Refeição Cultural
Jaboticabal, 28 de outubro de 2023.
Impotência e desprezo
Fim de noite de sábado. Acabamos de ouvir a vocalização do urutau aqui no quarto de hotel onde estamos. O urutau deve estar nesse bosque da foto acima. Que cantar mais exótico esse do urutau!
Outra coisa prazerosa é acompanhar o casal de quero-quero chocando dois ovinhos na grama do hotel, no meio do descampado, e dá até agonia ver os pássaros desesperados quando carcarás e urubus estão voando acima das cabeças deles. O casal fica num piado só ao redor do ninho protegendo suas crias de teiús e outros predadores.
No lago municipal, aqui perto, é uma cantoria só no final da tarde, alguns tipos de garças, maritacas, papagaios, bem-te-vis, joões-de-barro, curiós e outros pássaros que não sei o nome ficam voando ao redor e andando pela relva e se preparando para a noite que se aproxima. Ia me esquecendo das curicacas, encantadoras ao vocalizarem quando voam.
Esse cenário em meio à natureza de uma cidade do interior paulista não alivia a tristeza e amargura que aperta meu peito. Não alivia.
Tentei ler e não consegui. Trouxe um livro de romance para tentar terminar a leitura e não rolou. Tentei ver algum filme ou documentário e também não estou com cabeça para isso.
Um genocídio está acontecendo neste momento e como um cidadão do mundo me sinto responsável e impotente ao saber - todos nós sabemos! - que o Estado sionista de Israel está assassinando milhares de crianças palestinas, todos sabemos!
Minha impressão coincide com a leitura daqueles que veem na ação do governo racista dos sionistas a intenção de tomar as terras que eram dos palestinos, ao invés de cumprir as resoluções criadas após a 2ª Guerra Mundial. O que fazemos para frear o extermínio dos palestinos?
Sinto uma impotência que me tira o ar, que causa uma coisa estranha no fígado e na vesícula, um mal-estar ruim de explicar. A impotência que já venho sentindo faz tempo por não conseguir influenciar sequer meia dúzia de pessoas que amo se soma agora à impotência de sabermos que o mundo está sofrendo as piores injustiças da história e não posso fazer nada para mudar isso.
A floresta Amazônica também está sendo assassinada e junto com ela todas as formas de vida que lá existem, inclusive a espécie humana, os povos originários, povos-floresta como nos ensina Eliane Brum. Poucos caras mandam e poucos caras executam a destruição de tudo. A gente fica aqui no nosso mundinho nos centros urbanos tocando nossas vidas e a destruição segue.
A gente vê por não ser cego o que os canalhas corruptos do capital e da casa-grande estão fazendo, a gente vê os meios de comunicação que pertencem a eles manipulando as massas ignorantes (não sabem por que não tiveram oportunidade de saber), massas humanas ocupadas trabalhando ininterruptamente para ganhar uns tostões em trabalhos precários. Enquanto poucos caras do agro - latifundiários e grileiros -, dos bancos e dos mercados de capitais - putos que não produzem uma agulha -, poucos caras donos de tudo, gozam, riem, comemoram o fim do mundo.
Além da impotência, tem o desprezo, tem aquele sentimento que também aperta nossos órgãos sensíveis aos hormônios corporais. O desprezo é uma arma implacável da sociedade humana. É só tentar pensar no sofrimento das vítimas de injustiças como estas que estão sendo eliminadas, colocadas na condição de desaparecimento enquanto o mundo vê e nada faz.
Se eu fosse o que era décadas atrás, dificilmente teria estrutura para lidar com tanta coisa que vejo ao meu redor. Felizmente sou quem sou e os mantras do poeta Drummond acabaram por se fixarem em minhas abstrações mentais. Viver é essencial! Não adianta morrer! Viver apenas, sem mistificação!
Mas a impotência e o desprezo não podem continuar a causar tanta coisa indescritível dentro de meu reles corpo mortal. Mudança. Sei que preciso de mudança. Não sei ainda como ou o que mudar, mas se não mudar, a natureza vai se encarregar de mudar comigo daqui. Sabedoria, se revele para mim.
William
Post Scriptum: o texto foi atualizado após a leitura de minha esposa, que me lembrou dos teiús e das curicacas, presenças marcantes no cenário dessas reflexões.
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