Quiroga: foto de 1900. |
Leitura Crítica: “La gallina
degollada”
Conto de Horacio Quiroga
(Atenção:
o texto desvenda a estória)
Síntese da
história:
A cena
inicial apresenta quatro crianças com idiotismo, entre 8 e 12 anos, que passam
o dia inteiro sentadas em um banco, próximo a um muro do quintal, inertes, e
que só se animam ao entardecer quando o Sol se põe e o céu toma aquela
coloração avermelhada característica ou quando ouvem o barulho do bonde.
Todas
ficaram com idiotismo entre o primeiro e o segundo ano de vida, devido às heranças
paternas.
Os pais
tiveram, depois de um tempo, uma filha perfeita.
Em uma
linda manhã, após uma noite de discussão (o matrimônio do casal estava bastante
comprometido devido às acusações recíprocas sobre quem era o responsável pelas
más crias), resolvem sair após o almoço para passear. Antes disso, por ser um
dia radiante, os filhos com idiotismo, que se animaram com a bela manhã, saem
de seu banco e presenciam a empregada degolando uma galinha lentamente na
cozinha. São escorraçados para o quintal. Mas... aquela imagem!
Ao
retornarem do passeio, a menina entra primeiro que os pais e, após subir no muro,
com o pescoço apoiado no seu limiar e com as mãos penduradas, chama a atenção
dos meninos que estavam imóveis em seu banco como sempre (já ao entardecer, com
aquele céu...). Eles olharam para ela fascinados com aquele ser meio pendurado no muro como uma ave... De repente, a pegaram e a levaram para a cozinha como a
uma galinha...
TÉCNICAS
LITERÁRIAS
No conto de
Horacio Quiroga – A galinha degolada – ele trabalha com sumários e cenas. Algumas
vezes, sumários um pouco mais descritivos, lentos; outras vezes, mais
acelerados.
O uso do
tempo verbal no conto é o tradicional em narrativas com estilo indireto livre,
na qual o narrador (muitas vezes demiurgo) conhece toda a estória, ou seja, usa
o verbo no pretérito imperfeito do indicativo (Era uma vez...). Aqui, usa a
técnica principalmente nos momentos de sumário, onde se refletem ações
cotidianas das personagens. Mas também usa o pretérito perfeito, separando com
bastante clareza as ações definitivas daquelas do dia a dia.
Do primeiro
ao quarto parágrafos o sumário é importantíssimo, pois aqui se começa o conto
de uma maneira tão envolvente que o leitor não poderá mais se desligar da
curiosidade de saber o que se passará com as quatro crianças com idiotismo.
Além dos verbos que demonstram como era o dia a dia dos garotos, o autor usa
expressões que reforçam a ideia de cotidiano:
“todo el
dia...”, “otras veces...”, “horas enteras...”, “casi siempre…”
Após uma entrada
empolgante, temos então uma sequência de parágrafos que trabalha bastante com a
questão da aceleração do tempo na narrativa. O autor usará nove parágrafos para
nos contar sobre os infortúnios do casal com seu primogênito, do nascimento ao
idiotismo.
Já para o
segundo filho, usará apenas dois, mostrando uma grande aceleração do tempo para
narrar a história. Maior ainda será para os gêmeos, no qual o autor, em apenas
um parágrafo, nos traça a desgraça destes:
“Del nuevo
desastre brotaron nuevas llamaradas de dolorido amor, un loco anhelo de redimir
de una vez para siempre la santidad de su ternura. Sobrevinieron mellizos y
punto por punto repitióse el proceso de los mayores.”
O leitor atento,
chega então, a um trecho da trama que será fundamental para se endender o
desfecho. Quiroga, ardente defensor da ideia de que todo autor já deve começar
um conto sabendo meticulosamente aonde vai dar, mostra características dos
idiotas importantíssimas para serem unidas às imagens construídas no cenário
onde se inicia a tragédia, ou seja, a visão que os idiotas têm de sua irmã,
Bertita, pendurada como uma galinha no muro com aquela cor avermelhada no céu
que tanto os animavam:
“Tenían, en
cambio, cierta facultad imitativa...”
Intercalado
com essa desaceleração do tempo, sempre onde o autor firma características ou
fatos que serão decisivos para o desfecho, vem um trecho onde novamente o autor
acelera até o nascimento da filha saudável Bertita.
