O Medo –
cenas literárias
In: O Tempo e o Vento – O Continente (capítulo:
O Sobrado I)
Érico Veríssimo descreve através do personagem Liroca, José
Lírio, a sensação do medo numa noite de São João, durante o combate entre
maragatos e pica-paus, lá no ano de 1895, em Santa Fé, Rio Grande.
“Os segundos passavam. Era preciso cumprir a ordem. Liroca não
queria que ninguém percebesse que ele hesitava, que era um covarde. Sim,
covarde. Podia enganar os outros, mas não conseguia iludir-se a si mesmo. Estava
metido naquela revolução porque era federalista e tinha vergonha na cara. Mas não
se habituava nunca ao perigo. Sentira medo desde o primeiro dia, desde a
primeira hora – um medo que lhe vinha de
baixo, das tripas, e lhe subia pelo estômago até a goela, como uma geada,
amolecendo-lhe as pernas, os braços, a vontade. Medo é doença: medo é febre.
Engraçado.
A noite estava fria mas o suor escorria-lhe pela cara barbuda e entrava-lhe na
boca, com gosto de salmoura.
O tiroteio
cessara ao entardecer. Talvez a munição da gente do Sobrado tivesse acabado. Ele
podia atravessar a rua devagarinho, assobiando e acendendo um cigarro. Seria até
uma provocação bonita. Vamos, Liroca, honra o lenço encarnado. Mas qual! Lá estava aquela sensação fria de vazio e enjoo
na boca do estômago, o minuano gelado nos miúdos.
Donde lhe
vinha tanto medo? Decerto do sangue da mãe, pois as gentes do lado paterno eram
corajosas. O avô de Liroca fora um bravo em 35. O pai lhe morrera naquela mesma
revolução, havia pouco mais dum ano – tombara estripado numa carga de lança,
mas lutando até o último momento.
“Lírio
é macho” – murmurou Liroca para si mesmo. “Lírio é macho.” Sempre que ia entrar
num combate, repetia estas palavras: “Lírio é macho.”
(...)”
COMENTÁRIO
A literatura de qualidade tem uma beleza que muitas vezes
não é percebida pelo leitor. Abrimos o livro e vamos embora pelas páginas, numa
leitura rápida e descompromissada.
Os bons autores têm uma grande capacidade de por em palavras
atos, fatos e sensações que nos satisfazem no ato da leitura.
Quantas vezes o leitor não se pega sozinho pensando ou
falando alto que sempre pensou aquilo que acabou de ler, mas nunca tinha
conseguido enunciar ou escrever tal coisa de maneira tão... tão perfeita e tão
completa! Tão definitiva!
O ato da leitura de obras de qualidade tem o dom de introduzir
em nós reflexões que estarão para sempre lá em nossa memória, nas sensações que
tivemos durante o prazer da leitura. Lá adiante, nós não nos lembraremos
exatamente das palavras, mas o significado delas terá ficado naquilo que nos tornamos.
A leitura nos dá oportunidades de avançar nos conhecimentos
do mundo. A partir dela e mesclados com nossos atos no mundo em que vivemos,
poderemos ser pessoas melhores atuando por um mundo melhor.
Bibliografia:
VERÍSSIMO, Érico. O Tempo e o Vento – O Continente I. Editora Globo. 31ª edição. 1995
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