sábado, 30 de novembro de 2024

Diário e reflexões



Refeição Cultural

Osasco, 30 de novembro de 2024. Sábado.


NOVEMBRO

Introdução

A intenção é fazer um texto reflexivo que represente o que sinto que sou, uma pessoa de esquerda. Tenho ouvido algumas lideranças de nosso campo dizerem que uma característica importante em alguém de esquerda é não ser pessimista, pois isso poderia passar uma crença de que está tudo perdido e que nada tem solução. Tendo a concordar com esse conceito. Eu não sou determinista, não acho que as coisas já estão dadas e acabou, que não tem mais jeito para as merdas que estão em andamento. Fui determinista quando cria em outras concepções de existência. Não sou mais assim e sei que o ser humano é uma espécie extraordinária e cheia de possibilidades. Temos a capacidade de aprendizagem e somos dotados de sistemas cerebrais evoluídos há milhões de anos. Então, gostaria de tentar ser realista, apontar as merdas pessoais e coletivas, deixar claro que há esperanças e elas estão em nós mesmos, e quem sabe, no texto, eu registre e defina algumas coisas para mim mesmo, pois quando releio meus diários acabo verificando se fiz ou realizei algo que planejei ou se ainda sinto o que sentia no momento da enunciação.

---

Brasil

Começo fazendo algum registro sobre o nosso país, o nosso mundo, o lugar no qual a nossa vida se desenvolve. Dediquei pouco tempo à leitura política neste mês, de propósito. 

Até o mês passado, eu estava muito envolvido com as eleições, fiz campanha nas ruas e na internet. Não fugi de minha natureza e formação política, mesmo podendo gozar a vida de outra forma como muitos que conheço fizeram após se desligarem do banco público onde trabalharam e ou do movimento sindical e partidário. Fiz minha parte e tentei contribuir para nossos projetos políticos de esquerda nas eleições municipais.

A esquerda, como sempre, está muito dividida em relação ao governo Lula em seu terceiro mandato presidencial. Eu vejo a esquerda dividida há décadas. Óbvio que o passado é uma referência, mas os contextos são sempre únicos porque as sociedades mudam com o tempo. 

Em linhas gerais, a divisão sempre tem um conteúdo de concepção e prática, de leitura de conjuntura e de onde se quer chegar e como chegar lá. 

Parte de nós acha que o governo deve ir mais para o centro e centro-direita, "governabilidade" e tal; parte acha que o governo deve ir mais para a esquerda. Estou no grupo que acha que deveríamos ir mais para a esquerda, para mim o tempo de negociação e conciliação com os adversários políticos acabou. O que se tem hoje é a ascensão do fascismo. Não são adversários, são inimigos. Não se negocia com fascista, eles te traem e te matam.

Nosso governo de frente amplíssima com direita e ultradireita - os golpistas e bolsonaristas que compuseram com Lula - está executando medidas que agradam a uns e desagradam a outros em nosso próprio campo. Anunciou isenção de imposto de renda para quem ganha até 5 mil reais, medida que atingiria mais de 20 milhões de pessoas, e no ajuste fiscal vai mexer com setores importantes das classes populares alterando direitos sociais históricos de outros tantos milhões de pessoas, as mais necessitadas do Estado. É foda!

Na área diplomática, eu já ando puto com o nosso governo faz tempo (e não me venham com esse papo que não se pode criticar erros de nosso governo!). Na minha leitura, deixamos de ter uma diplomacia "ativa e altiva" e voltamos a ser um país que fala grosso com os países subdesenvolvidos e falamos fino com imperialistas do Norte. O caso da Venezuela é um exemplo: é in-jus-ti-fi-cá-vel vetar o país nos BRICS por causa de umas merdas de atas eleitorais. Por outro lado, o Brasil deixa Israel fazer o que quer conosco e não faz nada. Nosso governo fica lambendo o governo francês que perdeu as eleições parlamentares e deu um golpe nos dias seguintes sem acatar a decisão do povo francês. Cara, puta que pariu esse comportamento na área externa!

Eu sinto que o governo Lula e os outros dois poderes, pensando o núcleo principal de ministros e alguns aliados da frente amplíssima (até os caras do judiciário), estão envidando todos os esforços para que o bolsonario não seja preso, estão pedindo pelo amor de deus para que ele fuja e que as autoridades não precisem prender o canalha. Eu estou falando e escrevendo isso há muito tempo. É uma gente covarde essa nossa! Em qualquer um dos duzentos países do mundo o salafrário já estaria preso preventivamente. O cagão já foi de travesseiro em mãos para uma embaixada e falou de novo em fugir. Eles planejaram matar autoridades de Estado e instalar nova ditadura e já sabem disso faz tempo. Os covardes de todas as instituições responsáveis estão tirando sarro da cara das pessoas sérias do país. Deixaram o inelegível (ainda) fazer campanha Brasil afora. Meu, eu já enchi o saco com isso!

