavelmente que uma familiaridade excessiva poderia dar ideia equívoca a respeito de sua importância, empurrou a cabeça do cavalo e, brandindo a rédea, golpeou-lhe as pernas delgadas; e, sem dizer nada, foi sentar-se num tronco, no alto da colina, onde em geral costumava instalar-se.
Esse procedimento entristeceu o cavalo mosqueado, mas aparentou indiferença e, movendo a cauda rala e farejando algo, dirigiu-se para o rio, arrancando de passagem algumas ervas, só para distrair-se. Sem prestar atenção ao que faziam a seu redor as éguas jovens, os potros e potrinhos, que se alegravam com a manhã, e sabendo que o mais conveniente à sua saúde e sobretudo a seus anos era beber em jejum e comer depois, escolheu um lugar onde a margem era mais plana, fincou os cascos e esporões na água, enfiou nela o focinho e começou a beber aos sorvos, através dos lábios fendidos, movendo as ancas e agitando com prazer a cauda, de tronco ralo.
Uma égua baia, que sempre enraivecia o velho e lhe causava toda espécie de desgostos, aproximou-se dele andando pelo rio, como se por necessidade, mas realmente com o propósito de turvar-lhe a água diante do focinho. Mas o cavalo mosqueado já havia bebido bastante e, como se não notasse a intenção da égua, tirou tranquilamente, uma após a outra, as patas afundadas no lodo, sacudiu a cabeça e, afastando-se dos jovens, foi pastar. Esteve comendo durante três horas seguidas, quase sem parar em absoluto, mudando somente a posição das patas e tratando de não pisar a relva inutilmente. Depois de ter-se saciado a ponto de se lhe prender o ventre, como um saco, às costelas magras, deitou-se sobre as patas doloridas, buscando o modo por que menos lhe doessem, sobretudo a da direita, que era a mais fraca, e dormiu.
Existe a velhice majestosa, a repulsiva, assim como a velhice lamentável. Também há a majestosa e a repulsiva unidas. A do velho cavalo mosqueado era precisamente deste último gênero.
Era alto; media pelo menos dois archines e três verchki. Seu pelo era mosqueado de preto; ou antes, fora assim, pois na atualidade as manchas negras se haviam tornado de cor castanha suja. Sua pele consistia de três manchas: uma, na cabeça, estendendo-se até metade do pescoço e com uma calva irregular junto do nariz; as grandes crinas eram em parte brancas e em parte castanhas. A segunda cobria-lhe o flanco direito até a metade do ventre; a terceira, à garupa, abarcava a parte superior da cauda, descendo até metade das ancas. O resto da cauda era branco e matizado. A grande cabeça ossuda, com profundas cavidades sobre os olhos e com o lábio inferior, outrora preto, caído e fendido, pendia pesadamente do pescoço curvo e magro, que parecia de pau. O beiço caído deixava ver a língua pretuça, mordida de um lado, e os restos de uns dentes amarelentos e cariados. As orelhas, uma das quais estava torta, pendiam de ambos os lados da cabeça, e só de vez em quando se levantavam com indolência, para afugentar as pesadas moscas. Uma grande mecha do topete caía-lhe por trás de uma orelha; a testa nua estava afundada e rugosa e a pele tombava, formando bolsas. No pescoço e na cabeça, as veias se entrelaçavam, fazendo nós que se contraíam ao menor contacto com as moscas. Sua expressão era severa, concentrada e cheia de paciência e sofrimento. Suas patas dianteiras arqueavam-se nos joelhos; e numa delas, em que a mancha escura chegava até a metade da perna, havia um inchaço do tamanho de um punho fechado. As patas traseiras eram mais fortes, mas estavam muito roçadas nas ancas, onde por certo não tornaria o pelo a crescer. As quatro patas pareciam desmesuradamente largas em relação à delgadez do corpo. As costelas, embora fortes, estavam tão abertas e tensas, que a pele parecia estar pregada nos espaços intercostais. O peito e o lombo apresentavam sinais de antigos golpes e, na garupa, via-se uma ferida infectada; o tronco da cauda estava pelado e assinalavam-se as vértebras. Também na garupa, de cor castanha e perto da cauda, havia outra ferida, coberta de pelos brancos, do tamanho de uma palma de mão, que parecia produzida por mordedura, e uma cicatriz em forma de espátula. As patas de trás e a cauda estavam sempre sujas, por causa de seus constantes desarranjos intestinais. O pelo de todo o corpo embora curto, mantinha-se liso. No entanto, e a apesar da velhice repulsiva desse cavalo, um conhecedor afirmaria logo que, em outros tempos, fora um animal magnífico.
Um conhecedor diria, ainda, que só há na Rússia uma raça capaz de produzir ossatura tão ampla, tais cascos, pernas tão delgadas, pescoço tão bem colocado e, sobretudo, crânio tão perfeito, olhos tão grandes, negros e diáfanos, tais nós de veias no pescoço, junto à cabeça e uma pele e pelo tão finos. De fato, havia algo de majestoso na figura daquele cavalo, na terrível mescla de sinais repelentes da decrepitude com a expressão de aprumo e a serena consciência de sua beleza e de sua força.
Como ruína viva, permanecia de pé, em meio do prado coberto de orvalho, enquanto, a seu redor, se ouviam bufar, dar patadas e relinchar os potros novos da cavalhada dispersa.
