sábado, 17 de dezembro de 2016
Memorial de Aires - o 13 de maio de 1888
Refeição Cultural
"13 de maio
Enfim, lei. Nunca fui, nem o cargo me conscita ser propagandista da abolição, mas confesso que senti grande prazer quando soube da votação final do Senado e da sanção da Regente. Estava na Rua do Ouvidor, onde a agitação era grande e a alegria geral.
Um conhecido meu, homem de imprensa, achando-me ali ofereceu-me lugar no seu carro, que estava na Rua Nova, e ia enfileirar no cortejo organizado para rodear o paço da cidade, e fazer ovação à Regente. Estive quase, quase a aceitar, tal era o meu atordoamento, mas os meus hábitos quietos, os costumes diplomáticos, a própria índole e a idade me retiveram melhor que as rédeas do cocheiro aos cavalos do carro, e recusei. Recusei com pena. Deixei-os ir, a ele e aos outros, que se ajuntaram e partiram da Rua Primeiro de Março. Disseram-me depois que os manifestantes erguiam-se nos carros, que iam abertos, e faziam grandes aclamações, em frente ao paço, onde estavam também todos os ministros. Se eu lá fosse, provavelmente faria o mesmo e ainda agora não me teria entendido... Não, não faria nada; meteria a cara entre os joelhos.
Ainda bem que acabamos com isto. Era tempo. Embora queimemos todas as leis, decretos e avisos, não poderemos acabar com os atos particulares, escrituras e inventários, nem apagar a instituição da história, ou até da poesia. A poesia falará dela, particularmente naqueles versos de Heine, em que o nosso nome está perpétuo. Neles conta o capitão do navio negreiro haver deixado trezentos negros no Rio de Janeiro, onde 'a Casa Gonçalves Pereira' lhe pagou cem ducados por peça. Não importa que o poeta corrompa o nome do comprador e lhe chame Gonçalves Perreiro; foi a rima ou a sua má pronúncia que o levou a isso. Também não temos ducados, mas aí foi o vendedor que trocou na sua língua o dinheiro do comprador" (Conselheiro Aires, Machado de Assis)
REFLEXÕES
Com a leitura do Memorial de Aires (1908), eu ia dizendo na postagem que havia completado a leitura dos nove romances de Machado de Assis, até que numa rápida pesquisa, descobri que há um romance que eu não conhecia e não tenho o volume - Casa Velha -, produzido em folhetim entre 1885/86 e só publicado em 1943, pela estudiosa Lúcia Miguel Pereira.
A riqueza que encontrei neste gênero da produção machadiana é fenomenal. Estou lendo o Memorial porque estou em humilde produção e revisão semelhante de meus escritos de tantos anos. Abordei isso dias atrás (ler AQUI).
O personagem Conselheiro Aires cita o dia da Abolição da Escravatura como quem viveu o dia e anotou em seu diário suas impressões. Tem uma outra anotação dele, que vou transcrever abaixo, que é importante para os leitores e cidadãos do século 21 refletirem sobre a condição real dos milhões de seres humanos que, de uma hora para outra, saíram da condição de cativeiro, de senzala, para se virarem por conta e risco.
Eu, cidadão de 47 anos de idade, estava vendo e vivenciando mais oportunidades e melhorias de vida no início do século 21, aqui em meu País e na América Latina, para os povos tanto de origem da própria terra invadida quanto os trazidos na condição de escravos, até que os novos modelos de golpes patrocinados e ou organizados nos escritórios dos imperialistas da atualidade passassem a vigorar e destruir rapidamente os avanços conquistados em quase duas décadas de lutas progressistas latino-americanas.
A luta deve seguir. O tempo de nossas vidas não é nada se comparado ao tempo da história de nossas lutas enquanto classe social explorada.
Vamos com mais um trecho do diário de memórias do Conselheiro Aires... Por favor, não esqueçam que o personagem é personagem e, normalmente, Machado foca o locus de sua época: uma sociedade onde impera o homem branco, católico, proprietário, patrimonialista, machista etc etc.
"10 de agosto de 1888
Meu velho Aires, trapalhão da minha alma, como é que tu comemoraste no dia 3 o ministério Ferraz, que é de 10? Hoje é que ele faria anos, meu velho Aires. Vês que é bom ir apontando o que se passa; sem isso não te lembraria nada ou trocarias tudo.
Fidélia chega da Paraíba do Sul no dia 15 ou 16. Parece que os libertos vão ficar tristes; sabendo que ela transfere a fazenda pediram-lhe que não, que a não vendesse, ou que os trouxesse a todos consigo. Eis aí o que é ser formosa e ter o dom de cativar. Desse outro cativeiro não há cartas nem leis que libertem, são vínculos perpétuos e divinos. Tinha graça vê-la chegar à Corte com os libertos atrás de si, e para que, e como sustentá-los? Custou-lhe muito fazer entender aos pobres sujeitos que eles precisam trabalhar, e aqui não teria onde os empregar logo. Prometeu-lhes sim, não os esquecer, e, caso não torne à roça, recomendá-los ao novo dono da propriedade."
Quem diria! E a sociedade humana voltando em seu pêndulo do tempo à mesma condição anterior para os 99% dos seres que habitam o Planeta Terra, enquanto o 1% segue brincando de Tabuleiro de War conosco e com a vida neste único lugar habitável no Universo.
William
Marcadores:
Brasil,
CEM Clássicos,
Democracia,
Direitos Humanos,
História,
Leituras de livros,
Liberdade,
Literatura Brasileira,
Machado de Assis,
Política,
Refeição Cultural,
Rio de Janeiro
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário