Refeição Cultural
Osasco, 24 de outubro de 2023. Terça-feira. (as guerras seguem: na Ucrânia, na Palestina, na Amazônia...)
A leitura de Banzeiro òkótó (2021), da escritora, jornalista e documentarista Eliane Brum, foi difícil para mim. Cada capítulo era uma porrada e tinha que parar para recuperar o fôlego e o ânimo. Foi uma leitura deprê. No entanto, foi uma leitura necessária! Terminei a jornada emocionado, com lágrimas nos olhos.
A indicação de leitura do livro foi do curso"13 livros para compreender o Brasil", curso presencial que fiz no Instituto Conhecimento Liberta (ICL). Agradeço aos professores Suze Piza e Lindener Pareto pela referência de leituras que eu não escolheria por conta própria. Estou lendo cada um dos livros que não havia lido ainda. E a cada leitura, mudo, saio diferente.
O primeiro excerto que citei acima, é central! Ou a gente imagina um mundo livre do capitalismo ou não haverá mais mundo para vivermos, nem nós, nem as formas de vida que habitam o planeta Terra.
Eliane Brum nos mostra tanta coisa, tanta coisa, que a gente fica tonto!
Durante os anos trágicos do mandato canalha e genocida do clã miliciano do Rio de Janeiro, eu pensava em termos exércitos armados para lutar contra os destruidores da Amazônia e Pantanal e biomas do litoral brasileiro. A guerra sempre foi desproporcional, os defensores dos biomas entram com os corpos e os exploradores entram com as balas. Só morrem pessoas de um lado. Matam indígenas, quilombolas e brancos que defendem a natureza. Depois destroem a natureza para sempre... e fica por isso mesmo!
Durante a leitura do livro-denúncia de Brum, a gente descobre que tem parlamentar petista que homenageia o maior grileiro do Brasil... puta que pariu! A gente descobre a extensão da destruição da usina hidrelétrica de Belo Monte, não feita durante a ditadura e feita por governos de esquerda de Lula e Dilma... puta que pariu!
O mundo é um lugar foda! E nem dá para desistir de lutar ou de viver porque ao desistir o inimigo do mundo, dos povos e da natureza ganha sem a gente lutar, ganha por WO, que foda!
Amig@s leitores, não adiantaria eu ficar falando sobre o livro ou os capítulos do livro de Eliane Brum. O que posso dizer é que a leitura deveria ser obrigatória para gerar algum incômodo e constrangimento em cada pessoa que lesse o que ela nos conta ali.
"É necessário agora redesenhar o movimento feito ao longo deste livro, para que o conceito seja estabelecido. O banzeiro dá mais algumas voltas, mas agora no sentido de “òkòtó”, palavra na língua iorubá que compõe o título deste livro. Ela me foi dada num jogo de búzios com Pai Rodney de Oxóssi, babalorixá, antropólogo e escritor. Ela veio e tomou conta de minha percepção sobre o movimento e também da capa deste livro. Assoprada por Exu, esta foi mais do que uma volta. Òkòtó é um caracol, uma concha cônica que contém uma história ossificada que se move em espiral a partir de uma base de pião. A cada revolução, amplia-se “mais e mais, até converter-se numa circunferência aberta para o infinito”. Amazônia Centro do Mundo é banzeiro em transfiguração para òkòtó." (from "Banzeiro òkòtó: Uma viagem à Amazônia Centro do Mundo" by Eliane Brum)
É isso! Abaixo cito algumas passagens que marcaram este leitor que vos fala.
Leiam o livro, se revoltem, saiam do conforto que talvez tenham adquirido. Poucos brancos bilionários estão destruindo o mundo de bilhões de pessoas humanas e bilhões de outres seres.
A vontade de mudar o rumo do mundo é enorme depois que lemos Banzeiro òkótó... não é possível se sentir à vontade com essa merda toda que está rolando neste exato momento.
William
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BANZEIRO ÒKÓTÓ
O privilégio e a violência por ser um branco no Brasil
"Por mais éticos que nós, brancos, possamos ser no plano individual, a nossa condição de brancos num país racista nos lança numa experiência cotidiana em que somos violentos apenas por existir. Quando eu nasço no Brasil, em vez de na Itália, porque as elites brasileiras decidiram branquear o país importando homens e mulheres brancos como meus bisavós, já sou violenta ao nascer. Quando ao meu redor os negros têm os piores empregos e os piores salários, a pior saúde, o pior estudo, a pior casa, a pior vida e a pior morte, eu, na condição de branca, existo violentamente mesmo sem ser uma pessoa violenta." (from "Banzeiro òkòtó: Uma viagem à Amazônia Centro do Mundo" by Eliane Brum)
Ao ler essa afirmação de Brum, fiquei pensando nas pessoas do meu cotidiano, estejam elas nas ruas e nos faróis pedindo uma ajuda, ou nos postos de trabalho que me atendem de alguma forma, peles de tons diversos entre o pardo e o preto. Brasil.
