terça-feira, 7 de novembro de 2023

Leitura: Os Sertões, de Euclides da Cunha



Refeição Cultural

Osasco, 7 de novembro de 2023. Terça-feira.



"Fechemos este livro. Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a História, resistiu até ao esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente 5 mil soldados." (from "Os sertões" by Euclydes da Cunha)


Depois de uma vida inteira, terminei aos prantos a leitura do clássico da literatura brasileira Os Sertões, de Euclides da Cunha, obra lançada em 1902, cinco anos após o genocídio do povo do Arraial de Canudos, comunidade coletivista massacrada pelo exército da chamada República Velha entre os anos de 1896 e 1897, regime republicano que se iniciou no Brasil com o golpe civil-militar de 1889, tirando do poder o imperador Dom Pedro II. 

O momento no qual termino a leitura de obra tão cercada de fama e polêmica é um momento estranho da sociedade humana, de certa forma é um momento condizente com a condição humana deste século presente, humanidade que observa a emergência climática e nada faz para interromper a destruição do planeta Terra, único lugar para se viver no Universo conhecido, destruição feita pelos donos do poder, os capitalistas, um grupo pequeno de humanos com a capacidade de inviabilizar milhões de formas de vida no planeta inteiro. No entanto, o eixo desta reflexão nem é sobre a destruição do planeta pelos senhores do capital, é sobre o massacre de gentes pelos senhores da guerra, que são por acaso os senhores do capital.

Qual o tema do livro Os Sertões

O livro aborda a Guerra de Canudos, a figura do beato Antônio Conselheiro, o sertão da Bahia, os milhares de homens, mulheres e crianças retirantes da seca e da miséria reunidos num pequeno pedaço de terra para lutarem pela sobrevivência numa região de poucos recursos naturais. Retrata o início do regime republicano, o exército brasileiro, o choque entre o povo sertanejo do interior do país e o povo do litoral, onde está a sede do governo. Retrata a forma como a classe dominante sempre tratou o povo brasileiro.

Vemos no livro um ensaio interpretativo do Brasil e do povo brasileiro por parte do engenheiro e jornalista Euclides da Cunha, e vemos o desenvolvimento de uma guerra civil motivada por questões sociais antigas, questões de reforma agrária e posse da terra, e motivada por muita desinformação e manipulação da informação por parte dos poderosos de sempre, os donos do poder: latifundiários, governo e igreja. Os golpistas no poder ("republicanos") alegaram que os miseráveis revoltosos queriam restabelecer o regime político antigo, a monarquia. Na disputa por hegemonia de poder, vale tudo, principalmente mentiras, hoje conhecidas pela alcunha de fake news.

Se fosse elencar todas as novidades que acrescentei em meu parco conhecimento a respeito do conflito, da obra, do autor e do contexto da época, meu texto ficaria enorme. Leiam o livro, é o que eu sugiro aos leitores. Eu penei pra ler, mas li. Façam o esforço, leiam e releiam, porque somos outra pessoa, com novas experiências e olhares de mundo a cada dia, o leitor de ontem não é o leitor de hoje. Comecei a ler Os Sertões antes dos quarenta anos. Ler agora, com mais de cinquenta, e vendo o mundo deste momento, a leitura é absolutamente diferente. Leiam!

Hoje, sei mais que antes sobre o conflito entre o governo brasileiro do final do século 19 e a multidão de brasileiras e brasileiros exterminada no sertão da Bahia, no Arraial de Belo Monte, atualmente Açude Cocorobó. Sei alguma coisa a mais sobre essa tragédia brasileira. Por mais triste que seja a tomada de consciência a respeito do assassinato em massa ocorrido à época, reforço a ideia de que ler é melhor do que não ler os clássicos, um conceito que aprendi na Faculdade de Letras da USP com a leitura de referência de Italo Calvino.

Imagem clássica de Canudos.


