sexta-feira, 16 de setembro de 2011

ESAÚ E JACÓ - Lembranças eróticas e o caso do burro

Para quem já conhece a sutileza de Machado ao sugerir ou falar de sexo ou erotismo, pois talvez conheça seu conto "Missa do Galo", é sempre prazeroso trazer algumas linhas que abordam o tema.

O capítulo que cito abaixo vem após um momento de "RECUERDOS" (nome do capítulo anterior). O trecho melhor dos recuerdos lhes dou abaixo:

"Aires deixou-se ir rio abaixo daquela memória velha, que lhe surdia agora do alarido de cinquenta ou sessenta pessoas. Essa espécie de lembranças tinha mais efeito nele que outras. Recompôs a hora, o lugar e a pessoa da sevilhana. Cármen era de Sevilha. O ex-rapaz ainda agora recordava a cantiga popular que lhe ouvia, à despedida, depois de retificar as ligas, compor as saias, e cravar o pente no cabelo, - no momento em que ia deitar a mantilha, meneando o corpo com graça..."

ESSA É A LEMBRANÇA ERÓTICA DE UM VELHO CONSELHEIRO AIRES...


Machado de Assis c. 1905, pintado por Henrique Bernardelli.

CAPÍTULO XLI

CASO DO BURRO

SE AIRES obedecesse ao seu gosto, e eu a ele, nem ele continuaria a andar, nem eu começaria este capítulo; ficaríamos no outro, sem nunca mais acabá-lo. Mas não há na memória que dure, se outro negócio mais forte puxa pela atenção, e um simples burro fez desaparecer Cármen e a sua trova.

Foi o caso que uma carroça estava parada, ao pé da Travessa de S. Francisco, sem deixar passar um carro, e o carroceiro dava muita pancada no burro da carroça. Vulgar embora, este espetáculo fez parar o nosso Aires, não menos condoído do asno do homem. A força despendida por este era grande, porque o asno ruminava se devia ou não sair do lugar; mas, não obstante esta superioridade, apanhava que era o diabo. Já havia algumas pessoas paradas, mirando. Cinco ou seis minutos durou esta situação; finalmente o burro preferiu a marcha à pancada, tirou a carroça do lugar e foi andando.

Nos olhos redondos do animal viu Aires uma expressão profunda de ironia e paciência. Pareceu-lhe o gesto largo de espírito invencível. Depois leu neles este monólogo: "Anda, patrão, atulha a carroça de carga para ganhar o capim de que me alimentas. Vive de pé no chão para comprar as minhas ferraduras. Nem por isso me impedirás que te chame um nome feio, mas eu não me chamo nada; ficas sendo sempre o meu querido patrão. Enquanto te esfalfas em ganhar a vida, eu vou pensando que o teu domínio não vale muito, uma vez que me não tiras a liberdade de teimar..."

- Vê-se, quase que se lhe ouve a reflexão, notou Aires consigo.

Depois riu de si para si, e foi andando. Inventara tanta cousa no serviço diplomático, que talvez inventasse o monólogo do burro. Assim foi; não lhe leu nada nos olhos, a não ser a ironia e a paciência, mas não se pôde ter que lhes não desse uma forma de palavra, com as suas regras de sintaxe. A própria ironia estava acaso na retina dele. O olho do homem serve de fotografia ao invisível, como o ouvido serve de eco ao silêncio. Tudo é que o dono tenha um lampejo de imaginação para ajudar a memória a esquecer Caracas e Cármen, os seus beijos e experiência política.

COMENTÁRIOS:

Cara, que coisa fantástica e atemporal qualquer texto do Bruxo do Cosme Velho.

Vimos ali, ele nos lembrando que não há lembrança e devaneio que resista a outro evento que chega de forma intempestiva e chocante. Até um caso de burro e violência faz ir embora da memória uma cena de luxúria do passado.

DUPLO SENTIDO: "este espetáculo fez parar o nosso Aires, não menos condoído do asno do homem. A força despendida por este era grande, porque o asno ruminava se devia ou não sair do lugar"

E AÍ, HEIM!? Gostaram da pegadinha? Eu nunca me esqueço de quando era criança e via o nosso vizinho de frente, lá em Uberlândia, espancando os cavalos para "amansá-los". O ASNO DO HOMEM os amarrava no poste e lhes batia violentamente, às vezes, por horas... que lixo ter visto aquilo na infância!

MAS O MONÓLOGO DO BURRO É MARAVILHOSO! me lembrou muito texto e muita sabedoria...


Bibliografia:
ASSIS, Machado de. Esaú e Jacó. In: Obras Completas. Editora Globo, 1997.

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