Outra coisa: já deu a paciência para o republicanismo estúpido da esquerda quando chega ao poder. Cara, fala sério! FHC, Temer e bolsonario nunca respeitaram burocracia alguma escrita ou consuetudinária na administração pública, estatal e ou de economia mista. É um republicanismo infantil, idiota, esse nosso! O Lula e o PT indicam quando são governo só porcaria nas instituições - do tipo STF e PGR - que depois vão foder ou eles mesmos ou os servidores públicos e os direitos caros aos trabalhadores. A esquerda precisa deixar de ser besta quando chega ao poder! Caraca, coisa básica isso! 

--------------------

ESPERANÇA - Tenho visto muita gente jovem nas manifestações de rua e nos movimentos que estão à frente de pautas importantes para mudarmos o mundo atual hegemonizado pelo capitalismo, consumismo, individualismo e que enaltece a ignorância. Isso é um alento de esperança. A tecnologia que pode ser usada para manipular milhões de pessoas através de algoritmos e sofistas canalhas, também pode ser usada para acessarmos quase todo o conhecimento humano produzido até hoje. Com um pouquinho de interesse e orientação, qualquer pessoa pode ou poderia aprender o que quiser, e em qualquer lugar. Eu tenho 55 anos e quero aprender um monte de coisa e quero passar adiante o que sei. Já que o movimento sindical não quis aproveitar a experiência que acumulei, estou escrevendo para quem quiser ler os temas que escrevo. É o que posso contribuir no momento. Passar gratuitamente o pouco de sei.

--------------------

Todo dia é dia para algo novo...

Ainda procuro sentidos

Estou vivo, estou aqui no mundo. Isso é uma oportunidade incrível. Sou um homem de sorte.

Acabei de voltar de Ushuaia, no Extremo Sul da Argentina. A vida é assim, todo dia é dia para algo novo, inusitado. No início deste ano voltei a Cuba, que não conhecia até o ano retrasado. Já conheci países que nunca imaginei pisar como, por exemplo, os Estados Unidos. Nunca se sabe o dia de amanhã. 

Eu havia planejado ainda como jovem adulto que iria fazer o Caminho de Santiago de Compostela, na Espanha. Não fiz o Caminho. De repente, a vida me colocou por semanas na Itália e Espanha, a trabalho. 

Se tivesse feito as besteiras que pensei nos tempos de depressão e revolta, não teria sido sequer um militante da classe trabalhadora que liderou lutas e teve sua relevância na construção de um mundo do trabalho mais justo e solidário. Sequer teria desfrutado da convivência de pessoas queridas da família e de pessoas que deixaram lembranças em meus pensamentos.

Fui agraciado pela natureza e pela casualidade e pelos destinos que as veredas que peguei me levaram a ter como, por exemplo, meus pais e familiares mais próximos todo esse tempo, até meus 55 anos de idade. E pelo que sei hoje, não infartei ou tive um tipo de acidente vascular como mais ou menos está na minha genética porque 10 anos antes passei a dar mais atenção à saúde ao ser gestor de uma operadora de saúde. 

Cerca de metade da população do Brasil e do mundo vai morrer ou ficar com sequelas por agravamento de doenças crônicas facilmente controláveis através de atenção primária e acompanhamento por medicina de família, eu fui um sortudo que ganhei 10 anos a mais de vida por isso. É uma pena que a autogestão que administrei deixou de focar o modelo que desenvolvemos por décadas lá. Muita gente como eu vai perder a oportunidade de viver uma década a mais.

Enfim, eu tenho a consciência que preciso viver, e preciso estar bem, até porque sei de minha importância para algumas pessoas queridas. 

Vou me esforçar para manter e se possível melhorar minha condição de saúde. Vou tentar ler e estudar e escrever algo a respeito nos próximos meses, como faço nos blogs. Vou tentar ser mais inteligente e ver o que faço para superar os grandes problemas cotidianos que me deixam descabriado pra caralho.

Minha companheira diz que eu não tenho medo. Eu tenho: tenho pavor de ser acometido por doenças degenerativas de meu cérebro, de minha identidade. Estou estudando para exercitar meus neurônios e fortalecer minha memória. E sei que agravamentos de doenças crônicas também causam riscos de danos nos sistemas circulatórios etc. Isso eu tenho medo. Confesso.

Sigamos lutando por um mundo sem o predomínio do capitalismo, causador da destruição do planeta e ameaça às diversas formas de vida na Terra, incluindo a espécie humana, que pode mudar o mundo para melhor porque conhecimento para isso já acumulamos.

William Mendes


sexta-feira, 29 de novembro de 2024

Diário e reflexões - Partindo de Ushuaia (ARG)



Refeição Cultural 

Ushuaia (ARG), 29 de novembro de 2024. Sexta-feira.


Estamos de saída da Terra do Fogo, do assentamento humano mais austral do continente americano, segundo os argentinos. Chilenos contestam porque a cidade de Puerto Williams (CHI) está mais ao Sul, do outro lado do Canal de Beagle, mas é um assentamento bem pequeno. 