CAPÍTULO III
Erguera-se o sol por cima do bosque e brilhava radioso, banhando de luz a relva e as sinuosidades do rio. O orvalho secava-se, formando grossas gotas. Aqui e ali, perto de um pequeno pântano e sobre o bosque, esfumavam-se os vapores matinais como tênue nuvenzita. Encrespavam-se as nuvens, mas ainda não se levantara o vento. Do outro lado do rio crescia centeio, verde ainda, e havia cheiro de vegetação fresca e de flores. Com voz rouca, um cuco cantava no bosque, e Nester, deitado de costas, contava quantos anos ainda lhe restariam de vida. Umas calhandras revoluteavam sobre o campo de centeio e o prado. Uma lebre tardia, surpreendida pela cavalhada, saltou para um lugar descoberto e refugiou-se ao pé de um arbusto, prestando atenção aos ruídos. Vaska ficara a dormir com a cabeça na relva e as éguas passaram diante dele, indo mais longe que antes. As velhas bufavam enquanto iam abrindo um sulco na relva e todas escolhiam lugares onde ninguém as pudesse incomodar. Mas já não comiam, apenas se deleitavam em mordiscar as ervas mais gostosas. Imperceptivelmente, toda a manada avançava na mesma direção. E, como sempre, a velha Kuldiba, gravemente à frente dos demais, indicava a possibilidade de ir mais adiante. A jovem Muchka, uma égua negra que tivera pela primeira vez um potrinho, relinchava sem parar e, com a cauda ao vento, chamava o filhote, que folgava a seu lado, de joelhos trêmulos. Uma égua jovem, chamada Lastochka, de cor baia escura e pelo liso e reluzente como se fosse de cetim, baixava a cabeça de modo tal que o negro topete sedoso lhe cobria a testa e os olhos, e brincava com a relva, arrancando-a jogando-a ao chão e pisoteando-a com os cascos úmidos de orvalho. Um dos filhotes maiores, inventor de um brinquedo, já elevara vinte e seis vezes a cauda curta, encrespada em trompa, caracoleando em volta da mãe, que pastava tranquilamente, pois já se acostumara com o caráter do filho, e só de vez em quando o fitava de soslaio, com grande olho negro. Um dos potrinhos menores, preto e cabeçudo, de topete encrespado entre as orelhas, e pequena cauda ainda meio de lado, tal como a tivera nas entranhas maternas, de orelhas tesas e vista fixa, imóvel, olhava o potro folgazão, talvez invejando-o ou talvez a perguntar para que fazia ele aquilo. Uns mamavam, empurrando com o focinho o ventre das mães; outros, sem saber por que, apesar de que as mães os chamassem, corriam desajeitadamente a trote em direção contrária, como se buscassem algo, e logo, sem razão aparente, detinham-se e prorrompiam em relinchos penetrantes e desesperados. Alguns estavam deitados, outros aprendiam a pastar ou se entretinham em coçar-se atrás da orelha com a pata traseira. Duas éguas prenhas estavam separadas do grupo, movendo lentamente as pernas, andando sem deixar de pastar. Via-se que todos respeitavam seu estado e que nenhum potro novo se atrevia a molestá-las. Se alguma potra travessa se atrevia a aproximar-se demasiado, um só movimento de orelhas ou de cauda era suficiente para fazer com que visse a impropriedade de sua conduta.
As potras de um ano de idade, que tinham as crinas cortadas, fingiam ser adultas e sérias; muito raramente saltavam ou se reuniam aos grupos alegres. Comiam a relva com atitude digna, arqueando os pescoços de cisne e meneando as caudas aparadas. Da mesma forma que as grandes, algumas se deitavam, se espojavam ou se coçavam mutuamente. O grupo mais alegre era formado pelos potros de dois e três anos e pelas éguas estéreis, que quase sempre andavam juntas. Entre elas se ouviam bufos, relinchos, saltos e grunhidos. Aproximavam-se umas das outras, colocavam a cabeça sobre as costas da companheira, farejavam-se, brincavam e, por vezes, sacudindo a cauda e levantando-a, corriam a trote ou a galope, com jeito altivo e presumindo diante das companheiras. A mais bonita e empreendedora desse grupo de potras era a travessa potranca baia. As demais a imitavam em qualquer coisa que fizesse e toda a manada a seguia a todos os lugares. Naquela manhã, sentia-se especialmente brincalhona. Inspirara-se-lhe a veia da alegria, como acontece com as pessoas. Depois de haver escarnecido do velho cavalo mosqueado, saíra trotando ao longo da água; em seguida, fingiu que se assustava; relinchou e correu, a toda velocidade, pelo prado, obrigando Vaska a correr atrás dela e das companheiras que a seguiam. Depois, entreteve-se comendo um pouco e espojando-se. Zombou das velhas, cortando-lhes o caminho; separou um potrinho da mãe e perseguiu-o, como se quisesse mordê-lo. A mãe, assutada, deixou de comer, e o potrinho gemia com voz penosa, mas a potranca nem sequer o tocou, limitando-se a fazer-lhe medo e dando com isso um espetáculo que suas companheiras contemplaram com prazer. Depois, ocorreu-lhe apaixonar um cavalinho que puxava um arado, do outro lado do rio, manejado por um camponês. A potra se deteve, levantou a cabeça com ar altivo, virando-a docemente de lado, sacudiu-se e relinchou com voz doce e delicada. Naquele relincho soava a zombaria, mas também havia sentimento e certa tristeza. Expressava desejo, aspiração e promessa de amor.
Ali a codorniz, correndo de um lado para outro, entre os juncais espessos, chama apaixonadamente seu amigo; ali o cuco e a calhandra cantam seu amor e as flores transmitem umas às outras, por meio do vento, o pólen aromático.
"Também sou moça, formosa e forte - dizia a potra em seu relincho - Mas ainda não me foi outorgado provar a doçura deste sentimento, nem sequer ainda me viu um só amante".
E esse relinchar, tão significativo, ressoou pelo prado e chegou até ao cavalinho, que ergueu as orelhas e se deteve. O mujique o fustigou, mas o cavalinho estava enfeitiçado por aquela voz distante e relinchou também. Irritou-se o camponês, puxou as rédeas e deu-lhe uma pancada tão forte na barriga que o animal continuou seu caminho sem ter podido terminar o relincho. Sentiu-se invadido pela doçura e pela tristeza enquanto chegavam à cavalhada, do distante campo de centeio, os sons de seu relincho apaixonado e da voz iracunda do mujique.
Se bastara o som daquela voz para impressionar o cavalinho a ponto de fazê-lo esquecer seu dever, que não teria acontecido se houvesse visto a bela e travessa potra que o chamara, com as ventas dilatadas, aspirando o ar como se algo a atraísse, vibrando em todo o corpo jovem e formoso?
Mas a égua moça não se deteve por muito tempo a pensar em suas impressões. Quando se extinguiu a voz do cavalinho, relinchou zombeteiramente e, baixando a cabeça, começou a escavar a terra com uma das patas, e a seguir foi despertar e encolerizar o cavalo mosqueado. Este era sempre a vítima e o bufão daquela juventude feliz. Faziam-no padecer mais do que as pessoas. Não fizera mal a uns nem a outros. As pessoas precisavam dele, pelo menos; por que, porém, o mortificavam aquelas éguas novas?
