Ilustração de Marilia Bruno, de uma bela edição do livro de Machado, feita pela Panda Books, em 2018. Recomendo a aquisição e leitura. |
Refeição Cultural
"O Vergalho
Tais eram as reflexões que eu vinha fazendo, por aquele Valongo fora, logo depois de ver e ajustar a casa. Interrompeu-mas um ajuntamento; era um preto que vergalhava (chicoteava) outro na praça. O outro não se atrevia a fugir; gemia somente estas únicas palavras: - 'Não, perdão, meu senhor; meu senhor, perdão!' Mas o primeiro não fazia caso, e, a cada súplica, respondia com uma vergalhada nova.
- Toma, diabo! dizia ele; toma mais perdão, bêbado!
- Meu senhor! gemia o outro.
- Cala a boca, besta! replicava o vergalho.
Parei, olhei... justos céus! Quem havia de ser o do vergalho? Nada menos que o meu moleque Prudêncio, - o que meu pai libertara alguns anos antes. Cheguei-me; ele deteve-se logo e pediu-me a benção; perguntei-lhe se aquele preto era escravo dele.
- É, sim nhonhô.
- Fez-te alguma coisa?
- É um vadio e um bêbado muito grande. Ainda hoje deixei ele na quitanda, enquanto eu ia lá embaixo na cidade, e ele deixou a quitanda para ir na venda beber.
- Está bom, perdoa-lhe, disse eu.
- Pois não, nhonhô. Nhonhô manda, não pede. Entra para casa, bêbado!
Saí do grupo, que me olhava espantado e cochichava as suas conjeturas. Segui caminho, a desfiar uma infinidade de reflexões, que sinto haver inteiramente perdido; aliás, seria matéria para um bom capítulo, e talvez alegre. Eu gosto dos capítulos alegres; é o meu fraco. Exteriormente, era torvo o episódio do Valongo; mas só exteriormente. Logo que meti mais dentro a faca do raciocínio achei-lhe um miolo gaiato, fino e até profundo. Era um modo que o Prudêncio tinha de se desfazer das pancadas recebidas, - transmitindo-as a outro. Eu, em criança, montava-o, punha-lhe um freio na boca, e desancava-o sem compaixão; ele gemia e sofria. Agora, porém, que era livre, dispunha de si mesmo, dos braços, das pernas, podia trabalhar, folgar, dormir, desagrilhoado da antiga condição, agora é que ele se desbancava: comprou um escravo, e ia-lhe pagando, com alto juro, as quantias que de mim recebera. Vejam as sutilezas do maroto!"
(Capítulo LXVIII, O vergalho, em Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, 1881)
Amig@s leitores, o personagem Prudêncio, negro, ex-moleque, agora adulto, escravo alforriado, e açoitador de outro negro, escravo dele, é, na minha opinião, uma alegoria perfeita do povo brasileiro pobre, "remediado", de direita e conservador; é o povo manipulado por conceitos inventados para situá-lo como "classe média", e que no fundo não passa de pobre que não reconhece que é pobre.
Peguei na estante para ler um pouco de Machado de Assis para poder respirar. Ver toda a destruição do Brasil e da brasilidade, ver o desfazimento de uma nação nos faz faltar o ar. Aos que têm um pouco de consciência política, que sinceramente, não é muita gente.
Prudêncio é o povo brasileiro de hoje, é a ampla maioria dos 57.797.847 eleitores do governo atual; não são prudêncios todos os eleitores votantes desta coisa que viramos porque os da casa-grande votaram com consciência de classe.
Prudêncio são meus colegas bancários, são os metalúrgicos, os professores, os funcionários públicos, os PJ (pessoa jurídica) que trabalham como terceirizados e se acham empreendedores, classe média. Prudêncio é o empregado que era assediado e que ganhou uma funçãozinha qualquer e passa a assediar seus colegas.
Esses prudêncios votam na direita, votam nos banqueiros, nos brancos da elite, nos nhonhôs, e querem distância das organizações e lideranças que representam a sua classe, a de pobre e de trabalhador, é gente que vive de vender força de trabalho, mas não se enxerga como tal.
Povo miserável, país miserável!
William
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