Ushuaia é considerada a "Terra do fim do mundo", o cu do mundo (rsrs). Não sou eu quem diz isso, são os locais. Vejam na placa acima: "Culo del Mundo".

Não basta um self hoje em dia, os turistas
"emporcalharam" a placa de adesivos...

Chegamos aqui no domingo e fizemos alguns passeios durante a semana. Eu gosto de estudar e conhecer a história dos lugares que conheço. Vou ler mais a respeito de Ushuaia.

Foto que tirei na Secretaria dos
Povos Originários do governo local. 

O livro sobre o primeiro assentamento dos colonizadores (invasores) europeus que adquiri é para ver como a questão tem sido tratada pela comunidade local (foto que abre a postagem).


Gostamos do passeio. É muito legal conhecer outras culturas, comunidades humanas e lugares distintos do nosso.

O Farol do Fim do Mundo.

Eu sinto uma fraternidade imensa por nossos irmãos e irmãs de Nuestra América. Sou humanista, de esquerda e contra as diversas formas de imperialismo. 


Senti o quanto é sensível para uma pessoa argentina a questão das Ilhas Malvinas, e me solidarizo com los hermanos.

---

Enfim, voltando ao Brasil, nosso país sul-americano. 

William Mendes 

29/11/24


quinta-feira, 28 de novembro de 2024

Diário e reflexões - Ushuaia em movimento (ARG)


Docentes na luta pela educação.

Refeição Cultural

Ushuaia (ARG), 28 de novembro de 2024. Quinta-feira


Ushuaia em movimento

No dia que chegamos à cidade, um domingo, almoçamos perto do Hotel Albatros, onde nos hospedamos. Em frente ao hotel, um veículo de city tour chama a atenção por sua caracterização: fotos e maquetes com motivos de presidiários e força policial.

Soubemos que a cidade fundada em 1884 teve sua população aumentada por causa do presídio e dos presos transferidos de diversas regiões do país para cumprirem penas em Ushuaia, por causa das características da cidade de isolamento e lugar desafiador à vida humana. Era a Alcatraz dos argentinos.

No city tour, passado com presidiários.

ALMOÇO E JANTA

Sendo o almoço a nossa primeira refeição local, não tínhamos muita noção dos preços. Os dois pratos de macarrão, suco e cerveja foram caros, pagamos 52.000 pesos no cartão (mais de 300 reais na conversão!). Após essa referência, tivemos mais facilidade em perceber o valor das coisas em Ushuaia e procuramos locais mais em conta para comer.

Povoamento de Ushuaia contou com colônia penal.
Foto no veículo de city tour em frente ao hotel.

Almoçamos no primeiro dia com um casal de brasileiros que conhecemos no avião. Foi um momento de interação com pessoas de nosso país, moradores do Rio de Janeiro.

Como passamos a noite de sábado acordados, tivemos que dormir um pouco no domingo à tarde, para podermos andar pela cidade de noite.

---

Locais imitam presos para pessoas de diversos países.

A cidade é muito visitada por estrangeiros da Europa, pelo que pude perceber, e por asiáticos. Aqui tem muitos orientais, talvez chineses, porque o sistema de tradução do "Trem do fim do mundo" tem versão das explicações em mandarim.

Imagino que para turistas com poder de compras em Dólar ou Euro as coisas aqui devam estar com preços razoáveis, ou baratos; já para um turista brasileiro, com poder de compra em Real e um câmbio no cartão de mais ou menos 165, tudo é muito caro. Para se pagar em real, se consegue até 200 no câmbio (uns 20% melhor). 

Como disse na postagem anterior (ler aqui), cobrar quase 500 reais para um casal visitar um museu é algo surreal, fora de lógica.

Pobreza do povo sob o governo de Milei.

A Argentina está passando por um período difícil, a considerar o povo e a classe trabalhadora, pois o governo atual, de extrema-direita, está impondo pesados custos para os mais pobres no país, e os trabalhadores aqui enfrentam os mesmos problemas que os de outras partes do mundo. As mazelas do capitalismo estão para além das fronteiras nacionais.

Na quarta-feira de manhã, ao ouvir uma manifestação na rua principal, saí do hotel para verificar o que seria e era uma manifestação das professoras e professores das escolas públicas de Ushuaia. Eles estão em luta por recomposição salarial.

Em defesa da
educação pública.

As jornadas de trabalho aqui devem ser excessivas como no caso dos trabalhadores brasileiros. As mesmas pessoas que vemos atendendo na hora do almoço nos estabelecimentos, vemos atendendo de noite. De novo: me parece que essa situação é característica em países "ferozmente" capitalistas. A jornada 6x1 massacra aqui e no Brasil.

Enfim, impressões que fui tendo entre domingo e quarta-feira.

---

Em Ushuaia, um esquerdista e uma professora.