CAPÍTULO IV
Ele era velho e elas, novas. Ele era fraco e elas, bem nutridas. Ele estava sempre triste e elas, sempre alegres. Portanto, era ele um ser alheio, completamente diferente e não havia razão para terem pena dele. Os cavalos só costumam ter pena de si mesmos e, de vez em quando, só sentem piedade daqueles em cuja pele podem imaginar a si próprios; mas que culpa teria o cavalo mosqueado de ser velho, magro e feio? Parece que nenhuma. Contudo, segundo os cavalos, era culpado de tudo isso; segundo eles, só têm razão os que são fortes, jovens e felizes, os que têm tudo à sua frente, aqueles cujos músculos estremecem por causa de uma tensão inútil e cuja cauda se levanta em trompa. Talvez o cavalo mosqueado compreendesse isso e, nos momentos tranquilos, reconhecesse que a culpa era sua, que já havia vivido sua vida e que chegara a hora de pagar seu tributo. Mas, no fundo, era um cavalo e, com frequência, incapaz de reprimir sentimentos como o desgosto, a tristeza e a indignação ao contemplar esses jovens que o sentenciavam por uma coisa que também eles teriam de sofrer no fim da vida. Um sentimento aristocrático era também a causa daquele procedimento desapiedado. Cada uma daquelas potras descendia, por parte de pai ou de mãe, do célebre Smetanka; e o cavalo mosqueado era de procedência desconhecida. Era um cavalo adventício; haviam-no comprado, três anos antes, numa feira, por oitenta rublos em notas de banco.
A potra baia, como se estivesse dando um passeio, aproximou-se das próprias narinas do cavalo mosqueado e empurrou-o. Este já sabia do que se tratava; sem abrir os olhos, baixou as orelhas e mostrou os dentes. A potra virou as costas e fez como se lhe quisesse dar um coice. O cavalo mosqueado abriu os olhos e afastou-se. Já não tinha sono e começou a comer. A potra travessa aproximou-se de novo dele, seguida por suas companheiras. Uma destas, de dois anos de idade e muito estúpida, que sempre imitava a baia em tudo, ia também fazê-lo desta vez e, como ocorre em tais casos, passou do limite. Em geral, a égua baia aproximava-se do cavalo mosqueado, como se fosse fazer alguma coisa, e passava diante mesmo de seu focinho, sem dirigir-lhe a vista, de modo que ele não sabia se deveria irritar-se ou não; e aquilo era realmente divertido. Desta vez fez o mesmo, mas a que a seguia e que estava especialmente alegre empurrou o mosqueado com toda a desenvoltura. Este tornou a mostrar os dentes, relinchou e, com agilidade inesperada nele, lançou-se atrás dela e mordeu-lhe a anca. A égua respondeu dando forte coice nas fracas costelas do velho, que até emitiu um gemido surdo. Quis correr a persegui-la, mas logo mudou de parecer e se afastou, com suspiro profundo. Provavelmente, toda a juventude da cavalhada considerou como ofensa pessoal a insolência que o velho cavalo se permitira com relação à potra nova; durante o resto daquele dia não o deixaram pastar nem lhe deram um momento de descanso, de modo que até o cavalariço teve de intervir várias vezes para separá-los, sem poder compreender o que havia sucedido. O cavalo mosqueado estava tão ofendido que ele próprio se aproximou de Nester quando o velho se dispôs a recolher a manada e se sentiu mais feliz e tranquilo quando selado e montado.
Deus sabe o que pensaria ao levar às costas o velho Nester. Talvez pensasse, com amargura, na impertinente e cruel juventude, ou, com aquela altivez desdenhosa e silenciosa própria dos velhos, perdoasse seus ofensores; mas o caso é que não deixou suas reflexões transparecerem, até que regressaram à casa.
Naquela noite, chegaram uns parentes de Nester. Ao conduzir a cavalhada diante das isbás dos servos, notou um carro com um cavalo amarrado à frente da escadinha de sua casa. Apressou-se tanto em recolher a cavalhada que, sem desencilhar o cavalo mosqueado, deixou-o no pátio e, ordenando a Vaska que ele o fizesse, fechou a porta e foi ver seus parentes. Talvez por causa da ofensa feita à potra nova, bisneta de Smetanka, pelo "tinhoso inútil", de pais desconhecidos, comprado numa feira, que havia molestado o sentimento aristocrático de toda a cavalhada, ou talvez porque o cavalo mosqueado, tendo ao lombo a sela alta sem cavaleiro, oferecesse um aspecto estranho e fantástico para as éguas, o fato é que naquela noite sucedeu algo insólito na cavalariça. Todas as éguas, tanto as jovens como as mais velhas, perseguiram o cavalo mosqueado, mostrando os dentes e obrigando-o a correr de um lado para outro; e ouviram-se os coices que lhe davam nos flancos delgados, assim como sua pesada respiração. O cavalo já não podia suportar mais aqueles golpes, nem era capaz de evitá-los. Deteve-se em meio do pátio e sua cara expressou primeiro uma débil raiva senil e impotente e, depois, o desespero. Baixou as orelhas. E, subitamente, aconteceu algo que obrigou todos a ficarem quietos. Viazopurika, a mais velha das éguas, aproximou-se dele, cheirou-o e suspirou. O cavalo mosqueado suspirou também.
CAPÍTULO V
No centro do pátio, iluminado pela lua, via-se a figura alta do cavalo mosqueado e o arção saliente. Os cavalos, imóveis, permaneciam em seu redor, observando profundo silêncio, como se tivessem acabado de inteirar-se de algo extraordinário. E assim era, com efeito.
Eis aqui o que o cavalo lhes contou:
PRIMEIRA NOITE
"Sim, sou filho de Liubesni I e de Baba. Meu nome de linhagem é Mujique I. Sou Mujique I e, para os da rua, Kolstomer, assim apelidado pelo vulgo em razão de minha marcha ampla, que nunca teve igual em toda a Rússia. Não há no mundo um cavalo de sangue mais nobre que o meu. Eu nunca vos teria dito isso. Para quê? Nunca me teríeis reconhecido. Como até há pouco não me havia reconhecido Viazopurika, que esteve comigo em Krenovo. Sem o testemunho dela, não me acreditaríeis. Eu nunca vos teria dito isso. Não necessito da compaixão cavalar. Mas quisestes que eu o dissesse. Pois bem: sou aquele Kolstomer que os caçadores procuram em vão, o Kolstomer que conheceu pessoalmente o conde e que foi vendido por haver vencido o favorito dele, Liebed.