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Os capitalistas responsáveis pela destruição do mundo
"Quando a pandemia começou, apenas 2153 pessoas — às vezes esquecemos que bilionários são pessoas, têm nome e sobrenome — concentravam mais riqueza material do que 60% de quase 8 bilhões de seres humanes que habitam o planeta. Bilionários representam uma fração tão insignificante no conjunto da população global que os números falham em torná-los visíveis como porcentagem: menos de 0,00003% — ou 1 bilionário para cada 3,7 milhões de pessoas. A desigualdade racial, social, de gênero e de espécie que provocam, porém, é brutalmente visível." (from "Banzeiro òkòtó: Uma viagem à Amazônia Centro do Mundo" by Eliane Brum)
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Nós somos a maior praga do planeta Terra
"Diz Antonio Nobre: 'A floresta sobreviveu por mais de 50 milhões de anos a vulcanismos, glaciações, meteoros, deriva do continente. Mas em menos de cinquenta anos, encontra-se ameaçada pela ação de humanos.'" (from "Banzeiro òkòtó: Uma viagem à Amazônia Centro do Mundo" by Eliane Brum)
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O negacionismo ao lidar com a questão da emergência climática
"O que nos causa mais terror, porém, é o fato de que mesmo diante de evidências tão eloquentes, da enormidade da ameaça, a maioria da população siga negando a realidade que também construiu. Mesmo com a água faltando nas torneiras, com a temperatura mais alta a cada ano, com a vida sendo mastigada dia a dia, a alienação é assombrosa. Padecemos de desconexão com o mundo justamente na época mais conectada da história humana, na qual a maioria vive em rede quase todas as horas de vigília." (from "Banzeiro òkòtó: Uma viagem à Amazônia Centro do Mundo" by Eliane Brum)
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Eliane Brum assumiu seu posto na guerra climática e foi para o front de batalha onde se definirá a história da humanidade e do planeta Terra. Que ato nobre da porra!
"Eu escolhi meu lado na guerra climática, o que levou meu corpo a Altamira, uma das múltiplas linhas de frente do planeta. Meu desafio, como branca, é aprender a pensar e me pensar a partir de relações radicalmente diferentes com humanes e mais-que-humanes. Meu desafio é me desbranquear — ou fazer o movimento do desbranqueamento, que nunca serei capaz de completar. É essa travessia que vocês fizeram comigo no lento caminhar deste livro. Busquei compartilhar o processo que me trouxe até o agora, que me lançou no banzeiro e talvez me lance no òkòtó." (from "Banzeiro òkòtó: Uma viagem à Amazônia Centro do Mundo" by Eliane Brum)
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O fim do mundo não é um fim, mas um meio
"Altamira é uma ruína. É, como o Brasil, uma constante construção de ruínas sobre a mais monumental de todas as ruínas, a da floresta que antes havia ali. Como toda fronteira simbólica, Altamira é vanguarda do mundo. Finalmente compreendi ali, com todo o meu corpo, que o fim do mundo não é um fim, mas um meio." (from "Banzeiro òkòtó: Uma viagem à Amazônia Centro do Mundo" by Eliane Brum)
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Gaúchos: gafanhotos da Amazônia: onde pousam, não sobra nada vivo na natureza...
"Na conversa, apresentou-me, e eu disse, toda animada: 'Ah! Eu também sou gaúcha. De onde tu é?'. A conversa foi rápida e, quando seguimos pelas prateleiras, meu companheiro de compras informou: 'É um grileiro'. E eu, ainda ingênua: 'Puxa, um gaúcho, que vergonha'. Ele então esclareceu: 'É importante que você entenda que os gaúchos são conhecidos como os gafanhotos da Amazônia'." (from "Banzeiro òkòtó: Uma viagem à Amazônia Centro do Mundo" by Eliane Brum)
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O planeta Terra não é nem uma fazendona nem uma espaçonave. O único caminho é se florestar
"Suspeito que todo astronauta será caubói um dia, e não o contrário. Minha proposta e de outras pessoas é que viremos todes indígenas, no sentido de nos compreender como parte orgânica de um planeta vivo e compreender a vida como essa relação fascinante de intercâmbios e de dependência mútua entre diferentes formas de ocupar o mesmo corpo. Me parece que o único caminho é se florestar." (from "Banzeiro òkòtó: Uma viagem à Amazônia Centro do Mundo" by Eliane Brum)
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De novo: a Terra não é um pasto para bandeirantes e terraplanistas explorarem
"O economista inglês, naturalizado estadunidense, Kenneth Boulding (1910-93) criou uma distinção entre o que chamou de a economia do caubói e a do astronauta. Os caubóis — e claramente ele fazia referência aos homens que colonizaram o Velho Oeste dos Estados Unidos e foram mitificados por Hollywood — enxergam o planeta como terra plana: vastos espaços abertos com recursos infinitos, à espera de que os mais fortes os dominem, destruindo os povos originários, os não gente, e a natureza. No Brasil, esse conceito poderia ser chamado de economia do bandeirante e apelidado de Borba Gato. Ou então de economia do pioneiro e apelidada de gafanhoto. Podemos pensar que não é um acaso que na época de déspotas eleitos como Bolsonaro o terraplanismo esteja tão em voga." (from "Banzeiro òkòtó: Uma viagem à Amazônia Centro do Mundo" by Eliane Brum)
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Maior grileiro do país homenageado por parlamentar do PT do Paraná é excomungado por padre na Amazônia
"Padre Patrício foi particularmente iluminado naquela festa. Em seu sermão evocou toda a história de resistência da comunidade na Terra do Meio e excomungou o grileiro Cecílio do Rego Almeida sem nenhuma misericórdia. Lá do fundo um beiradeiro gritou para atualizar o piedoso sacerdote: 'Ele já morreu, padre!'. E padre Patrício ecoou em altos brados, com as mãos levantadas para o céu em júbilo divino: 'Graças a Deus!'." (from "Banzeiro òkòtó: Uma viagem à Amazônia Centro do Mundo" by Eliane Brum)
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Os piores destruidores do mundo são os maiores "cidadãos de bem" do mundo...
