sábado, 17 de maio de 2025

Dom Quixote de la Mancha - Cervantes (6)


Dom Quixote, de Gustave Doré.


Refeição Cultural

"Causó risa al licenciado la simplicidad del ama, y mandó al barbero que le fuese dando de aquellos libros uno a uno, para ver de qué trataban, pues podía ser hallar algunos que no mereciesen castigo de fuego." (El ingenioso caballero don Quijote de la Mancha. Parte 1. Miguel de Cervantes)


Nosso valoroso e bem intencionado Alonso Quijana, um aficionado leitor de livros de cavalaria da região castelhana de La Mancha (no ano 1605), está dormindo em sua cama, após sofrer as primeiras desventuras como cavaleiro andante. Ele foi encontrado por um vizinho, Pedro Alonso, após uma surra que levou de mercadores de Toledo (leitura anterior aqui).

Enquanto dorme e se recupera, seus amigos - o sacerdote Pero Pérez (el cura) e o barbeiro maese Nicolás -, e sua ama e sobrinha, decidem queimar os livros do fidalgo leitor. Vão seguir a cartilha da "santa inquisição" e meter no fogo tudo o que cause transtorno à ordem vigente, no caso, os livros que mexeram com as ideias do pacato leitor.

A cena é perturbadora. Enquanto o leitor apaixonado por seus livros dorme e se recupera de suas aventuras com pauladas, socos e pontapés, as pessoas de sua confiança tacam fogo em seu bem mais precioso: sua biblioteca.

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CAPÍTULO 6

"Del donoso y grande escrutinio que el cura y el barbero hicieron en la librería de nuestro ingenioso hidalgo"


O escrutínio dos livros de nosso fidalgo leitor começa por "Los cuatro", de Amadís de Gaula, o primeiro livro do gênero de cavalarias impresso na Espanha. O inquisidor - o cura - o condenou ao fogo... e o salvou da fogueira o auxiliar do "licenciado", o barbeiro, que clamou pela vida do livro de Amadís.

Na inquisição dos livros de Alonso Quijana, tem uma passagem interessante: o cura fala sobre a questão da tradução, ao falar das obras do poeta italiano Ludovico Ariosto (1474-1533), afirmando que só salvará da fogueira os livros dele na língua original, pois a versão para outro idioma como, por exemplo, o castelhano, "tirava muito do valor natural da obra".

“y aquí le perdonáramos al señor capitán que no le hubiera traído a España y hecho castellano, que le quitó mucho de su natural valor; y lo mesmo harán todos aquellos que los libros de verso quisieron volver en otra lengua; que, por mucho cuidado que pongan y habilidad que muestren, jamás llegarán al punto que ellos tienen en su primer nacimiento.” (de “El ingenioso caballero don Quijote de la Mancha. Parte 1 [Spanish Edition]” por Miguel de Cervantes)

O que os leitores verão é que poucos livros de cavalaria se salvarão da condenação à fogueira. Os de poesia terão o mesmo destino, tirando um ou outro que os inquisidores vão pegar para si mesmos (roubo, né?), privando o senhor Alonso de sua biblioteca.

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LA GALATEA se salvou...

“- La Galatea, de Miguel de Cervantes - dijo el barbero. 

- Muchos años ha que es grande amigo mío ese Cervantes, y sé que es más versado en desdichas que en versos. Su libro tiene algo de buena invención, propone algo, y no concluye nada; es menester esperar la segunda parte, que promete; quizá con la enmienda alcanzará del todo la misericordia que ahora se le niega; y entre tanto que esto se ve, tenedle recluso en vuestra posada.”

Cervantes tinha uma obra publicada ainda no século anterior, o XVI. A novela pastoril "Primera parte de la Galatea", que foi publicada em 1585, em Alcalá de Henares (Wikipedia). 

A professora Maria Augusta da Costa Vieira, da FFLCH, diz que a publicação é de 1581, logo após Cervantes retornar dos 5 anos de cativeiro em Argel. Fui aluno dela na Letras.

O inquisidor, o sacerdote Pero Pérez, disse ser amigo do escritor Cervantes e livrou La Galatea do expurgo e da fogueira por acreditar que a segunda parte da obra, nunca publicada, poderia salvá-la da danação. (A novela pastoril é inacabada)

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COMENTÁRIO FINAL

As aventuras e desventuras do engenhoso fidalgo Dom Quixote de La Mancha estão entre nós há mais de quatro séculos. Elas nos inspiram há muito tempo.

O livro e os personagens começaram como uma crítica aos livros de cavalaria, os best sellers da época, e foram ganhando outras leituras ao longo de sua história de vida, de leituras e de leitores.

Ao ler qualquer capítulo dos dois volumes de Dom Quixote, e a qualquer tempo, a leitora e o leitor acabam por encontrar acontecimentos, conceitos e reflexões que valem para si e que podem contextualizar o momento da leitura. Essa é a magia de uma obra universal!

Ao longo de quatro séculos, livros foram expurgados e lançados ao fogo. 

Ao longo desses últimos quatro séculos, pessoas idealizaram e saíram por aí para desfazer injustiças e mudar o mundo para honra de si próprias e para o bem de suas comunidades.

O personagem Dom Quixote de La Mancha inspira seres humanos há mais de quatro séculos.

Leiam, leiam, amigas e amigos leitores, se desconectem por algumas horas das redes das big techs e salvemos a humanidade.

William


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