Quando nasci, não sabia o que significava a palavra mosqueado. Acreditava que era um cavalo comum. Recordo que a primeira observação que fizeram sobre minha pele nos surpreendeu profundamente, a mim e a minha mãe. Devo ter nascido de noite; já para a madrugada, bem lambido por minha mãe, estava de pé. Lembro que incessantemente desejava algo e que tudo me parecia muito estranho e simples ao mesmo tempo. Os estábulos ficavam num corredor largo e tépido, com portas de grades, que deixavam ver o exterior. Minha mãe me ofereceu as tetas, mas eu era tão ingênuo que tanto a empurrava com o focinho entre as patas dianteiras como no ventre. De repente, minha mãe se virou para a porta e, passando por cima de mim, afastou-se para um lado. O palafreneiro que tratava de nós contemplava-nos através das grades.
- A Baba pariu! - exclamou, abrindo o ferrolho; e, andando pela palha fresca, abraçou-me com as duas mãos. - Olha, Taras, é um potro mosqueado. Parece uma pega.
Soltei-me de seus braços, e caí de joelhos.
- Que diabrete! - disse o cavalariço.
Minha mãe ficou inquieta, mas não fez nada para defender-me. Limitou-se a suspirar profundamente e afastou-se um pouco. Chegaram outros cavalariços e puseram-se a examinar-me. Um deles correu a avisar o chefe do estábulo. Todos se riam de minhas manchas e me davam nomes estranhos. Nem mesmo minha mãe entendia o significado dessas palavras. Até então, não houvera em nossa linhagem um só cavalo de pele mosqueada. Não pensávamos que isso pudesse ser mau de qualquer forma. E já então todos louvavam minha constituição e minha força.
- Como é esperto! Não se pode segurá-lo! - disse o palafreneiro.
Pouco depois chegou o chefe das cavalariças e estranhou minha cor; pareceu até ficar desgostoso.
- A quem puxou esse monstro? O general não quererá deixá-lo nas cavalariças - disse ele. - Ah, Baba, boa coisa nos fizeste! - acrescentou, dirigindo-se a minha mãe. - Teria sido melhor que fosse calvo; mas mosqueado...
Minha mãe nada respondeu e, como sempre em tais casos, suspirou.
- A quem terá saído? Parece um mujique. Não podemos deixá-lo na cavalhada, seria uma vergonha. No entanto, é um bom cavalo - dizia o chefe, assim como todos os demais, enquanto me contemplavam.
Poucos dias depois, o general em pessoa veio ver-me. De novo, não sei por que, todos se horrorizaram e invectivaram minha mãe pela cor de minha pele.
- No entanto, é um bom cavalo, um cavalo muito bom - diziam todos os que me viam.
Até a primavera, ficamos separados, cada qual com sua mãe; e só algumas vezes, quando o sol derretia a neve do telhado dos estábulos, nos levavam ao grande pátio coberto de palha fresca. Ali conheci todos os meus parentes, tanto os próximos como os afastados. Ali vi como, por portas diferentes, saíam as éguas mais famosas daquele tempo, com seus rebentos. Entre elas se encontravam a velha Golanka, Muchka, a filha de Smetanka, Krasnuka e a hacaneia de sela Dobrokotika. Todas as celebridades daquela época se reuniam ali com seus filhos, passeavam ao sol, espojavam-se na palha fresca e cheiravam-se mutualmente, da mesma forma que os cavalos de hoje. Não esqueço até agora o aspecto que apresentava aquela eguada, cheia de potras formosas. Estranha-vos pensar que, em meu tempo, fui jovem e esperto, mas foi assim. Ali se encontrava também esta mesma Viazopurika, que então era uma potranca de um ano, simpática, alegre e cheia de vivacidade; mas direi, sem querer ofendê-la, que, embora aqui a considerem uma raridade de seu sangue, naquele estábulo era um dos piores exemplares. Ela mesma o confirmará.
Minha pele mosqueada, que tanto desagradava aos homens, era, em compensação, apreciada pelos cavalos. Todos me rodeavam e, admirados, brincavam comigo. Comecei a esquecer as palavras das pessoas a respeito de minha pele e sentia-me feliz. Mas não tardei a conhecer a primeira dor de minha vida, causada por minha própria mãe. Quando a neve começou a derreter-se, as codornizes piavam sob os beirais dos telhados e a primavera começou a sentir-se com mais força no ar; minha mãe transformou-se com relação a mim. Seu caráter mudou por completo. Ora, sem causa aparente, começava a brincar, correndo pelo pátio, coisa que não convinha em absoluto à sua idade; ora permanecia pensativa e relinchava; ora mordia e trocava coices com as companheiras. Às vezes, cheirava-me e fungava, com desgosto. Ou então, saia a tomar sol e apoiava a cabeça no pescoço de sua prima Kupchika, ficando a coçar-lhe o lombo por muito tempo, em atitude pensativa, sem deixar que me aproximasse de suas tetas. Um dia, o chefe das cavalariças ordenou que pusessem freio em minha mãe e levaram-na do estábulo. Minha mãe relinchou; respondi e quis acompanhá-la, mas nem sequer ela me fitou. Taras, o criado, agarrou-me no momento em que fechavam a porta atrás de minha mãe. Precipitei-me, derrubando-o sobre a palha, mas a porta estava fechada e só pude ouvir os relinchos de minha mãe, que se afastava. Já não me chamava e em sua voz se distinguia uma expressão completamente diferente. A seus relinchos responderam outros muito possantes; segundo soube depois, eram os de Dobri I, que, conduzido por dois cavalariços, ia ao seu encontro. Não me lembro como Taras saiu do estábulo; sentia-me demasiado triste. Pressentia que acabara de perder para sempre o amor de minha mãe. "E tudo isso, só por ser um cavalo mosqueado", pensava, recordando as palavras dos homens a respeito de minha pele. Foi tal a raiva que me invadiu que comecei a dar pancadas com a cabeça na parede do estábulo, até cair exausto e coberto de suor.
