Finalizei a leitura da 6ª obra de Veiga. |
Refeição Cultural - Literatura Brasileira
"Algumas pessoas bem-intencionadas, mas ingênuas, que pensavam estar prestando um serviço ao apontarem erros graves no tratamento, foram enquadradas na lei de repressão aos possangueiros, que é a pior forma de crime aqui no território..."
"É incrível como uma simples lei pode afetar o espírito das pessoas e modificar até a psicologia de toda uma comunidade..."
Domingo, 18 de setembro do ano de 2016. Há quarenta anos saía a quinta obra de José J. Veiga, um de nossos proeminentes autores da literatura brasileira dos anos sessenta e setenta.
Eu só comecei a ler Veiga neste ano, um ano estranho, diferente, de mudanças em nossos cotidianos com o que chega e muda drasticamente nossa vida, nossa rotina, e sem pedir licença, sem nenhuma consulta popular. Sem consentimento.
O ano de 2016 estava marcado para ser aquele em que o Brasil voltou a viver sob estado de exceção, sem democracia e liberdades (e direitos), com os "de fora" ou os derrotados pelo voto popular chegando e tomando o poder na mão grande e alterando drasticamente nosso mundo.
A leitura deste 6º livro de Veiga foi feita nos minutos que sobraram, entre um voo a trabalho e um momento de não cochilo em final de semana. A obra me acompanhou nos meus dias de trabalho em Brasília, nas idas ao Acre, ao Rio de Janeiro e a São Paulo.
O estranho que chega e muda - Exatamente assim são as obras de ficção de José J. Veiga, os contos, os romances, as crônicas. O estranho ou o evento estranho chegam a algum lugar e a vida daquela comunidade estará mudada para sempre.
"Os acontecimentos nos apanharam de surpresa. Já estávamos acostumados com o batuque e com a algazarra, e até inclinados a aceitar aquela gente como bons vizinhos, quando eles de repente resolveram por os chifres de fora. Numa só noite atacaram oito canchas nas imediações e levaram tudo o que puderam carregar, inclusive crianças. Na noite seguinte, novo ataque, mais criações roubadas, mais crianças roubadas dos jacás e jiraus. Depois, quando passaram a encontrar resistência, responderam com incêndios e destruições generalizadas..." (Olha como a descrição acima é a cara da nossa história brasileira e latino-americana!)
E o que estamos vivendo neste exato momento em que escrevo? A nossa comunidade, o nosso mundo entrou num período sombrio, labiríntico e meio que sem saída após um conjunto de grupos de poder econômico organizarem um golpe contra o povo e sua jovem democracia, após anos de melhores oportunidades de vida e distribuição de riquezas.
Já li neste ano Os cavalinhos de Platiplanto (1959), A hora dos ruminantes (1966), A máquina extraviada (1967), Sombras de reis barbudos (1972), O professor burrim e as quatro calamidades (1978) e agora Os pecados da tribo (1976).
Boa parte da obra de José J. Veiga foi escrita durante os anos de exceção e sem liberdade em nosso país. Por mais que o próprio autor tenha dito em vida que não havia referência explícita entre seus contos e romances e o contexto político e social do Brasil sob ditadura civil-militar, é evidente que toda sua obra é permeada pelo clima em que o povo vivia. A censura, o controle, a falta de liberdade e os direitos do povo sem importância alguma para os poderosos, os donos do poder.
"O lago já era um clarão só, formigando com o tremor daquelas tantas luzinhas que calculei em muitos milhares já, não havia mais lugar na água para as luminárias que ainda chegavam, e os portadores as arrumavam na margem, era um quadro tão bonito que dava vontade de cantar, e foi o que fizemos espontaneamente, ninguém falava, só cantávamos, quem não sabia e não queria cantar ficava olhando como encantado, numa alegria tão rara que me deu tristeza de pensar que quando os pavios se queimassem todos e as luminárias se apagassem, como já ia acontecendo com algumas, toda aquela beleza se acabaria, e dentro de mais algumas horas, com o nascer do sol, aquela noite seria apenas uma lembrança, e dias depois um sonho talvez até inacreditável..."
Pois é. Estamos vendo o povo saindo com suas luzinhas e sonhos para as ruas, se reunindo em praças, avenidas e logradouros públicos, e dizendo palavras de ordem pela volta da democracia e lutando contra a retirada de direitos sociais, civis, políticos e humanos nos dias que correm em nosso país novamente sob estado de exceção, exatamente como nos anos em que Veiga escrevia.
Como diz o protagonista da estória, dá até tristeza de pensar que quando os pavios se queimarem e as luzes se apagarem... talvez a gente nem acredite no amanhã que o momento aconteceu e foi possível.
Nos anos sessenta, após o golpe, a elite conservadora e organizadora do golpe achou que seria coisa rápida tirar o João Goulart do poder e depois pegariam de volta a máquina estatal... e se foderam porque entregar o poder para grupos militares, policiais e de toga é entregar sua sorte civil e de leigos sem poder para um grupamento que não pensa e não liga para ser humano e para liberdades civis.
O mesmo se repete agora. Os golpistas da grande mídia, empresários e partidos de oposição ao PT que usaram a máquina estatal da estrutura burocrática da justiça e da polícia para aplicarem o golpe não sabem o que é esse segmento mandando e desmandando, escolhendo quem será vítima deles, até os desafetos pessoais.
É nesse mundo que estamos nos enfiando por causa dos organizadores do golpe, os empresários dos meios de comunicação (P.I.G.), banqueiros e donos de empresas da Fiesp, quase todos os partidos de direita e liberais como o PSDB, PMDB e lixos do tipo, o parlamento apodrecido, eleito e mantido com bilhões de reais dos setores citados anteriormente e, por fim, cidadãos concursados dos órgãos públicos que se apoderaram do aparelho do Estado para fazer política onde deveria prevalecer o respeito à lei e ao povo brasileiro.
Estamos fodidos e temos culpados por isso ao nosso redor, entre conhecidos e familiares, gente que foi manipulada ou que é mau caráter e hipócrita e que não conhece história e por isso não tem noção das consequências em trocar o convívio social em estados democráticos por estados totalitários.
Enquanto isso, vou lendo José J. Veiga e passando algumas horas no mês em contato com uma literatura que nos alerta para o estranho, o novo, o diferente, que chega e altera a nossa condição e o nosso viver...
William
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