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"Custava-lhes admitir que toda aquela gente inútil e frágil saísse tão numerosa ainda dos casebres bombardeados durante três meses. Contemplando-lhes os rostos baços, os arcabouços esmirrados e sujos, cujos mulambos em tiras não encobriam lanhos, escaras e escalavros — a vitória tão longamente apetecida decaía de súbito. Repugnava aquele triunfo. Envergonhava. Era, com efeito, contraproducente compensação a tão luxuosos gastos de combates, de reveses e de milhares de vidas, o apresamento daquela caqueirada humana — do mesmo passo angulhenta e sinistra, entre trágica e imunda, passando-lhes pelos olhos, num longo enxurro de carcaças e molambos..." (from "Os sertões" by Euclydes da Cunha)

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UM SÉCULO DEPOIS, GOVERNOS SEGUEM BOMBARDEANDO CIVIS, MATANDO MULHERES E CRIANÇAS

Enquanto lia no último mês as centenas de páginas da 3ª parte - "A luta" - do livro de Euclides da Cunha - Os Sertões -, o Estado de Israel matava milhares de crianças e mulheres na Faixa de Gaza... notícias dão conta de que Gaza é uma espécie de campo de concentração com mais de dois milhões de pessoas sem acesso adequado a água, luz, internet, assistência médica e comida, região cercada pelo exército do governo de Israel. Fui lendo cada capítulo de Os Sertões e vendo no noticiário atual os informes de bombas que destruíram prédios residenciais, hospitais, ambulâncias do povo palestino etc. Canudos lá em 1897, Faixa de Gaza em outubro de 2023. Que dizer?

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SOBRE OS SERTÕES

Assim que terminei o livro de Euclides da Cunha, fui procurar nos guardados (williampédia) algumas mídias que falassem sobre a obra e sobre a história do conflito com o povo de Antônio Conselheiro no sertão da Bahia.

Li a matéria de capa da revista Educação, Ano 6, nº 66, de outubro de 2002. A reportagem aborda o centenário da obra Os Sertões. Achei interessante a matéria.

Das informações da revista, descobri que um dos últimos livros do escritor brasileiro José J. Veiga aborda o tema Canudos e Antônio Conselheiro. De uns anos para cá, decidi conhecer a obra completa do escritor goiano e praticamente consegui exemplares de todos os livros do autor. Como estou lendo as publicações por ordem cronológica, ainda não li A casca da serpente (1989). Essa forma de conhecer as coisas é muito legal, tenho em casa uma obra que retrata o conflito de Canudos e eu não sabia!

Outra informação da revista que me fez pesquisar na internet e reviver o passado foi a respeito de um dos maiores especialistas em Euclides da Cunha, um professor nosso da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, a FFLCH. A pesquisa me levou ao cenário que marcou minha vida, onde fiz Faculdade de Letras. Roberto Ventura era professor de Teoria Literária e Literatura Comparada da FFLCH e estava finalizando um trabalho de pesquisa de dez anos sobre a biografia de Euclides da Cunha quando faleceu em um acidente de carro em agosto de 2002. A morte repentina do professor Roberto causou comoção no mundo acadêmico. Nós havíamos acabado de sair da maior greve da história da USP, 104 dias, e eu fui um dos que ajudaram a organizar a greve. O Guia de Leitura da edição que li de Os Sertões, da Coleção Grandes Nomes do Pensamento Brasileiro, da Publifolha, de 2000, foi feito pelo professor Roberto Ventura.

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A VONTADE É DE FALAR, MAS VER CANUDOS ONTEM E FAIXA DE GAZA HOJE NOS EMUDECE

Eu teria tanto para dizer com relação ao que vejo e interpreto neste momento de minha vida, e do mundo no qual vivo... porém, meu desejo de silenciar é enorme!

Vejo a política por trás do genocídio do povo palestino e não sei se as pessoas comuns (pouco estudiosas) conseguem entender as entrelinhas do conflito. O governo de Israel quer e vai anexar as terras palestinas e expulsar os povos de lá e o mundo vai assistir sem interferir. A gente vê daqui e sente uma impotência indescritível...