Ao fim de algum tempo, minha mãe voltou. Ouvia-a chegar a trote e aproximar-se do estábulo com passos diferentes. Abriram-lhe a porta; mal a reconheci, tanto se havia rejuvenescido e embelezado. farejou-me, fungou e começou a relinchar. Por sua expressão, notei que já não me queria. Falou-me de como Dobri era formoso e de quanto o amava. Aqueles encontros se repetiram e cada vez mais esfriavam minhas relações com a minha mãe.
Em breve nos deixaram sair ao prado. Então, conheci novas alegrias, que substituíram a perda do amor materno. Tinha amigas e companheiros; aprendemos juntos a comer a relva, a relinchar como os mais velhos e a galopar em volta de nossas mães, com a cauda erguida. Foi um período feliz. Tudo me era perdoado; todos me estimavam, me admiravam e eram condescendentes, fizesse eu o que fizesse; mas isso durou pouco. Não tardou a acontecer-me uma coisa terrível".
O cavalo mosqueado suspirou profundamente e afastou-se do grupo.
Amanhecera já desde algum tempo. As portas rangeram e entrou Nester. Os cavalos se separaram. O cavaleiro arranjou a sela do velho mosqueado e levou a cavalhada para fora.
CAPÍTULO VI
SEGUNDA NOITE
Depois de novamente recolhidos os cavalos, voltaram eles a reunir-se em redor do velho mosqueado.
"No mês de agosto, separaram-nos de nossas mães - disse o cavalo, continuando sua narrativa. - Senti pesar intenso. Via que minha mãe levava em suas entranhas meu irmão mais novo, o célebre Usane, e que eu já não era para ela o mesmo de antes. Não sentia ciúmes, mas tornava-me cada vez mais frio em relação a ela. Além disso, sabia que, ao separar-me de minha mãe, levar-me-iam ao departamento dos potros, onde estes eram encerrados em grupos de dois ou três e de onde saía para o ar livre, todos os dias, uma manada de potros novos. Fiquei com o potro Mili; era um cavalo de sela e mais tarde foi montado pelo imperador, sendo reproduzido em selos, gravuras e estátuas. Então, não passava de um filhote de pelo delicado e reluzente, pescoço de cisne e patas delgadas e retas. Sempre estava alegre e mostrava-se afetuoso e amável; sempre estava disposto a brincar, a lamber-se e a fazer pilhérias tanto com os cavalos como com as pessoas. Sem querer, tornamo-nos amigos, porque vivíamos juntos; e essa amizade se manteve durante toda a nossa adolescência. Era alegre e despreocupado; já naquela época começava a interessar-se pelo amor, brincava com as éguas jovens e zombava de minha inocência. Para grande infelicidade minha, quis imitá-lo, por amor-próprio; e muito depressa deixei que o amor me arrastasse. Esta inclinação precoce foi a causa de uma mudança importantíssima em meu destino. Acontece que me enamorei.
Viazopurika tinha um ano mais do que eu e éramos muito bons amigos; mas, para os fins de outono, observei que começava a evitar-me... Não contarei a triste história de meu primeiro amor; a própria Viazopurika deve lembrar-se de minha louca paixão, que terminou com uma mudança importantíssima em minha vida. Os cavalariços expulsaram Viazopurika e me deram uma sova. Conduziram-me a um estábulo especial, onde passei a noite inteira relinchando, como se pressentisse o acontecimento que iria ocorrer no dia seguinte.
De manhã, chegaram ao pátio do estábulo o general, o chefe das cavalariças, o palafreneiro e os ajudantes; e armou-se grande gritaria. O general ralhava com o chefe, que se desculpava, dizendo que ele não havia mandado que me soltassem e que os ajudantes o haviam feito por sua conta. O general ameaçou mandar açoitar a todos eles e disse que não poderiam ser conservados todos os potros. O chefe prometeu cumprir suas ordens. Depois, calaram-se e saíram dali. Não compreendi nada; mas notei que algo se tramava contra mim.
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No dia seguinte, deixei de relinchar para sempre e tornei-me o que sou agora. O mundo mudou completamente ante meus olhos. Nada me era agradável; fechei-me em mim mesmo e comecei a refletir. A princípio, tudo me pareceu odioso. Até deixei de comer, de beber e de andar. Nem sequer pensava em brincar. Às vezes, vinham-me desejos de caracolear, de galopar ou de relinchar; mas imediatamente se apresentava a terrível pergunta: "Para quê? Com que fim?" E minhas últimas forças me abandonavam.
Certa vez me tiraram à noite, quando a cavalhada regressava do prado. De longe avistei uma nuvem de poeira e os contornos confusos de nossas mães. Ouvi os relinchos alegres e o ruído dos cascos. Detive-me, embora o freio, puxado pelo criado que me levava, me ferisse a nuca; e fitei a cavalhada que se aproximava da mesma forma por que se fita a felicidade que se perdeu para sempre. As éguas aproximavam-se e pude distinguir, uma por uma, as silhuetas belas, majestosas, sãs e bem nutridas que eu conhecia. Algumas delas também me olharam. Já não sentia a dor que me produzia o freio que o criado puxava. Esqueci-me de minha condição e, sem querer, relinchei e corri a trote; mas meu relincho soou triste, lamentável e ridículo. As éguas não se riram de mim, mas notei que muitas desviavam a vista, por decoro. Ao que parece, eu lhes inspirava repulsa, dó, desgosto e, sobretudo, riso. Fazia-as rir o meu pescoço esquálido e inexpressivo, a minha cabeça enorme (durante aquele tempo eu havia emagrecido), minhas amplas patas sem garbo e meu porte estúpido ao empreender um leve trote em volta do criado, por hábito antigo. Ninguém respondeu a meu relincho e todos me viraram as costas. Logo compreendi tudo: compreendi até que ponto me tornara estranho para todos eles, e nem lembro sequer como voltei.