"A Amazônia é destruída primeiro para especular, depois, ocasionalmente, alguns vão cogitar produzir soja para o gado comer ou gado para os humanes comerem. O roubo, devidamente lavado e legalizado, vira então “agronegócio”, os criminosos se tornam “cidadãos de bem”, alguns se tornam prefeitos, são reconhecidos nas sociedades locais como “pioneiros” e, com algum empenho, quando morrem, viram nome de rua e estátua na praça." (from "Banzeiro òkòtó: Uma viagem à Amazônia Centro do Mundo" by Eliane Brum)
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O que é um desgraçado de um grileiro?
"Grileiros são pessoas que tomam ilegalmente, em geral pela força, milhares, às vezes milhões, de hectares de terra pública. Na Amazônia, para consolidar seu domínio, usam milícias formadas por pistoleiros para expulsar os povos-floresta — indígenas, beiradeiros e quilombolas. Nesse processo, povos-floresta são assassinados, dando ao Brasil, ano após ano, o pódio dos países onde mais morrem defensores do meio ambiente. Os grileiros derrubam as árvores chamadas nobres, por ter valor no mercado nacional e internacional, e queimam o restante da vida, provocando as queimadas que assombraram o mundo em 2019. Depois, colocam bois apenas para garantir a posse. Com frequência, o trabalho ilegal é realizado por homens escravizados. Caso se revoltem, são enterrados ali mesmo, em covas que jamais serão encontradas." (from "Banzeiro òkòtó: Uma viagem à Amazônia Centro do Mundo" by Eliane Brum)
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Por que "grileiros"? Porque colocam grilos para cagarem em papéis para parecerem papéis antigos e velhos
"A especulação com a terra é o principal objetivo de parte dos grileiros, que ganharam esse nome porque no passado a fraude era consumada colocando-se papéis novos com grilos vivos numa caixa. Os excrementos desses insetos tão mimosos nas produções da Disney, mas conhecidos na Amazônia por outros talentos, forjavam a aparência amarelada típica de antigos títulos de terra, tornando-os portanto mais verossímeis." (from "Banzeiro òkòtó: Uma viagem à Amazônia Centro do Mundo" by Eliane Brum)
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Povos indígenas, beiradeiros e quilombolas são povos da resistência
"É preciso subverter esse olhar para enxergar melhor. O que chamamos de Brasil é um monumental exemplo de resistência. Ou, dito pelo avesso para voltar ao lado certo, o Brasil foi jogado contra indígenas — e os negros foram jogados no Brasil. E ainda assim indígenas e negros têm resistido por séculos. Não só têm resistido, como têm desformado o Brasil." (from "Banzeiro òkòtó: Uma viagem à Amazônia Centro do Mundo" by Eliane Brum)
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As resistências possíveis contra o fim do mundo
"Mas não é sobre isso que escrevo — ou é, mas não principalmente. Escrevo sobre resistência. Sobre como tornar a vida possível apesar de todas as formas de morte — ou, no caso dos povos originários no Brasil, apesar de tentarem matá-los de todas as formas há mais de quinhentos anos. Essa jornada pela Amazônia, para muito além da geografia, é também uma investigação sobre as resistências possíveis no momento em que vivemos o impossível da emergência climática e da sexta extinção em massa de espécies." (from "Banzeiro òkòtó: Uma viagem à Amazônia Centro do Mundo" by Eliane Brum)
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Bibliografia:
BRUM, Eliane. Banzeiro òkótó: uma viagem à Amazônia centro do mundo. Companhia das Letras: 2021.
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