Refeição Cultural
“Valente animal, exclamou com falso entusiasmo o comandante,
Veio aonde o trouxeram, a força e a resistência nasceram com ele, não são
virtude própria, Vejo-te muito severo com o pobre do salomão, Talvez seja por
causa da história que um dos ajudas me acabou de contar, Que história é essa,
perguntou o comandante, A história de uma vaca...”
“A história de uma vaca, As vacas têm história, tornou o
comandante a perguntar, sorrindo, Esta, sim, foram doze dias e doze noites nuns
montes da galiza, com frio, e chuva, e gelo, e lama, e pedras como navalhas, e
mato como unhas, e breves intervalos de descanso, e mais combates e investidas,
e uivos, e mugidos, a história de uma vaca que se perdeu nos campos com a sua
cria de leite, e se viu rodeada de lobos durante doze dias e doze noites, e foi
obrigada a defender-se e a defender o filho, uma longuíssima batalha, a agonia
de viver no limiar da morte, um círculo de dentes, de goelas abertas, as
arremetidas bruscas, as cornadas que não podiam falhar, de ter de lutar por si
mesma e por um animalzinho que ainda não se podia valer, e também aqueles
momentos em que o vitelo procurava as tetas da mãe, e sugava lentamente,
enquanto os lobos se aproximavam, de espinhaço raso e orelhas aguçadas. Subhro
respirou fundo e prosseguiu, Ao fim de doze dias a vaca foi encontrada e salva,
mais o vitelo, e foram levados em triunfo para a aldeia, porém o conto não vai
acabar aqui, continuou por mais dois dias, ao fim dos quais, porque se tinha
tornado brava, porque aprendera a defender-se, porque ninguém podia já
dominá-la ou sequer aproximar-se dela, a vaca foi morta, mataram-na, não os
lobos que em doze dias vencera, mas os mesmos homens que a haviam salvo, talvez
o próprio dono, incapaz de compreender que, tendo aprendido a lutar, aquele
antes conformado e pacífico animal não poderia parar nunca mais.” (pág.
114/115)
(A viagem do elefante, José Saramago, 2008)
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