Já antes eu tivera certa tendência para a seriedade e a meditação, mas então sofri uma transformação definitiva. Meu pelo, que despertava desprezo tão estranho entre as pessoas, minha desgraça inesperada e, além disso, minha situação especial na cavalhada, que pressentia, mas que não conseguia explicar a mim mesmo, obrigaram-me a concentrar-me ainda mais dentro de meu íntimo. Refleti sobre a injustiça dos homens, que me censuravam por causa da cor da pele; sobre a inconstância do amor materno e, em geral, do amor feminino, que dependia de certas circunstâncias físicas. Principalmente, meditei sobre as particularidades daquele estranho animal a que chamam gênero humano e a que estamos tão estreitamente ligados, e sobre as particularidades a que se devia minha condição, que pressentia mas não chegava a entender. A importância dessa particularidade e das propriedades humanas sobre as quais ela se baseava foi-me revelada pelo acontecimento seguinte.
Foi no inverno, na época das festas. Durante todo o dia haviam-me deixado sem comer e sem beber. Posteriormente, inteirei-me de que isso acontecera porque o palafreneiro se embriagara. O chefe dos estábulos veio ver-me e, ao verificar que eu não tinha ração, começou a invectivar o criado (que não se encontrava ali) com palavras grosseiras; depois, saiu. No dia seguinte, o palafreneiro, acompanhado de outro criado, entrou no estábulo para dar-me a ração. Notei que estava especialmente pálido e triste. Sobretudo, em suas largas costas notava-se algo de significativo, que despertava compaixão. Atirou o feno por cima da grade, com gesto de aborrecimento e, quando me aproximei, com a intenção de por a cabeça em seu ombro, assestou-me um murro tão forte, em pleno focinho, que retrocedi. Depois, deu-me um pontapé na barriga.
- Se não fosse por causa desse tinhoso não teria acontecido nada! - exclamou.
- Por que dizes isso? - perguntou o outro criado.
- Falta de cuidado: o chefe não inspeciona os cavalos do conde. Mas o seu potro, vem visitá-lo duas vezes por dia.
- Deram-lhe esse mosqueado de presente?
- O diabo sabe se o deram ou se o venderam. O fato é que podemos matar de fome os cavalos do conde; ele não se preocupa com isso, em absoluto. Atreva-se alguém, no entanto, a deixar sem ração o seu potro. "Deita-te", disse-me ele. E começaram a acoitar-me. Não parece cristão. Tem mais pena dos animais que das pessoas. Deve ser herege. O bárbaro contou pessoalmente os açoites que me davam. Nem mesmo o general manda açoitar assim. Fiquei com as costas todas lanhadas.
Compreendi muito bem o que dizia a respeito dos açoites e do cristianismo. Mas ficou completamente obscura para mim a palavra seu, pela qual pude deduzir que estabeleciam um vínculo a ligar-me ao chefe das cavalariças. Então, não pude compreender de modo algum em que consistiria tal vínculo. Só muito depois, quando me separaram dos demais cavalos, é que expliquei a mim mesmo o que aquilo representava. Naquela época, eu não era capaz de entender a significação do fato de ser eu propriedade de um homem. As palavras "meu cavalo", referindo-se a mim, a um cavalo vivo, pareciam-me tão estranhas como as palavras "minha terra", "meu ar", "minha água".
No entanto, elas exerceram sobre mim enorme influência. Sem cessar pensava nelas e só depois de longo contato com os seres humanos pude explicar-me a significação que, afinal, lhes é atribuída. Querem dizer o seguinte: os homens não dirigem a vida com fatos, mas com palavras. Não os preocupa tanto a possibilidade de fazer ou deixar de fazer alguma coisa, como a de falar de objetos diferentes mediante palavras convencionais. Essas palavras, que consideram muito importantes, são, sobretudo, meu ou minha, teu ou tua. Aplicam-nas a todas as espécies de coisas e de seres, inclusive à terra, ao seus semelhantes e aos cavalos.
Além disso, convencionaram que uma pessoa só pode dizer meu a respeito de uma coisa determinada. E aquele que puder aplicar a palavra "meu" a um número maior de coisas, segundo a convenção feita, considera-se a pessoa mais feliz. Não sei por que as coisas são desse modo; mas sei que são assim. Durante muito tempo procurei compreender isso, supondo que daí viria algum proveito direto; mas verifiquei que isso não era exato.
Muitas pessoas das que me chamavam seu cavalo nem mesmo me montavam; mas outras o faziam. Não eram elas as que me davam de comer, mas outros estranhos. Também não eram as pessoas que me faziam bem, mas os cocheiros, os veterinários e, em geral, pessoas desconhecidas. Posteriormente, quando ampliei o círculo de minhas observações, convenci-me de que o conceito de meu - e não só com relação a nós, cavalos - não tem qualquer outro fundamento além de um baixo instinto animal, que os homens chamam sentimento ou direito de propriedade. O homem diz "minha casa", mas nunca vive nela; preocupa-se só em construí-la e mantê-la. O comerciante diz "minha loja", ou "meus tecidos", por exemplo, mas não faz suas roupas com os melhores tecidos que vende na loja. Há pessoas que chamam sua uma extensão de terra e nunca a viram nem passaram por ela. Há outras que dizem serem suas certas pessoas que nunca viram nesta vida e a única relação que têm com elas consiste em causar-lhes dano. Há homens que chamam de suas certas mulheres, e estas convivem com outros homens. As pessoas não procuram, em sua vida, fazer o que consideram o bem, e sim a maneira de poder dizer do maior número possível de coisas: é meu. Agora estou persuadido de que nisso reside a diferença essencial entre nós e os homens. Portanto, sem falar de outras prerrogativas nossas, só por este fato podemos dizer, com segurança, que, entre os seres vivos, nos encontramos em nível mais alto que o dos homens. A atividade dos homens, pelo menos a dos homens com quem tenho tratado, se traduz em palavras, ao passo que a nossa se manifesta em fatos. Assim, pois, o chefe das cavalariças açoitou o criado porque havia adquirido o direito de chamar-me seu cavalo. Este descobrimento, que profundamente me consternou, assim como os conceitos que minha pele despertara entre as pessoas e a volubilidade de minha mãe, obrigaram-me a tornar-me o cavalo sério e pensativo que sou.
Sentia-me três vezes desgraçado: meu pelo era mosqueado, haviam-me castrado e os homens imaginavam que eu não pertencia a Deus nem a mim mesmo, como é próprio de todo ser vivente, e sim, a um cavalariço.
