sábado, 26 de março de 2022

Fulanização das instituições é estratégia neoliberal



Refeição Cultural

Opinião

Durante meu processo de formação política e sindical, no início dos anos dois mil, tive a oportunidade de estudar e aprender conceitos desenvolvidos ao longo da história do pensamento humano tanto nos espaços acadêmicos e de cultura, quanto nos espaços das lutas sociais, conhecimentos estes ausentes nos espaços elitizados.

Ao ter contato com tantas informações novas, textos complexos do mundo acadêmico e apresentações de grandes lideranças da classe trabalhadora o militante precisa absorver a essência de tudo aquilo, incorporar para suas ideias e práticas as questões mais definidoras daquilo que somos e queremos ser.

Ler um texto da professora e filósofa Marilena Chaui como, por exemplo, o texto "A ética da política", contido no livro Leituras da crise - Diálogos sobre o PT, a democracia brasileira e o socialismo (2006) me serviu para a vida toda de representação eletiva da classe trabalhadora. Foi um texto basilar para mim. Não seria prático fazer diversas citações desse texto formador aqui, deixo abaixo uma citação que vale para muitas coisas da vida política:

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"Espinosa afirma que é ficção e loucura querer que os governantes ajam como se não tivessem paixões e interesses, como se fossem a encarnação perfeita das virtudes privadas - querer isto seria o mesmo que querer que eles deixassem de ser humanos, tornando-se anjos. Onde se encontram os princípios da ética pública? Na qualidade das instituições republicanas e democráticas. São as instituições que devem ter o poder de cercear e impedir que as paixões (os interesses) pessoais dos governantes tenham força para esmagar, ferir ou bloquear os direitos dos governados." (p. 21)

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Esse texto de Marilena Chaui, diferenciando a "Ética DA política" da "Ética NA política" foi fundamental para o dirigente sindical e liderança política que fui até meu último dia de mandato eletivo em 31 de maio de 2018.

Foram textos formadores como esse, textos de concepção e prática sindical e política, que me ajudaram a tomar decisões ao longo de quase duas décadas de representação. E apesar de sempre buscar a partilha das decisões políticas, existe uma coisa que só compreendi depois de viver a política: existe uma espécie de solidão do poder, momentos em que você simplesmente tem que tomar decisões sem ter como consultar ninguém.

Os humanos estão sujeitos aos desejos, às paixões, por isso as instituições é que precisam ser fortes e terem mecanismos para evitar excessos das paixões dos indivíduos. Mas também por isso é importante haver partidos, programas, grupos constituídos com diretrizes e objetivos construídos na coletividade e acompanhados pela coletividade na sua realização. Isso compõe um pouco do que chamamos democracia. Se não tiver programas e objetivos coletivos a seguir, vira-se coisa personalista. Se as instituições não puderem mudar, viram máquinas burocráticas engessadas.

Utilizei a palavra "fulanização" para abordar dois casos que têm um pouco dessa questão no trato da política e das coisas públicas e coletivas.

Recentemente, a Quarta Turma do STJ condenou (22/3/22) o ex-procurador da república Deltan Dallagnol ao pagamento de indenização de 75 mil reais por danos morais ao ex-presidente Lula. O indivíduo foi condenado por fazer em 2016 uma entrevista coletiva usando um PowerPoint acusando o ex-presidente de ser chefe de uma quadrilha. Ele não tinha provas, mas tinha "convicções". Toda essa merda ocorreu dentro daquilo que todos já sabemos: a Operação Lava Jato, uma operação de lawfare montada para destruir Lula, o Partido dos Trabalhadores e a economia do Brasil.

Considero importante a condenação em si, dentro de um processo de correção de todos os abusos cometidos contra Lula e o PT, vítimas de um lawfare que afetou não só pessoas físicas e jurídicas, mas que destruiu o país e suas instituições, afetou até a soberania do país. No entanto, o que tenho visto é uma espécie de fulanização da questão. 