NO BRASIL, BOLSONARISMO NO CONGRESSO TENTA DESVIAR ATENÇÃO PARA OS CRIMES SOB INVESTIGAÇÃO

Enquanto isso no Brasil, a maioria parlamentar de extrema-direita, uma maioria de gente desqualificada e odiosa eleita após o auge da operação lesa-pátria chamada Lava Jato, abriu a temporada de pautas bombas para tentar salvar os golpistas liderados pelo clã bolsonario, que planejou um golpe de Estado com assassinato de Lula, seu vice e um ministro do STF. 

O bolsonarismo fascista aprovou na CCJ uma PEC do estupro pior que a anterior que havia pautado antes. Se depender dessa gente, nenhuma criança estuprada faria o aborto. Querem desviar a atenção dos crimes de seus líderes com pautas sensíveis aos direitos humanos e das maiorias excluídas dos direitos sociais, civis e políticos no país.

Mundo em movimento intenso.

William Mendes


terça-feira, 26 de novembro de 2024

Diário e reflexões - Ushuaia (ARG)


Vista aérea.

Refeição Cultural

Ushuaia (ARG), 26 de novembro de 2024. Terça-feira.


Impressões

Escrever sobre um lugar que se está conhecendo enquanto a viagem está em curso não é um trabalho simples para mim. Em geral, prefiro estudar um pouco a respeito da geografia do local, da cultura de seu povo e da história daquela comunidade para me sentir mais confiante em não escrever bobagem.

Extremo Sul da Argentina.

Estamos em Ushuaia, na Argentina, a cidade mais austral do país e do continente americano. Mais "austral" significa mais ao Sul. Pelo que ouvimos por aqui, estamos a cerca de mil quilômetros da Antártida. Como estamos em novembro, não está em período de neve, porém, faz frio diariamente. Nesta semana, a temperatura está entre 4 e 5º e chegando a 13º. Anoitece depois das 22h e amanhece lá pelas 5h da manhã. O vento é muito gelado.

Paisagem da janela.

Saímos de São Paulo no sábado de noite e após dois voos ao longo da noite, chegamos a Ushuaia pouco depois das 10h da manhã. Viemos pela companhia aérea Aerolineas Argentinas. Não houve atrasos e correu tudo bem nos voos. São umas três horas até Buenos Aires e mais três horas e pouco até a "Terra do fim do mundo", um dos simpáticos apelidos da cidade. Os assentos dos voos são muito apertados, alguém maior que nós sofreria muito.

Calle San Martín.

Tudo aqui é muito caro, ao fazer o pacote de viagem já sabíamos disso. Achamos melhor contratar os passeios que faríamos com nossa agente de viagem. Querem exemplos de valores em reais na conversão ao pagar com cartão de crédito? Dois pratos de macarrão com refrigerante num mercadinho local: 162 reais (26.800 pesos). Duas garrafas de 1,5L de água: 30 reais (4.800 pesos). Uma refeição pode custar de 10.000 a 35.000 pesos, ou seja, de 60 a 200 reais, uma refeição! Sabem quanto custam duas entradas no museu local? 36.000 pesos cada (uns 450 reais o casal).

Hotel Albatros.

Apesar de apontar essa primeira impressão sobre os preços das coisas e os perrengues comuns de voos como, por exemplo, assentos apertados, a viagem para conhecer a cidade de Ushuaia está valendo muito a pena. É evidente que há nos preços locais um componente relativo às características da cidade: distante de tudo e foco no turismo. 

---

Comendo uma pizza.

Viajar é uma experiência incrível e conhecer lugares e culturas diferentes da nossa é algo que nos marca para sempre.

Se conseguir, vou fazer algumas postagens sobre a experiência cultural ao se visitar o "fim do mundo". 

Na extensão do Blog Refeitório Cultural, dedicada a fotos, farei postagens com imagens que tenha gostado (ver aqui).

William Mendes

26/11/24


sexta-feira, 22 de novembro de 2024

Operação Cavalo de Tróia (16) - J. J. Benítez



Refeição Cultural 

"Mas, que classe de sentimentos podia provocar no povo um homem de semelhante estatura no lombo de um burrico? Indubitavelmente, uma das razões para entrar assim na Cidade Santa tinha de ser buscada em uma intencional ideia de ridicularizar o poder puramente temporal. E Jesus ia consegui-lo..." (p. 154)


Seguindo na leitura do Diário da Operação Cavalo de Tróia, realizada no início dos anos setenta, segundo o escritor J. J. Benítez. 

O astronauta infiltrado na comitiva de Jesus de Nazaré, com o nome de Jasão, descreve para nós os acontecimentos do dia 2 de abril do ano 30, um domingo. 

Jesus sai de Betânia e vai entrar em Jerusalém montado em um burrico para se cumprirem as profecias (p. 152). O Nazareno disse isso ao próprio Jasão. 

Benítez cita até nosso Leonardo Boff na nota de rodapé na página 154, tudo para dar veracidade à sua narrativa. 

Enfim, repito o que já disse sobre este livro: ele é incrível, me impressionou na juventude e ainda me impressiona hoje. É muito bem escrito.

O autor diz que não é ficção... que seria um relato jornalístico. Tudo bem. O escritor é soberano em suas opiniões. 

