segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

Leitura: Cacau (1933) - Jorge Amado




Refeição Cultural

"Tentei contar neste livro, com um mínimo de literatura para um máximo de honestidade, a vida dos trabalhadores das fazendas de cacau do sul da Bahia.
     Será um romance proletário?" (Nota no início do romance de J. Amado. Rio, 1933)


A leitura deste romance de Jorge Amado, cuja estória se passa no início dos anos trinta, se deu num contexto de muita identificação da realidade brasileira atual com o enredo retratado no livro. A condição de miséria absoluta dos trabalhadores nas plantações de cacau volta a ser um retrato do país após o golpe de Estado de 2016.

Enormes contingentes de homens e mulheres trabalhando no eito em condições insalubres, recebendo soldos que não são suficientes sequer para pagarem a conta de suas próprias alimentações, adquiridas nas fazendas mesmo, e quanto mais tempo ficam trabalhando para os fazendeiros, mas ficam devendo. 

É um regime de escravidão, ontem e hoje. O que era a prática dos anos trinta volta a se repetir com mais intensidade no século 21, sob novo regime político, posterior ao golpe de Estado; regime que passou a vigorar a favor de banqueiros, empresários e ruralistas e totalmente subserviente aos Estados Unidos; trata-se dos governos de Temer e do clã Bolsonaro.

A realidade dos pobres no Brasil só foi diferente em séculos durante um curto intervalo de tempo: os governos do Partido dos Trabalhadores, em três mandatos presidenciais - com Lula e Dilma -, quando os pobres foram incluídos no orçamento do Estado, com políticas definidas e voltadas para melhorar a vida do povo. Isso acabou quando corruptos de colarinho branco, ocupando cargos nos 3 poderes, cassaram o mandato do PT e então voltamos à barbárie.

PARA POBRES, ANOS 80 ERAM COMO OS ANOS 30: O VIVER DAS GENTES É QUASE NA CONDIÇÃO DE BICHO

"Nove horas da noite o silêncio enchia tudo e a gente se estirava nas tábuas que serviam de cama e dormíamos um sono só, sem sonhos e sem esperança. Sabíamos que no outro dia continuaríamos a colher cacau para ganhar três mil e quinhentos que a despensa nos levaria. Aos sábados íamos a Pirangi por o sexo em dia. Alguns levavam meses sem sair da fazenda e se satisfaziam nas éguas da tropa. Mineira, a madrinha da tropa, era viciada e disputada. Os meninos desde garotos se exercitavam nas cabras e ovelhas." (AMADO, 1981, p. 47)

Eu cresci em Minas Gerais, já nos anos oitenta, e me lembro de toda essa miséria quando convivia com primos e conhecidos no Triângulo Mineiro. Apesar de vivermos em região urbana, tinha familiares que trabalhavam em fazendas e roças. Não era a minha rotina, mas cheguei a ir com eles capinar e fazer serviços por empreitada. Duríssimo o trabalho de sol a sol na roça, no mato, sem protetor solar e coisas do tipo.

Ao vivermos na cidade, os trabalhos disponíveis eram duros, porém acho que eram menos pesados ou insalubres que os das fazendas. Era o trabalho em construções, de servente ou de ajudante geral. Eu fui ajudante de encanador, quebrava concreto e paredes. Era ruim o serviço: me marcou bastante lidar com marreta, ponteiro e talhadeira, bolhas nas mãos e cheiro de merda dos outros.

"Nós ríamos. E não sei por que a riqueza não nos tentava muito. Nós queríamos um pouco mais de conforto para a nossa bem grande miséria. Mais animais do que homens, tínhamos um vocabulário reduzidíssimo onde os palavrões imperavam. Eu, naquele tempo, com os outros trabalhadores, nada sabia das lutas de classes. Mas adivinhávamos qualquer coisa." (AMADO, 1981, p. 48)

VIOLÊNCIA CONTRA OS DESPOSSUÍDOS DE RECURSOS

"Foi numa dessas carreiras que um garoto bateu num cacaueiro e derrubou um fruto verde. O coronel, que olhava da varanda, voou em cima do menino, que ante o tamanho do seu crime parara boquiaberto. Mané Frajelo suspendeu o criminoso pelas orelhas:
     - Você pensa que isso aqui é de seu pai, seu corneta? Comem e só fazem destruir as plantações, gente desgraçada.
     Uma tábua de caixão, abandonada perto, serviu de chicote. O garoto berrava. Depois, dois pontapés.
     Colodino fechava os olhos e cerrava os punhos. Mas ficávamos todos parados, sem um gesto. Era o coronel quem batia e demais o castigado derrubara um coco de cacau. De cacau... Maldito cacau..." (AMADO, 1981, p. 87)

CONSCIÊNCIA DE CLASSE

"- Por que você não matou Colodino? Porque queria bem a ele?
     - Eu gostava de Colodino... Mas eu não queimei o bruto porque ele era alugado como a gente. Matá coroné é bom, mas trabaiadô não mato. Não sou traidô...
     Só muito tempo depois soube que o gesto de Honório não se chamava generosidade. Tinha um nome mais bonito: Consciência de Classe." (AMADO, 1981, p. 121)

ESPERANÇA

O final da estória é um sinal de esperança, da ação de esperançar, haja vista que entre o amor carnal e o amor pelo próximo, pela causa dos companheiros de labuta e de destino, as personagens do eito optam pela luta, pelo amor aos seus pares. Nem tudo está perdido.

Estamos precisando muito desses gestos e desse despertar nos milhões de trabalhadores do novo eito, as pessoas invisíveis dos call center e dos aplicativos que se arriscam por aí em bicicletas, em velhas motos e em seus próprios carros ou alugados servindo como motoristas, os novos escravos sem direito a nada, que seguem gastando pra comer mais do que ganham pra trabalhar.

Cacau é ontem, Cacau é hoje.

William

Bibliografia:

AMADO, Jorge. Cacau. 37ª edição. Editora Record: Rio de Janeiro, 1981.

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