segunda-feira, 29 de outubro de 2018

Cem anos de solidão




Diários e reflexões - 291018

"O mundo terá acabado de se foder no dia que os homens viajarem de primeira classe e a literatura no vagão de carga" (Cem anos de solidão, G. G. Márquez)

Quando despertei nesta manhã de pesadelo, fiquei na cama pensando e buscando explicações de por que as coisas são como são. 

Fiquei pensando em que instante de minha vida meu destino se separou do restante da ampla maioria das pessoas de meu ambiente familiar. Por que motivo me salvei e fiquei do lado certo da história e não me transformei num pobre ou remediado ignorante apoiador do fascismo?

Eu tinha tudo para me transformar em mais um membro da classe trabalhadora imbecilizado. Não faltou em mim o ódio que cega, que tira a razão, que nos faz gado. Não faltou o medo, o medo que temos todos nós que não somos cínicos, amorais ou em menor caso, psicopatas. Não faltou a miséria, que nos desespera e nos exige a prioridade da sobrevivência à qualquer outra coisa. Eu poderia ter sido mais um deles ontem, como quase todos em minha família.

Fui até minha estante de livros e fiquei olhando para ela. Quantas histórias e estórias e conhecimento humano há ali! Já li um pouco daqueles livros, e ainda há muito por ler, se a vida me permitir.

Eu poderia ter sido mais um a ficar do lado errado da história ontem, caso eu não tivesse adentrado o mundo transformador e salvador da leitura das obras clássicas. Em especial das obras clássicas.

Os clássicos da literatura universal acabam virando clássicos e ficando ao longo de décadas e séculos em evidência porque têm algo que nos toca e transforma de maneira definitiva. A partir da leitura daquela obra, algo dentro de você vai ficar marcado como experiência, mesmo sem o leitor ter vivido aquela experiência, boa ou ruim.

A partir do acesso ao ensino superior formal, aos educadores intelectuais, mas também pelo acesso aos educadores e formadores do meu lado da classe trabalhadora, através de formação política, pude melhorar meu roteiro de leituras desde os vinte e poucos anos, porque as veredas e caminhos apresentados a mim fizeram toda a diferença em ser letrado e não ser imbecilizado, sair do analfabetismo funcional, não ser um analfabeto político como parte de nossa "classe média", este conceito pra lá de esquisito.

Acredito que ter me transformado em um leitor, mesmo com a vida me forçando a não sê-lo, por causa da prioridade da sobrevivência do pobre e remediado, deve ter sido um dos motivos de minha salvação em ter ficado do lado certo ontem e não ter optado pelo lado vencedor, lado contrário as liberdades, lado que promete calar e eliminar o que pensa diferente, lado de ultra direita e com ideais fascistas. Mas sei que não foram só as leituras que me salvaram, a criação de meus pais e outras sortes na vida também pesaram.

Com raras exceções, não me lembro de ter grandes leitores em meu ambiente familiar - de pobres e remediados -, familiares que venceram na vida com as oportunidades que o país, os deuses, os pais, tios, irmãos e primos lhes deram (eles acham que é só por meritocracia), e que foram vitoriosos ontem ao apoiarem a candidatura que escandalizou o mundo civilizado.

Espero que o destino do Brasil e do povo brasileiro não esteja traçado há séculos como foi o caso de Macondo, que viveu cem anos de solidão, como previsto pelo sábio Melquíades.

"O primeiro da estirpe está amarrado a uma árvore e o último está sendo comido pelas formigas".

Espero que o Brasil não termine como Macondo. Existem livros e filmes que passei anos com seus nomes martelando em meu cérebro desde a infância, nomes atiçando a nossa curiosidade. Este livro do colombiano García Márquez foi um deles. Esses cem anos de solidão se encaixam como uma luva para o que eu estou sentindo neste momento de minha vida e da vida de meu país. 

Que destino desgraçado o desse povo brasileiro miserável, ignorante e conciliador com a casa-grande que o devora como as formigas de Macondo!

Talvez eu tenha me salvado em estar do lado derrotado ontem, do lado certo da história, não só por ter tido a oportunidade de marcar em mim grandes passagens dos clássicos que já pude ler e me moldar um ser humano melhor, mas também pela oportunidade de conhecer o movimento social organizado, que me tirou o preconceito, os cabrestos da doutrina da casa-grande e os ódios vários que carregava em mim.

Espero que o nosso lado derrotado eleitoralmente mas vitorioso politicamente - o lado certo da história -, recomece hoje mantendo a unidade popular, intelectual e progressista que fez bonito na luta antifascista e que a educação política e libertadora seja um dos pilares da resistência.

Os clássicos da literatura mundial e as novas leituras científicas e sociais estão aí, disponíveis para libertar as pessoas da classe trabalhadora da ignorância, do ódio e do medo.

William

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