Por outro lado, a obra dele é pública e eu acho que ela é ficção. Enfim, para mim é uma boa narrativa.

Sigamos na leitura.

William 


quarta-feira, 20 de novembro de 2024

Diário e reflexões



Refeição Cultural

Quarta-feira, 20 de novembro de 2024.


Dia da Consciência Negra

*Conceição Evaristo

Pela manhã, li um conto de nossa querida escritora Conceição Evaristo. Li "Aramides Florença", do livro Insubmissas lágrimas de mulheres.

Aos poucos, vou entendendo melhor o conceito de escrevivência. Já li alguns livros de Evaristo e seus textos são muito potentes, são delicados e duros ao mesmo tempo. 


Insubmissas lágrimas de mulheres.

A escritora aborda temas da vida cotidiana do povo preto e pobre, sobretudo de mulheres pretas e pobres, mas ela tem um jeito único de narrar as histórias duras de personagens que podem ser reais ou fictícias e que representam todas as situações reais da vida das pretas e pretos e pobres do Brasil.

---

*"Eu, capitão"

Vi nesta semana o filme "Io Capitano" (2023) em cartaz no 19º Festival de Cinema Italiano. O filme do diretor Matteo Garrone narra a saga de dois primos de Dakar, Senegal, para realizar o sonho de irem trabalhar na Europa, para terem mais oportunidades na vida. 

Seydou e Moussa enfrentam os perigos do deserto do Saara, os horrores dos centros de detenção na Líbia e os perigos da travessia do Mediterrâneo. Eles são menores de idade e os espectadores vão mergulhar na realidade cotidiana dos imigrantes que saem de seus locais de origem rumo a países mais desenvolvidos do Norte global na luta pela sobrevivência. 


Cena da travessia do deserto do Saara.

Eu sofro muito durante a sessão de filmes com essa temática da realidade da miséria humana provocada, muitas vezes, pela maldade e crueldade de alguns animais humanos. No meu caso, filmes assim não são entretenimento. Mas são filmes muito necessários. 

O diretor Matteo Garrone consegue dar uma leveza na história quando foca Seydou com sua família, na relação de amor entre as pessoas e nas pequenas vitórias da vida cotidiana.

A arte traz sempre a esperança de transformar as pessoas pela catarse, pelo impacto que causa em quem tem contato com ela. A história de Seydou e Moussa foi perfeita para pensar a questão da consciência negra sendo eu um branco num dos países que mais assassinam e exploram pessoas afrodescendentes há séculos.

---

*Ato da consciência negra

Hoje foi dia de atos e reflexões pelo Brasil para marcar o Dia da Consciência Negra. Em São Paulo, os movimentos se reuniram na Avenida Paulista para depois sair em marcha. Ouvimos boa música, manifestações de lideranças e pude trocar ideia com amigos.

Como tinha um compromisso no final da tarde, fui no horário marcado pela organização, 13 horas, para poder participar por algumas horas do ato.


Ato na Avenida Paulista.

Encontrei companheiros e conhecidos por lá durante as três horas em que estive na Paulista. Tive a impressão que a participação não foi muito grande. Avalio que os sindicatos e partidos poderiam ter jogado peso na convocação e lotado o ato. Vi poucos sindicalistas e quase ninguém com mandato parlamentar. 

Fiquei pensando no tema atual do identitarismo e da luta de classes sob a ótica dos debates no campo da esquerda. 

Penso que o sindicalismo e os partidos de esquerda não jogarem peso em um evento que tem uma temática identitária não agrega esses movimentos à causa central, a luta de classes. 

Vi o desenvolvimento dessa questão nos últimos trinta anos. Questões de raça, gênero, orientação etc não deveriam ser questões somente dos interessados diretos. Vira uma coisa meio de reciprocidade, um grupo só se envolve com seu tema de interesse e mais nada. É minha leitura.

---

É isso.

Mais um dia de vida.

William Mendes


terça-feira, 19 de novembro de 2024

Diário e reflexões



Refeição Cultural

Terça-feira, 19 de novembro de 2024.


Opinião


Pra quem conhece história, o Brasil não tem surpresa alguma!

Fosse o Brasil um país sério, os mandados de prisão emitidos hoje seriam para os verdadeiros criminosos e não para os seus lacaios, segundos, terceiros, laranjas etc. 

Tramaram a morte do Presidente da República eleito em 2022, seu vice e um ministro da Suprema Corte e os que tramaram seguem há dois anos de boa, fazendo política e viajando por aí. E tirando sarro da nossa cara.

Eu tenho uma teoria faz um tempo, e a cada dia mais claro fica para mim: as autoridades brasileiras, mancomunadas com a casa-grande desde sempre, não querem prender Bolsonaro e deve ser por medo ou covardia, ou os dois sentimentos juntos.

Vão se acumulando provas, mais provas, mais provas, e o tempo vai passando, passando, passando... por muito menos, prenderam figuras históricas da vida política do país. Em pouquíssimo tempo, atropelando normas e regras, prenderam políticos inocentados depois.

