terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

"Mais bem" ou "melhor" informado sobre "mais bem" ou "melhor"


Abaixo, segue texto do professor Sírio Possenti, que me fez entender o que eu não tinha conseguido até então.


Quando "mais" não é "melhor"


Se o ensino separasse a prática linguística da teoria gramatical, poderia esclarecer dúvidas sobre expressões como "mais bem educado" e "melhor educado"

Sírio Possenti*

Discute-se muito (ainda) sobre ensino de gramática na escola. Em geral, entende-se por ensino de gramática um tipo de trabalho que deveria produzir como resultado que "melhorem" a fala e a escrita dos atingidos. Quando se diz que alguém não sabe gramática, em geral se quer criticar o fato de que alguém diz "menas gente", "as pessoa" ou "haviam pedidos".

É claro que casos assim têm relação com gramática, mas, tecnicamente, em sentido mais ou menos indireto, se considerarmos o que se estuda de fato sob esse rótulo - tanto na escola fundamental quanto nos cursos de pós-graduação. Nesses casos, mais do que corrigir, trata-se da análise de fatos, com base em uma metalinguagem (sujeito, predicado, passiva, infinitivo etc.) e por meio de operações de análise, de dissecação (sublinhe o sujeito, qual a função sintática de, como se distingue uma oração explicativa de uma restritiva).

Seria proveitoso dividir mais ou menos claramente a análise gramatical da prática linguística que deve seguir regras. Esta é regida por normas que são gramaticais, por um lado, mas também sociais ou históricas, como é o caso claro das regras e avaliações relativas a construções em desaparecimento e suas substitutas.

Bom exemplo são os usos e as análises do verbo "assistir": considerado só seu uso, não há muito sentido em "defender" as especificações que gramáticas e dicionários fornecem, já que médicos não assistem mais (eles tratam, operam), ninguém mais assiste (mora, trabalha) na rua tal. Em compensação, assistimos os jogos e os jogos são assistidos.


Regras reais

Se aceitássemos claramente tal divisão, poderíamos ter aulas de gramática que analisassem quaisquer construções (e as "erradas" são as que mais permitem aprender gramática, de fato). Poderíamos comparar, por exemplo, regras de concordância em uso efetivo; as diversas formas de orações adjetivas usadas de fato; o sistema pronominal de hoje e do passado; ou a conjugação popular (falada) com a culta (escrita).

Descobriríamos regras, no sentido de leis, como as de física ou genética, e não meros erros, em sequências como "livro pra mim ler" (aqui, "mim" só ocorre após "para", e o verbo que o segue está sempre no infinitivo) ou em construções como "menas gente" e "meia cansada" ("menos" e "meio" são flexionados só antes de termo feminino - talvez estejam mudando de classe gramatical). Fazer isso não implica necessariamente aceitar que essas construções devam ser escritas (em relatórios administrativos, por exemplo). É exatamente a gramática, em outro sentido, que impede que sejam aceitos. Mas então saberíamos analisar...

Esse aprendizado pode ser útil até para corrigir gramáticas. Todas cometem o mesmo erro em análises do adjunto adnominal em grupos como "meu livro velho". Consideram simplesmente que "meu" e "velho" são adjuntos adnominais de "livro", sem considerar que a organização de uma sequência como esta é mais complexa, é hierarquizada. Pode-se discutir se "meu" é adjunto de "livro velho" (há diversos "livros velhos" e "meu" especifica um) ou se "velho" é adjunto de "um livro" (há diversos livros meus, e "velho" especifica um), mas está errado dizer que os dois adjuntos ocupam a mesma hierarquia em relação a "livro".


Sequência

A tese fica mais clara em construções como "carne suína moída congelada": não é verdade que carne tem três adjuntos. O que ocorre é que carne é qualificada como suína, a carne suína é qualificada como moída e a carne suína moída é qualificada como congelada. Uma teoria que não consegue fazer isso não vale a pena! As gramáticas gerativas mostravam essa hierarquia em árvores, mas pode-se fazê-lo em construções parentéticas, que mostram bem essa hierarquia: [[[[carne] bovina] moída] congelada] - [meu [livro [velho]]] ou [[meu [livro]] velho].

Uma boa teoria gramatical, capaz de permitir observações adequadas, não pode decidir (porque esta decisão é social) se se deve dizer "melhor educados" ou "mais bem educados". Gramáticas e manuais ensinam que se deve dizer preferencialmente "mais bem" antes de particípios (mais bem treinados etc.).

Mas é relativamente fácil mostrar que a questão real não é essa. Que a construção não tem a ver (ou a questão não é decisiva) com a categoria à qual pertence a palavra seguinte. A verdadeira questão é a hierarquia interna da construção, a relação entre essas palavras.

Quem diz "melhor preparados" toma como base a construção: [[mais bem] preparados], em que "mais" modifica "bem": "mais bem" = "melhor".

Quem diz "mais bem preparados" toma por base outra construção: [mais [bem preparados]], em que "mais" modifica "bem preparados".


Escopo

Dada esta segunda organização, "mais" não pode afetar "bem"; apenas afeta "bem preparados". Por isso, não pode gerar "melhor", porque "melhor" parafraseia "mais bem", que aqui não existe.

Os linguistas dizem que, em um caso, "bem" está no escopo de "mais", e "mais bem" se transforma em "melhor". Em outros termos, "mais bem" é um constituinte. No outro caso, "bem" não está no escopo de "mais". O que está no escopo de "mais" é "bem preparados". Não sendo "mais bem" um constituinte, não há como surgir a forma "melhor".

Em um sentido de gramática, alguém poderia dizer que uma das construções está certa (porque algum escritor a usou) e que a outra está errada (porque só o povo e os distraídos usam). No outro sentido de gramática, diríamos que se trata de duas estruturas gramaticais diferentes, cuja natureza poderia ser mostrada. O uso de uma ou de outra terá ou não apoio das autoridades...


*Sírio Possenti é professor associado do departamento de linguística da Unicamp e autor de Os Humores da Língua (Mercado de Letras)

Fonte: Revista Língua Portuguesa

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