FULANIZAÇÃO DE FRAUDES E CRIMES TIRA A RESPONSABILIDADE DAS INSTITUIÇÕES, ASSIM COMO O NEOLIBERALISMO FEZ ATRAVÉS DAS PRIVATIZAÇÕES, DA TERCEIRIZAÇÃO E UBERIZAÇÃO

Em primeiro lugar, dinheiro nenhum paga o que fizeram com o presidente Lula, dinheiro nenhum paga o que fizeram com as empresas brasileiras e com os empregos e a dignidade do povo brasileiro. Dinheiro nenhum paga a consequência da fascistização de parcelas do povo brasileiro através do processo da Lava Jato e a demonização da política e das instituições da democracia. Dinheiro nenhum paga isso. Levaremos décadas para talvez nos recuperarmos dos efeitos destrutivos dessa trupe de fulanos da Lava Jato que afetaram um país e mais de 200 milhões de pessoas.

Esses fulanos fizeram o que fizeram por paixões e interesses pessoais, sede de poder, é verdade. Mas eles fizeram o que fizeram porque todas as instituições de contrapesos e controle e instâncias do poder judiciário e dos demais poderes da república permitiram que eles fizessem o que fizeram. É exatamente o que explica Chaui através de Espinosa. O correto seria se condenar as instituições e em valores muito maiores e estas instituições deveriam ser obrigadas ao direito de regresso contra essa trupe de picaretas da Operação Lava Jato. Nem "ficha suja" esses fulanos são, o juiz imparcial e esse ex-procurador, ambos milionários agora e candidatos na política. Dessa forma, repito minha tese sobre o mal: o mal venceu!

Outra questão que estive pensando sobre fulanização esses dias é sobre o processo eleitoral na Caixa de Assistência dos Funcionários do Banco do Brasil, a Cassi, uma autogestão em saúde cujos donos são os trabalhadores da ativa e aposentados. Vi uma matéria da Contraf-CUT do dia 17 de março com o título "Direção do BB, Cassi e comitê eleitoral fazem campanha à chapa da situação". A matéria aponta diversas atitudes no mínimo impróprias por parte da direção da Cassi em relação à neutralidade que a direção da associação deveria ter durante esses meses de renovação de parte da diretoria.

Eu pessoalmente não confio mais no processo eleitoral da instituição, assim como perdi a crença nos processos eleitorais da democracia liberal após as diversas estratégias e ferramentas tecnológicas desenvolvidas pelos donos do poder nas últimas duas décadas como os algoritmos de redes sociais, as máquinas de disparos de fake news dentre outras coisas. Diversos intelectuais avaliam que é possível alterar comportamentos e resultados de processos eleitorais através desses mecanismos tecnológicos. Mas não vou falar sobre eleições gerais neste artigo.

É fato que um pouco antes de acabar o nosso mandato eletivo na Cassi (2014-18), levantei junto a lideranças de entidades representativas a preocupação em relação a mudanças nos processos de consultas ao corpo social da instituição propostas na época. Antes, a responsabilidade da gestão do processo era do patrocinador Banco do Brasil, uma instituição bicentenária, sociedade anônima com ações em bolsa etc. Qualquer eventual problema em um processo de sua responsabilidade seria algo muito ruim para a imagem da instituição BB. Com a desculpa de incluir novas formas de votação - site e app - além do sistema interno do banco e os terminais de autoatendimento, a gestão passou a ser da própria Cassi, que tem gestão paritária com indicados pelo patrocinador e eleitos pelos associados. Se um dia ocorrer qualquer problema em um processo de consulta ao corpo social, a responsabilidade recairia no máximo sobre fulano ou ciclano, e não mais sobre a instituição bicentenária BB. Eu anotei minhas preocupações no voto. Enfim, achava melhor a metodologia anterior.

Apesar de cismado com esses processos democráticos desses tempos de fake news em massa e pós-verdade, segui a orientação das entidades sindicais e exerci meu direito político e votei nas únicas chapas que representam os interesses dos associados da Cassi.

É isso. São impressões e opiniões a respeito das coisas de nosso mundo. A fulanização é uma estratégia do capital e dos donos do poder quando falamos de terceirização, quarteirização, uberização, pejotização, privatização das responsabilidades das coisas públicas etc.

William


Bibliografia:

CHAUI, Marilena; BOFF, Leonardo; STEDILE, João Pedro; SANTOS, Wanderley Guilherme; GUIMARÃES, Juarez. Leituras da crise - Diálogos sobre o PT, a democracia brasileira e o socialismo. 1ª ed. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2006.


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