Ao longo de
todo o conto, vamos tendo acelerada a passagem do tempo cronológico da
história, onde o que se tem são as situações do dia a dia, com destaque para a
crescente falta de respeito entre o casal, intercalada com os momentos onde
impera a natureza humana e, por que não dizer animal, de desejos carnais que
suplantavam os amargores recíprocos e então, eles se amavam:
“Pero en las
inevitables reconciliaciones, sus almas se unían con doble arrebato y locura
por otro hijo”
Já nos
momentos onde o que mais importa para o entendimento da trama é a nuança de
detalhes, o autor se demora de maneira a deixar bem marcados no leitor os
porquês do final trágico:
“La luz
enceguecedora llamaba su atención al principio, poco a poco sus ojos se
animaban…”;
“Animábanse
sólo al comer, o cuando veían colores brillantes u oían truenos”;
“Tenían, en
cambio, cierta facultad imitativa…”;
“… la sirvienta
degollaba en la cocina al animal (uma galinha), desangrándolo con parsimonia… los cuatro idiotas… mirando
estupefactos la operación. Rojo… rojo…”;
“Los cuatro
idiotas… vieron cómo su hermana… en puntas de pie apoyaba la garganta sobre la
cresta del cerco, entre sus manos tirantes…”;
“… uno de ellos
le apretó el cuello… la arrastraron de una sola pierna hasta la cocina…”.
O parágrafo
que começa por um verbo no pretérito perfeito marca o início do desfecho da
trágica estória: “Amaneció un expléndido
dia...”
No início
do conto, quando nos é dada a descrição dos idiotas, ficamos sabendo que quase
nada lhes tirava de sua imobilidade – “...
se mantenían inmóviles, fijos los ojos en los ladrillos...” – a não ser
quando o sol se ocultava atrás do muro e os animava com aquela “luz enceguecedora... como si fuera comida”.
Mais adiante, soubemos de sua qualidades imitativas. Temos aqui, a associação
de luz avermelhada e comida. A cor vermelha se destaca no conto do início ao
fim.
Nessa
última parte, aparecerão todas as características daquele “fatídico e lindo
dia”. É de fato uma mistura interessante, se não fosse o contexto. Veja: “um expléndido dia”, depois “El día radiante...”, mais a visão dos
garotos vendo ser degolada uma galinha com parcimônia “Rojo... rojo...”.
CONCLUSÃO
A
construção da estória é tão bem traçada que não podemos deixar de ver o acaso,
a casualidade no desenlace. Não vemos juízo de valores. É um conto de
acontecimento fantástico, porém de caráter realista.
O tempo
mítico foi importante na trama também. O entardecer está diretamente ligado à
imagem dos garotos com idiotismo se animando cotidianamente com o avermelhado
do céu.
Horacio
Quiroga de fato apresenta em seus contos um embate constante entre o homem e a
natureza. Ele pertenceu ao tempo do realismo e do naturalismo. Naquela época,
discutiam-se a posição do homem em seu meio. Então, era constante a fatalidade
nas desgraças do homem, que sofria desventuras não por ira dos deuses e sim por
estar em um meio fora de seu controle. Era a época do positivismo e do
cientificismo.
Pela
materialidade do conto, não podemos inferir em juízos de valores ou questões
metafísicas de ira divina, pois ele é construído de forma a nos mostrar que
neste embate homem versus natureza, esta venceu. O que se poderia fazer com
circunstâncias tão normais como as imagens trabalhadas no conto (tardes lindas,
pores-do-sol, trovões etc) e ao mesmo tempo tão fatais para o caso da família
Mazzini-Ferraz?
Se
pudéssemos tirar algum proveito ou lição, que penso não ser o caso, seria
apenas pelas sequelas advindas dos excessos do avô das crianças, pai de
Mazzini.
Fica-nos um
grande conto, de um grande autor, e que tanto sentiu na pele os acasos e
reveses da natureza.
Bibliografia:
QUIROGA,
Horacio. A la deriva y otros cuentos. La biblioteca argentina. Serie clásicos. Editorial Losada, 2001.
Um comentário:
Nunca tinha lido nada do autor... Li esse conto e quis saber mais. Ótima resenha.
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