segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

A GALINHA DEGOLADA (La gallina degollada) - Quiroga


Quiroga: foto de 1900.

Leitura Crítica: “La gallina degollada”

Conto de Horacio Quiroga


(Atenção: o texto desvenda a estória)


Síntese da história:

A cena inicial apresenta quatro crianças com idiotismo, entre 8 e 12 anos, que passam o dia inteiro sentadas em um banco, próximo a um muro do quintal, inertes, e que só se animam ao entardecer quando o Sol se põe e o céu toma aquela coloração avermelhada característica ou quando ouvem o barulho do bonde.

Todas ficaram com idiotismo entre o primeiro e o segundo ano de vida, devido às heranças paternas.

Os pais tiveram, depois de um tempo, uma filha perfeita.

Em uma linda manhã, após uma noite de discussão (o matrimônio do casal estava bastante comprometido devido às acusações recíprocas sobre quem era o responsável pelas más crias), resolvem sair após o almoço para passear. Antes disso, por ser um dia radiante, os filhos com idiotismo, que se animaram com a bela manhã, saem de seu banco e presenciam a empregada degolando uma galinha lentamente na cozinha. São escorraçados para o quintal. Mas... aquela imagem!

Ao retornarem do passeio, a menina entra primeiro que os pais e, após subir no muro, com o pescoço apoiado no seu limiar e com as mãos penduradas, chama a atenção dos meninos que estavam imóveis em seu banco como sempre (já ao entardecer, com aquele céu...). Eles olharam para ela fascinados com aquele ser meio pendurado no muro como uma ave... De repente, a pegaram e a levaram para a cozinha como a uma galinha...


TÉCNICAS LITERÁRIAS

No conto de Horacio Quiroga – A galinha degolada – ele trabalha com sumários e cenas. Algumas vezes, sumários um pouco mais descritivos, lentos; outras vezes, mais acelerados.

O uso do tempo verbal no conto é o tradicional em narrativas com estilo indireto livre, na qual o narrador (muitas vezes demiurgo) conhece toda a estória, ou seja, usa o verbo no pretérito imperfeito do indicativo (Era uma vez...). Aqui, usa a técnica principalmente nos momentos de sumário, onde se refletem ações cotidianas das personagens. Mas também usa o pretérito perfeito, separando com bastante clareza as ações definitivas daquelas do dia a dia.

Do primeiro ao quarto parágrafos o sumário é importantíssimo, pois aqui se começa o conto de uma maneira tão envolvente que o leitor não poderá mais se desligar da curiosidade de saber o que se passará com as quatro crianças com idiotismo. Além dos verbos que demonstram como era o dia a dia dos garotos, o autor usa expressões que reforçam a ideia de cotidiano:

“todo el dia...”, “otras veces...”, “horas enteras...”, “casi siempre…”

Após uma entrada empolgante, temos então uma sequência de parágrafos que trabalha bastante com a questão da aceleração do tempo na narrativa. O autor usará nove parágrafos para nos contar sobre os infortúnios do casal com seu primogênito, do nascimento ao idiotismo.

Já para o segundo filho, usará apenas dois, mostrando uma grande aceleração do tempo para narrar a história. Maior ainda será para os gêmeos, no qual o autor, em apenas um parágrafo, nos traça a desgraça destes:

“Del nuevo desastre brotaron nuevas llamaradas de dolorido amor, un loco anhelo de redimir de una vez para siempre la santidad de su ternura. Sobrevinieron mellizos y punto por punto repitióse el proceso de los mayores.”

O leitor atento, chega então, a um trecho da trama que será fundamental para se endender o desfecho. Quiroga, ardente defensor da ideia de que todo autor já deve começar um conto sabendo meticulosamente aonde vai dar, mostra características dos idiotas importantíssimas para serem unidas às imagens construídas no cenário onde se inicia a tragédia, ou seja, a visão que os idiotas têm de sua irmã, Bertita, pendurada como uma galinha no muro com aquela cor avermelhada no céu que tanto os animavam:

“Tenían, en cambio, cierta facultad imitativa...”