Disto se derivaram numerosas consequências. A primeira delas foi que me separaram dos outros cavalos, alimentaram-me melhor e me ajaezaram antes do que em geral costuma fazer-se. Ajaezaram-me, pela primeira vez, aos dois anos de idade. Lembro-me de que o chefe das cavalariças, que imaginava que eu lhe pertencia, em companhia de uma série de criados, começou a pôr-me arreios, esperando que eu me encabritasse ou me rebelasse. Amarraram-me com cordas, para introduzir-me entre varais. Puseram-me às costas uns arneses em forma de cruz, que ataram às varas, para que eu não desse coices; e eu só esperava uma oportunidade de demonstrar-lhes meu amor ao trabalho. Assombraram-se ao ver que me portava como um cavalo velho. Passearam comigo e fui-me exercitando a correr a trote. Cada dia que se passava, maiores eram os meus progressos, de maneira que, três meses depois, o próprio general e muitos outros louvaram minha andadura. Mas, coisa estranha: como imaginavam que eu não me pertencia a mim mesmo, e sim ao chefe dos estábulos, minhas andaduras tinham aplicações muito diferentes das dos meus companheiros.
A meus irmãos, os potros, faziam com que corressem e cronometravam suas corridas. Examinavam-nos detidamente, atrelavam-nos a carruagenzinhas douradas e os cobriam com ricas gualdrapas. Eu, porém, puxava a carruagem comum do cavalariço, quando ele ia tratar de seus assuntos em Chesmene e outras aldeias. Tudo isto era devido à minha pele e, sobretudo, a que, na sua opinião, eu não pertencia ao conde, mas ao chefe dos estábulos.
Amanhã, se ainda vivermos, contar-vos-ei a consequência principal que teve para mim o direito de propriedade que o chefe dos estábulos se atribuía".
Durante todo aquele dia, os cavalos trataram Kolstomer com respeito. Mas o trato que Nester lhe dispensou foi tão grosseiro como sempre. O cavalinho do mujique, ao aproximar-se a cavalhada, relinchou; e a jovem égua baia tornou a exibir sua coqueteria.
CAPÍTULO VII
TERCEIRA NOITE
Saiu a lua e seu fino alfanje iluminou a figura de Kolstomer, que permanecia no meio do pátio. Os cavalos se agruparam à sua volta.
"A consequência principal e extraordinária de não pertencer eu ao conde nem a Deus, mas ao chefe das cavalariças - continuou o velho mosqueado - foi que aquilo que em geral constitui o nosso maior mérito, isto é, a marcha rápida, deu motivo a que me expulsassem da cavalhada. Um dia, faziam provas com Liebed, e o cavalariço, que chegava de chesmene montado em mim, aproximou-se da pista. Liebed passou junto de nós; corria bem, mas bamboleava-se e não tinha aquela pureza de movimentos que eu adquirira ao exercitar-me. Instantaneamente, ao contacto de uma pata com o chão, eu levantava a outra, sem fazer o menor esforço em vão, aproveitando-me disso para correr para a frente. Quando Liebed passou diante de nós, corri para a pista e o chefe das cavalariças não me reteve.
- Querem que experimentemos o meu mosqueado? - gritou.
E, quando Liebed chegou por segunda vez perto de mim, o cavalariço soltou-me. Liebed já havia tomado carreira e, por isso, fiquei para trás na primeira volta, mas, na segunda, fui recuperando terreno, alcancei-o e passei à sua frente. Fizeram outra prova e o resultado foi idêntico. Eu era melhor corredor. Isto horrorizou a todos. Decidiram vender-me quanto antes e, para quanto mais longe, melhor, para que nem sequer se ouvisse falar de mim. "Se o conde souber disso, passaremos maus bocados", diziam. E venderam-me a um traficante de cavalos.
Com ele estive pouco tempo. Comprou-me um hussardo, que fora lá a negócios de remonta. Tudo aquilo era tão injusto e tão cruel que me alegrei quando me afastaram de Krenovo, separando-me em definitivo de tudo quanto me era agradável e querido. Permanecendo com a cavalhada eu sofria demasiado. Aos outros esperavam o amor, as honrarias, a liberdade; a mim, só o trabalho e as humilhações, as humilhações e o trabalho, até o fim de minha vida. Por quê? Por que eu era mosqueado e porque, em razão disso, tinha de pertencer a alguém".
Naquela noite, Kolstomer não pôde prosseguir sua narrativa. Aconteceu um fato que semeou agitação entre os cavalos. Rupchika, uma potra prenhe, que escutara o relato desde o início, virou-se de repente e dirigiu-se com lentidão para debaixo do telhado, onde se pôs a gemer tão fortemente que chamou a atenção de todos; depois, deitou-se, levantou-se e tornou a deitar-se. As éguas velhas compreenderam de que se tratava, mas as jovens se inquietaram e, abandonando o cavalo mosqueado, rodearam a enferma. Para o amanhecer, havia um potro novo, que se bamboleava nas perninhas. Nester chamou o criado. Levaram a égua e o potrinho para o estábulo e os demais foram para o prado.
CAPÍTULO VIII
QUARTA NOITE
Ao anoitecer, quando as portas se fecharam e tudo ficou em silêncio, o mosqueado assim continuou:
"Pude fazer múltiplas observações a respeito das pessoas e dos cavalos durante a época em que fui passando de dono para dono. Dois amos foram os que me tiveram por mais tempo: o oficial de hussardos, que era um príncipe; e depois uma velha, que vivia em Nikolai Ivavleni.
Com o hussardo passei os melhores dias de minha vida.
Embora tenha sido ele a causa de minha ruína, embora não tivesse estima a ninguém, eu o estimava e estimo, precisamente por isso. Agradava-me ver que ele era elegante, feliz e rico e que, por isso mesmo, a ninguém amava. Compreendeis esse elevado sentimento cavalar. Sua frieza, sua crueldade e minha dependência dele emprestavam força singular a meu afeto. E, em meus bons tempos, pensava: "Mata-me, extenua-me; sentir-me-ei tanto mais feliz".