As autoridades brasileiras são covardes, são parciais, são incompetentes, se sua ineficácia não for proposital. Uso "autoridades" como denominação para juntar um monte de gente e instituições da vida nacional que deveriam funcionar de forma isonômica para todas e todos, como prevê a Lei maior, a tal Constituição Federal.

Minha teoria é que por medo ou por covardia, talvez para não mexer muito na casa-grande, onde se juntam os "parças" da elite corrupta do país, querem que os bolsonaros e sua matilha fujam do país, peçam asilo etc. Passaporte não é necessário quando se vai fugir. Sempre há esgotos por onde sair.

Enfim, eu avalio que nós dos segmentos da sociedade que não compartilhamos dos ideais e das ideias da burguesia brasileira, a mais ignorante e corrupta do planeta, temos nossa parcela de culpa por tudo que acontece no país.

A esquerda brasileira - vamos considerar assim - poderia se unir em defesa de pautas comuns, coletivas, e deixar um pouco de lado as vaidades e personalismos de suas lideranças, burocratizadas em sua maioria.

Nosso governo e nossa esquerda mais "organizada" não andam inspirando muito a gente para seguir nas lutas pelo mundo que defendemos, falo de quem tem mandato e representação, tirando raras exceções, raras.

Eu reconheço minha mediocridade, minha condição mediana, meu papel de mais um tijolinho na luta da esquerda nas últimas décadas. Minha formação política começou com os bancários da CUT, inclusive. Tenho muito que estudar e aprender ainda.

No entanto, sei de minha contribuição como tijolinho na construção das lutas nas quais participei nas últimas décadas. Por isso escrevo e opino em meus blogs.

Vendo o cotidiano do Brasil em novembro de 2024 não me surpreendo com muita coisa. Isso não é uma coisa boa. Não é. 

Não vamos mudar o Brasil fazendo as mesmas coisas que fazíamos antes. Até estaríamos melhor, se pelo menos fizéssemos base como antes. Nem isso!

As "conciliações" com os adversários de classe acabaram. Agora são inimigos de classe, são fascistas, e eles matam... e parte de nossas lideranças quer fazer "acordos" com os fascistas que querem nos eliminar...

Nem sei mais o que quero ou não quero em relação à política dos grupos nos quais me politizei. Minha formação me ensinou a importância dos partidos e dos sindicatos. 

Se hoje eles se burocratizaram, eu também não vejo muita esperança em voluntarismos episódicos: são bonitos, mas não resolvem.

Tô sem pertencimento algum. Que foda!

William


domingo, 17 de novembro de 2024

Ainda estou aqui, de Marcelo Rubens Paiva (3)



Refeição Cultural 

"Minha mãe nunca perdoou a incrível falha de segurança, o amadorismo, a imprudência: vir do Chile com uma carta escondida, no avião mais queimado do país, com o telefone do marido escrito no envelope; prepotência e descuido das organizações de esquerda, que colocaram duas famílias com crianças no fogo cruzado, os Viveiros de Castro e os Paiva." (p. 173)


A Parte 2 do livro de Marcelo Rubens Paiva termina com o capítulo "O sacrifício". Os leitores descobrem os motivos pelos quais a ditadura sequestrou Rubens Paiva e o matou sob tortura.

O capítulo é muito difícil de se ler...

---

Estou cansado. Cansado de muita coisa. Confesso. 

Assistimos ao filme "Ainda estou aqui", baseado neste livro, esta semana. Extraordinário! Sensível!

Mas ando cansado. A ditadura e a tortura não acabaram. Não acabaram! 

A Globo ainda está por aqui. Faz a mesma merda contra o Brasil e os brasileiros desde 1965.

Biden (EUA) veio ao Brasil hoje autorizar da Amazônia que a Ucrânia use mísseis deles contra a Rússia. Só pra humilhar a gente.

Estamos morrendo envenenados pelos caras do agro e os empresários das igrejas estão bilionários roubando os miseráveis. 

As BETs dominaram tudo. Roubam dos miseráveis o que sobrar dos pastores das igrejas. 

A ditadura da Faria Lima (casa-grande) colocou um neto de ditador pra encher o rabo deles com o nosso orçamento público. Para encher o cu deles de grana tem que cortar no social.

A ditadura e a tortura não acabaram no Brasil. 

E eu comendo o veneno do agro! Vamos todos morrer de câncer, se outra morte não nos pegar antes. 

Todos morrendo pelas mãos da ditadura do capital e seus poderosos capitalistas. 

Uns caras mortais, uns merdas, e a gente deixa...

E o Gonet... o Bolsonaro é o sinal de que tá tudo liberado para eles.

Tô cansado! 

E a porra do nosso sindicato que não me deixou sequer falar do centenário da entidade? Que gente mais pequena, mesquinha... 

William 


sábado, 16 de novembro de 2024

Vendo filmes (XXIII)


É possível ser mais do que parecemos.