Intercalado com essa desaceleração do tempo, sempre onde o autor firma características ou fatos que serão decisivos para o desfecho, vem um trecho onde novamente o autor acelera até o nascimento da filha saudável Bertita.
Ao longo de todo o conto, vamos tendo acelerada a passagem do tempo cronológico da história, onde o que se tem são as situações do dia a dia, com destaque para a crescente falta de respeito entre o casal, intercalada com os momentos onde impera a natureza humana e, por que não dizer animal, de desejos carnais que suplantavam os amargores recíprocos e então, eles se amavam:

“Pero en las inevitables reconciliaciones, sus almas se unían con doble arrebato y locura por otro hijo”

Já nos momentos onde o que mais importa para o entendimento da trama é a nuança de detalhes, o autor se demora de maneira a deixar bem marcados no leitor os porquês do final trágico:

“La luz enceguecedora llamaba su atención al principio, poco a poco sus ojos se animaban…”;

“Animábanse sólo al comer, o cuando veían colores brillantes u oían truenos”;

“Tenían, en cambio, cierta facultad imitativa…”;

“… la sirvienta degollaba en la cocina al animal (uma galinha), desangrándolo con parsimonia… los cuatro idiotas… mirando estupefactos la operación. Rojo… rojo…”;

“Los cuatro idiotas… vieron cómo su hermana… en puntas de pie apoyaba la garganta sobre la cresta del cerco, entre sus manos tirantes…”;

“… uno de ellos le apretó el cuello… la arrastraron de una sola pierna hasta la cocina…”.

O parágrafo que começa por um verbo no pretérito perfeito marca o início do desfecho da trágica estória: “Amaneció un expléndido dia...”

No início do conto, quando nos é dada a descrição dos idiotas, ficamos sabendo que quase nada lhes tirava de sua imobilidade – “... se mantenían inmóviles, fijos los ojos en los ladrillos...” – a não ser quando o sol se ocultava atrás do muro e os animava com aquela “luz enceguecedora... como si fuera comida”. Mais adiante, soubemos de sua qualidades imitativas. Temos aqui, a associação de luz avermelhada e comida. A cor vermelha se destaca no conto do início ao fim.

Nessa última parte, aparecerão todas as características daquele “fatídico e lindo dia”. É de fato uma mistura interessante, se não fosse o contexto. Veja: “um expléndido dia”, depois “El día radiante...”, mais a visão dos garotos vendo ser degolada uma galinha com parcimônia “Rojo... rojo...”.


CONCLUSÃO

A construção da estória é tão bem traçada que não podemos deixar de ver o acaso, a casualidade no desenlace. Não vemos juízo de valores. É um conto de acontecimento fantástico, porém de caráter realista.

O tempo mítico foi importante na trama também. O entardecer está diretamente ligado à imagem dos garotos com idiotismo se animando cotidianamente com o avermelhado do céu.

Horacio Quiroga de fato apresenta em seus contos um embate constante entre o homem e a natureza. Ele pertenceu ao tempo do realismo e do naturalismo. Naquela época, discutiam-se a posição do homem em seu meio. Então, era constante a fatalidade nas desgraças do homem, que sofria desventuras não por ira dos deuses e sim por estar em um meio fora de seu controle. Era a época do positivismo e do cientificismo.

Pela materialidade do conto, não podemos inferir em juízos de valores ou questões metafísicas de ira divina, pois ele é construído de forma a nos mostrar que neste embate homem versus natureza, esta venceu. O que se poderia fazer com circunstâncias tão normais como as imagens trabalhadas no conto (tardes lindas, pores-do-sol, trovões etc) e ao mesmo tempo tão fatais para o caso da família Mazzini-Ferraz?

Se pudéssemos tirar algum proveito ou lição, que penso não ser o caso, seria apenas pelas sequelas advindas dos excessos do avô das crianças, pai de Mazzini.

Fica-nos um grande conto, de um grande autor, e que tanto sentiu na pele os acasos e reveses da natureza.


Bibliografia:

QUIROGA, Horacio. A la deriva y otros cuentos. La biblioteca argentina. Serie clásicos. Editorial Losada, 2001. 

Um comentário:

Lais Viajante disse...

Nunca tinha lido nada do autor... Li esse conto e quis saber mais. Ótima resenha.