Jean-Paul Sartre |
A NÁUSEA – PERCEBER-SE A EXISTIR (OU SÓ EXISTIR)
Diálogos entre ideias de Sartre e Fernando Pessoa.
Com a palavra: Antoine Roquentin e Alberto Caieiro
Para tentar entender a obra de Sartre e sua filosofia existencialista, fico buscando relações pertinentes na literatura e nos autores que já conheço para possíveis intertextualidades.
A partir da ideia de Existencialismo e do Existir lembrei-me de Alberto Caieiro e do “Guardador de Rebanhos”.
Creio ser interessante, neste momento, simplesmente deixar os dois falarem entre si e ficar observando o debate de ideias e, vez por outra, expressar algum comentário.
ANTOINE ROQUENTIN (os sublinhados são meus)
“Esse momento foi extraordinário. Estava ali, imóvel e gelado, mergulhado num êxtase horrível. Mas, no próprio âmago desse êxtase, algo de novo acabava de surgir; eu compreendia a Náusea, possuía-a. A bem dizer, não me formulava minhas descobertas. Mas creio que agora me seria fácil colocá-las em palavras. O essencial é a contingência. O que quero dizer é que, por definição, a existência não é necessidade. Existir é simplesmente estar presente; os entes aparecem, deixam que os encontremos, mas nunca podemos deduzi-los. Creio que há pessoas que compreendem isso. Só que tentaram superar essa contingência inventando um ser necessário e causa de si próprio. Ora, nenhum ser necessário pode explicar a existência: a contingência não é uma ilusão, uma aparência que se pode dissipar; é o absoluto, por conseguinte a gratuidade perfeita. Tudo é gratuito: este jardim, esta cidade e eu mesmo. Quando ocorre que nos apercebamos disso, sentimos o estômago embrulhado, e tudo se põe a flutuar como outra noite no Rendez-vous des Cheminots: é isso a Náusea (...)”
“V
Há metafísica bastante em não pensar em nada.
O que penso eu do mundo?
Sei lá o que penso do mundo!
Se eu adoecesse pensaria nisso.
Que ideia tenho eu das cousas?
Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos?
Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma
E sobre a criação do Mundo?
Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos
E não pensar. É correr as cortinas
Da minha janela (mas ela não tem cortinas).
O mistério das cousas? Sei lá o que é mistério!
O único mistério é haver quem pense no mistério.
Quem está ao sol e fecha os olhos,
Começa a não saber o que é o sol
E a pensar muitas cousas cheias de calor.
Mas abre os olhos e vê o sol,
E já não pode pensar em nada,
Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos
De todos os filósofos e de todos os poetas.
A luz do sol não sabe o que faz
E por isso não erra e é comum e boa.
Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores?
A de serem verdes e copadas e de terem ramos
E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar,
A nós, que não sabemos dar por elas.
Mas que melhor metafísica que a delas,
Que é a de não saber para que vivem
Nem saber que o não sabem?
“Constituição íntima das cousas”…
“Sentido íntimo do Universo”…
Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada.
É incrível que se possa pensar em cousas dessas.
É como pensar em razões e fins
Quando o começo da manhã está raiando, e pelos lados
[das árvores
Um vago ouro lustroso vai perdendo a escuridão.
Pensar no sentido íntimo das cousas
É acrescentado, como pensar na saúde
Ou levar um copo à água das fontes.
O único sentido íntimo das cousas
É elas não terem sentido íntimo nenhum.
Não acredito em Deus porque nunca o vi.
Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
Sem dúvida que viria falar comigo
E entraria pela minha porta dentro
Dizendo-me, Aqui estou!
(Isto é talvez ridículo aos ouvidos
De quem, por não saber o que é olhar para as cousas,
Não compreende quem fala delas
Com o modo de falar que reparar para elas ensina.)
Mas se Deus é as flores e as árvores
E os montes e sol e o luar,
Então acredito nele,
Então acredito nele a toda a hora,
E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.
Mas se Deus é as árvores e as flores
E os montes e o luar e o sol,
Para que lhe chamo eu Deus?
Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;
Porque, se ele se fez, para eu o ver,
Sol e luar e flores e árvores e montes,
Se ele me aparece como sendo árvores e montes
E luar e sol e flores,
É que ele quer que eu o conheça
Como árvores e montes e flores e luar e sol.
E por isso eu obedeço-lhe,
(Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?),
Obedeço-lhe a viver, espontaneamente,
Como quem abre os olhos e vê,
E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,
E amo-o sem pensar nele,
E penso-o vendo e ouvindo,
E ando com ele a toda a hora.
(Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?),
Obedeço-lhe a viver, espontaneamente,
Como quem abre os olhos e vê,
E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,
E amo-o sem pensar nele,
E penso-o vendo e ouvindo,
E ando com ele a toda a hora.
COMENTÁRIO:
Eu já sou fã de Caieiro há um bom tempo. A maravilha do estudo e da leitura é poder usar da intertextualidade e buscar fazer relações de ideias e concepções de grandes pensadores.
É interessante também a ideia do poeta fingidor. As palavras aqui citadas de Caieiro e de Roquentin não são expressões de sujeitos de carne e osso.
Mas AS PALAVRAS SÃO REAIS, EXISTEM, E COOPTAM PESSOAS QUE SE IDENTIFICAM COM ELAS. Então existem! Além dos volumes literários de Sartre e Pessoa.
Existem em mim, em meu texto que incorpora as palavras e ideias deles – homens e personagens. Estão em mim.
Bibliografia:
PESSOA, Fernando. Poemas Escolhidos. Da série “Ler é aprender” de O Estado de S. Paulo, Editora Klick, 1997.
SARTRE, Jean-Paul. A Náusea. Círculo do Livro, 1988-89.
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