Refeição Cultural

A OBSTINAÇÃO E TENACIDADE DE ROZ E EUNICE PAIVA NOS FAZEM ACREDITAR NO AMOR E NA VIDA

Os filmes que vimos nesta semana nos cinemas foram impactantes, turbilhões de emoções! Não faltaram lágrimas por acabar tudo bem e por sofrer com os personagens.

Apesar das temáticas dos filmes serem bem diferentes, a sensação de querer colo, acolhimento, aconchego e laços de ternura nos vem de ambos. A condição de se pegar responsável por outras vidas traz a fortaleza necessária para a tarefa de cuidar e fazer viver.

Roz, uma máquina programada para ajudar seres humanos nas tarefas cotidianas cai numa ilha sem humanos e repleta de seres vivos, vivendo e morrendo sob a mais natural das condições: a lei da selva.

Eunice Paiva, uma mulher cuja vida cotidiana é cuidar dos filhos, dos ambientes controlados por ela e achar o ponto de equilíbrio na relação entre marido e mulher, numa mescla de tarefas culturalmente estabelecidas para as mulheres brasileiras na segunda metade do século vinte.

De repente, seres programados para certos tipos de tarefas e rotinas pré-estabelecidas se veem na condição adversa do caos, da inesperada ruptura da normalidade cotidiana esperada. 

TAREFA: CUIDAR!

E não há escolhas! Não há tempo a perder, sequer para pensar direito. Cuidar é a tarefa: proteger, prover, alimentar, dar colo e exemplo, encaminhar na vida.

Uma mensagem do filme "Robô Selvagem" é profunda: ninguém vem programado para ser mãe...

O robô Roz num instante está perdido num ambiente inesperado, sem sentido e sem utilidade, no instante seguinte está diante de um pequenino ser vivo dependendo de si para sobreviver, crescer e encontrar seu caminho na vida. O pequeno ganso órfão.

Ele precisa crescer, aprender a nadar e voar, caso contrário não terá a menor chance de sobreviver e encontrar seu destino.

Eunice Paiva de uma hora para outra terá que cuidar de cinco crianças e adolescentes. E também não perde tempo em decidir a fazer o que tem que ser feito.

Enfim, as mensagens dos filmes são inspiradoras e mais que necessárias nos dias que vivemos: o amor e as tarefas que a vida nos dá são combustíveis para nossa obstinação e tenacidade para superar qualquer obstáculo no intuito de acolher, cuidar e encaminhar na vida as pessoas que amamos.

Preparem seus corações e sintam os sentimentos que brotam dos filmes Robô Selvagem e Ainda estou aqui.

-

FILME

Robô Selvagem (The Wild Robot), de 2024 - Direção: Chris Sanders. Elenco: Lupita Nyong'o, Pedro Pascal, Kit Connor. Baseado em série de livros de Peter Brown. Produção: Dreamworks Animation e Universal Pictures.

SINOPSE (Adoro Cinema): Uma nave naufraga numa terra desabitada e dá início à aventura épica do robô Roz, a última unidade das chamadas ROZZUM ainda funcional e inteligente. Preso nesta ilha aparentemente sozinho, Roz precisa sobreviver às intempéries da floresta. Sua única esperança é se adaptar ao ambiente hostil e avesso às suas programações. Para isso, Roz passa a conviver com os animais aprendendo sobre a vida na selva e os modos de sobrevivência na natureza. É durante essa exploração que Roz encontra um filhote de ganso e estabelece como missão cuidá-lo. Desse laço inesperado com o bicho abandonado, Roz se aproxima de uma realidade nova e instigante, construindo uma relação harmoniosa com os animais nativos. Do mesmo diretor de "Lilo & Stitch" e "Como Treinar o Seu Dragão", Robô Selvagem é uma história comovente sobre a convivência entre tecnologia e natureza e o significado de estar vivo.

COMENTÁRIO: O filme é lindo, é de emocionar qualquer pessoa. Fiquei pensando o que poderia destacar no comentário sobre o filme. Pensei na questão humana de busca por sentidos na vida. Me lembrei da crônica de Rubem Alves "O Nome" (ler aqui) e o que se esperam da gente desde que nascemos. Também me lembrei daquele desafio dos "Nove pontos" num formato de quadrado no qual a pessoa precisa atingir todos os pontos com apenas quatro retas sem tirar o lápis do papel e sem repetir ponto.

A história do robô Roz é sobre esses dois temas: encontrar um sentido para si e como fazer isso superando o que está programado para ser: terá que pensar fora do quadrado. Roz não tem função alguma numa ilha onde não há um ser humano para ele realizar sua tarefa de servir da melhor forma possível uma pessoa. Aí a gente mergulha na história de Roz e no final a gente fica com um desejo saudoso de que os seres humanos robotizados pelo cotidiano se "humanizem" como aquele robô conseguiu fazer ao superar o que estava programado.

Filme lindo, maravilhoso! Vejo dez vezes o filme!

---

Ainda estou aqui (2024). Direção: Walter Salles. Roteiro: Murilo Hauser, Heitor Lorega. Com: Fernanda Torres, Selton Mello, Fernanda Montenegro e grande elenco.