"A degola 

Chegando à primeira canhada encoberta, realizava-se uma cena vulgar. Os soldados impunham invariavelmente à vítima um viva à República, que era poucas vezes satisfeito. Era o prólogo invariável de uma cena cruel. Agarravam-na pelos cabelos, dobrando-lhe a cabeça, esgargalando-lhe o pescoço; e, francamente exposta a garganta, degolavam- na. Não raro a sofreguidão do assassino repulsava esses preparativos lúgubres. O processo era, então, mais expedito: varavam-na, prestes, a facão." (from "Os sertões" by Euclydes da Cunha)


Os jornalistas que foram cobrir o conflito em Canudos - jornalistas como Euclides da Cunha - e a imprensa da época silenciaram ao ver a execução de pessoas da forma mais covarde possível, cenas que se repetiriam durante a 2ª Guerra Mundial nos campos de concentração nazistas, os jornalistas sabiam que as pessoas eram mortas desarmadas, degoladas, eram mortas à faca para torturar os sertanejos de Canudos, que acreditavam não alcançar o céu se mortos por arma branca. Euclides só foi falar sobre isso 5 anos depois! Anos depois!

"Os próprios jagunços, ao serem prisioneiros, conheciam a sorte que os aguardava. Sabia-se no arraial daquele processo sumaríssimo e isto, em grande parte, contribuía para a resistência doida que patentearam." (from "Os sertões" by Euclydes da Cunha)

Talvez as pessoas se perguntassem por que os sertanejos não se entregavam para as autoridades do exército brasileiro, não é? As pessoas inocentes ou de boa-fé ficam perplexas ao verem grupos subjugados lutarem até a morte pela causa que acreditam, por sua existência com dignidade, por um pedaço de chão onde viver descentemente. Lá em Canudos, todos os homens e boa parte das crianças e mulheres foram barbaramente massacrados a canhão, balas, dinamites, a navalha...

Que dizer? A vontade é de calar. Não no sentido de pactuar com aquela banda de gente que se diz neutra, que não se compromete, apolítica e outras hipocrisias do tipo. Calar porque sinto uma impotência enorme. Por não vislumbrar uma ação eficaz contra as injustiças e merdas que nossa consciência percebe no mundo no qual vivemos.

Ao ler recentemente o livro de Eliane Brum (comentário aqui), sobre a destruição da Amazônia, e ao ler e me informar sobre o que os senhores da guerra, que são os mesmos senhores do capital, que são uma pequena parcela de homens brancos que estão exterminando o mundo e a vida, enfim, ao ler as denúncias da jornalista temos o reforço no sentimento de que deveríamos ter um exército do nosso lado e estar lá no front amazônico defendendo a floresta e os povos-floresta com a nossa própria vida. E ao analisar a realidade, vemos que não vou fazer mais do que ir a passeatas ou coisas do tipo, deixando momentaneamente o conforto de meu lar na vida urbana que levamos.

O pessimismo da razão nos invade, nos invade. Como parar a matança do povo palestino? Como parar as guerras que estão revigorando a economia dos senhores da guerra, que faturam com cada bomba jogada sobre crianças, mulheres, civis e ambientes repletos de vidas? Vamos parar as guerras que dão lucro sem discutir o capitalismo que visa lucro e fodam-se as gentes e o planeta no qual vivemos?

Paro por aqui. Mais um clássico da literatura mundial, mais um ensaio sobre o Brasil e o povo brasileiro. Mais um pouco da história do nosso país e do nosso mundo violento e injusto.

William


Post Scriptum: talvez eu inclua na postagem anterior (ler aqui), quando retomei a leitura de Os Sertões, mais algumas citações da obra, não muitas, algumas. Leiam a obra! Leiam todos os dias! A linguagem escrita está morrendo, leiam e ajudem a preservar essa invenção humana que nos ajudou a dar um salto evolutivo em nossos cérebros e em nossas características como ser humano.


Bibliografia:

CUNHA, E. Os sertões. [online]. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2010. 516 p.

CUNHA, Euclides da, 1866-1909. Os sertões: (Campanha de Canudos). 20ª ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 1998.

CUNHA, Euclydes da, 1866-1909. Os sertões: campanha de Canudos / Euclydes da Cunha - 39ª ed. - Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora; Publifolha, 2000. (Grandes nomes do pensamento brasileiro)

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