Comprou-me do traficante de cavalos, que por sua vez me adquirira do cavalariço por oitocentos rublos. Elogiou-me, porque ninguém tinha cavalos mosqueados. Foi minha época melhor. O hussardo tinha uma amante. Soube disso porque todos os dias eu o levava à casa dela e, às vezes, tinha que levar os dois. A amante era muito bela, o hussardo era distinto e também o era seu cocheiro. Por isso eu queria bem a todos. E vivia a meu gosto. Minha vida transcorria da maneira seguinte: de manhã, o criado vinha limpar-me. Era um moço novo, que procedia de família camponesa. Abria a porta, para que saísse o bafo; tirava o esterco, removia as gualdrapas dos cavalos e começava a raspar-me o corpo com escovas, brossa e almofaça. Eu, de brincadeira, mordiscava-lhe a manga e batia com as patas no chão. Depois, levavam-nos, uns após os outros, a umas tinas de água fria; e o rapaz admirava minha pele mosqueada, minhas patas retas "como umas flechas", meus cascos largos e meu lombo lustroso, "sobre o qual se podia dormir". Enfiava feno pelas grades da porta e colocava aveia na manjedoura de carvalho. Depois, vinha Feofane, o cocheiro principal.
O amo e o cocheiro se pareciam. Ambos eram valentes e não gostavam de ninguém, a não ser de si mesmos; por isso, todos os apreciavam. Feofane costumava usar camisa vermelha e calças de feltro. Gostava de vê-lo chegar, nos dias de festa ,com os cabelos untados de brilhantina. Costumava exclamar: "Então, não te lembras de mim?" E empurrava-me com o cabo do forcado, mas sem fazer-me dano, só para pilheriar. Eu compreendia imediatamente; agachava as orelhas e rangia os dentes. Havia um potro preto que formava parelha com outro. De noite, também me atrelavam com ele. Chamava-se Polkane, não entendia as brincadeiras e era mau como um demônio. No estábulo, permanecíamos um ao lado do outro e ele me atormentava seriamente. Feofane não lhe tinha medo. Costumava aproximar-se dele claramente e soltar um grito; o potro parecia disposto a matá-lo, mas Feofane esquivava-se e conseguia lançar-lhe a corda ao pescoço. Uma vez, tomamos ambos a rédea nos dentes, em Kuznietski. Mas nem o amo nem o cocheiro se assustavam; ambos riram, gritaram às pessoas que se afastassem e depois retomaram as rédeas para que não atropelássemos ninguém.
Servindo ao hussardo, perdi minhas melhores faculdades e a metade de minha vida. Ali comecei a ressentir-me das pernas. Mas, apesar disto, foi a melhor época de minha existência. Às doze horas costumavam atrelar-nos, depois de nos untarem os cascos e de nos refrescarem o topete e as crinas.
O trenó era de junco trançado e tapizado de veludo: os arneses tinham pequenas fivelas de prata e as rédeas eram de seda.
Os arneses ajustavam-se tão bem que, quando estávamos prontos e encilhados, não se podia distinguir onde terminavam eles e onde começava o cavalo. Costumavam atrelar-me num telheiro. Chegava Feofane - que tinha as cadeiras mais largas que os ombros - com um cinturão vermelho que lhe chegava quase debaixo dos braços; examinava os arreios, sentava-se e, depois de ajeitar o cafetã, dizia umas palavras por pilhéria, preparava o chicote apenas por formalidade, pois quase nunca me fustigava e exclamava: "Andemos". Saíamos pela porta da cocheira; a cozinheira, que ia esvaziar o balde, parava no umbral; e os homens que traziam lenha ao pátio olhavam-nos com os olhos esbugalhados. Dávamos uma voltazinha e parávamos. Então chegavam os lacaios e os outros cocheiros, que se punham a falar. Assim esperávamos todos, por vezes, até três horas seguidas, junto à porta da casa, dando de vez em quando um pequeno passeio e detendo-nos de novo. Finalmente, ouvia-se barulho junto à porta; saía correndo o encanecido e barrigudo Tikone, vestido de fraque e ordenava: "A carruagem!" Então não havia a maneira estúpida de gritar: "Para a frente!", como se eu não soubesse que se deve andar para adiante e não para trás. Feofane estalava a língua. Aproximávamo-nos da escada e aparecia o patrão, ao mesmo tempo displicente e apressado, como se nada houvesse de surpreendente em Feofane, ou nos cavalos. O cocheiro estirava os braços e curvava as costas a ponto de parecer impossível que os mantivesse assim por muito tempo. O príncipe trajava barretina e um capote de pele de castor que lhe cobria o belo rosto corado, de sobrancelhas negras, que nunca deveria encobrir-se. Fazendo tilintar o sabre e as esporas, caminhava pelo tapete, como se tivesse pressa, sem prestar atenção a mim e a Feofane, quando todos nos admiravam. Ao chegar à escada, eu sacudia a cabeça e minhas finas crinas, saudando o príncipe. Quando estava de bom humor, ele pilheriava com Feofane; e este, virando levemente a cabeça e sem baixar os braços, fazia um sinal imperceptível com as rédeas, que eu entendia. Empreendia a marcha, estremecendo em cada músculo e lançando a neve suja sob a parte dianteira do trenó. Também não havia naquele tempo o costume tolo de gritar: "Eh!", como se o cocheiro sentisse alguma dor; mas só "Cuidado!" Feofane gritava: "Atenção! Cuidado!" e as pessoas se afastavam, detinham-se e, virando o pescoço, contemplavam o formoso cavalo, assim como o patrão e o cocheiro, todos distintos.
Eu gostava de passar à frente dos carros velozes. Quando Feofane e eu víamos de longe uma parelha que merecesse nosso esforço, lançávamo-nos atrás dela como um torvelinho e, pouco a pouco, a alcançávamos. Então eu já não me preocupava em lançar a neve para o trenó. Alcançava o carro, fungava por cima da cabeça do ocupante; depois, alcançava a parelha, que não tardava em deixar para trás, ouvindo só o ruído que produzia e que se ia perdendo. tanto o príncipe como Feofane e eu mantínhamos silêncio, aparentando que tínhamos nossas coisas a tratar e que nem havíamos notado aqueles maus cavalos. Eu gostava de passar à frente dos carros velozes e também de encontrar-me com um bom trotador; um instante fugaz, um barulho, um olhar, e continuávamos, cada qual para o nosso lado".
Rangeram as portas e soaram as vozes de Nester e de Vaska.
QUINTA NOITE
(Segue a história depois...)
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(Segue a história depois...)
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