SINOPSE: O filme é uma adaptação fiel ao livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, lançado em 2015 em homenagem à sua mãe, Eunice Paiva. Os telespectadores vão conhecer a história da família Paiva, que teve a vida alterada drasticamente após o golpe civil-militar de 1964. O deputado Rubens Paiva e sua esposa Eunice Paiva têm cinco filhos e os ditadores cassam o mandato de Paiva, que se exila em 1964 e depois volta ao Brasil para viver como engenheiro no Rio de Janeiro em 1970/71. No feriado do dia 20 de janeiro de 1971, homens invadem a casa da família no Leblon e levam Rubens Paiva. Depois levam Eunice e uma de suas filhas. Paiva nunca voltaria para casa.

COMENTÁRIO: Vi depois que assisti ao filme uma entrevista de Marcelo Rubens Paiva (de 2022) falando a respeito de seu livro "Ainda estou aqui". O autor disse que escreveu o livro após as manifestações de 2013 e aquela onda crescente de fascismo e gente comum pedindo a volta da ditadura, enaltecendo torturadores etc. Ele achou aquilo assustador. Sua mãe, Eunice, já estava com Alzheimer. Marcelo entendeu que era uma espécie de dever cívico contar a história de sua família, principalmente de sua mãe, uma mulher extraordinária que se viu do dia para a noite sem o marido e companheiro de vida, sem recursos, acossada pelos "gorilas" (como diz ele) da ditadura implantada e com cinco filhos para criar.

Eu chorei bastante no filme. O diretor e o roteiro foram cuidadosos e sensíveis e a violência terrível que aquela família viveu foi tratada com um olhar nos bons momentos da vida em comum. Boa parte do filme foca a leveza do cotidiano de uma família que se ama. Muito bom isso!

Temas que me pegaram de jeito:

Duas temáticas mexeram muito comigo e ainda estão ocupando minha mente: o Alzheimer de Eunice Paiva e o momento quando a família vai embora do Rio para São Paulo. Essas questões me arrebentaram!

Eu vivi situação parecida com a do garoto Marcelo e suas irmãs, forçados a irem embora da casa deles daquele jeito, deixando para trás uma vida feliz. Na hora, fiquei arrasado ao me dar conta de que não me lembro do momento em que fui embora de minha vida feliz aos dez anos de idade. Minha mente apagou tudo! Só volto a ver cenas do passado já em Uberlândia, outra cidade, outra vida.

E o Alzheimer... puta que pariu! Não sei qual das doenças mortais mais comuns é pior. Uma pessoa ter Alzheimer e deixar de ser ela a cada dia é uma das piores coisas do mundo, para todas as pessoas do convívio dela! É sacanagem a mente de uma pessoa ir apagando tudo até não sobrar nada do que somos... é o que mais temo! Se pudéssemos escolher, gostaria de evitar um fim de existência por uma desgraça dessas.

Estou lendo o livro de Marcelo e gostaria de agradecer a ele por nos dar essa oportunidade de conhecer essa história, que é parte da história do Brasil.

---

Que filmes extraordinários esses dois que vi nos cinemas nesses dias!

William Mendes

16/11/24


Post Scriptum: o texto anterior desta série sobre filmes pode ser lido aqui.


Diários com Machado de Assis (16)



Refeição Cultural 

Conto: D. Paula (1884)

"(...) tudo isso era como as frias crônicas, esqueleto da história, sem a alma da história."


O enredo do conto tem como protagonista uma mulher já madura, viúva, e que se dispõe a ajudar um jovem casal que brigou por uma questão de ciúmes. D. Paula é tia de Venancinha, casada com Conrado, jovem advogado do Rio de Janeiro.

O conto começa com Venancinha aos prantos por ter sido acusada pelo marido de estar enamorada de um fulano novo na cidade: Vasco Maria Portela, filho de um antigo diplomata de mesmo nome, aposentado e vivendo na Europa.

Para tentar reaproximar o casal, D. Paula propõe ao marido Conrado levar a sobrinha consigo para ficar algumas semanas na casa dela na Tijuca. A tia promete ao marido dar uns conselhos à jovem e melhorar o comportamento da esposa.

É aí que veremos como se desenvolve a história através das confidências entre tia e sobrinha.

---

Eu não conhecia este conto ainda. Ele foi publicado na Gazeta de Notícias, em 12 de outubro de 1884, e depois saiu na coletânea de contos do livro "Várias histórias", de 1895 ou 1896, segundo fontes diferentes.

"D. Paula, inclinada para ela, ouvia essa narração, que aí fica apenas resumida e coordenada. Tinha toda a vida nos olhos; a boca meio aberta, parecia beber as palavras da sobrinha, ansiosamente, como um cordial. E pedia-lhe fiança. O ar da tia era tão jovem, a exortação tão meiga e cheia de um perdão antecipado, que ela achou ali uma confidente e amiga, não obstante algumas frases severas que lhe ouviu, mescladas às outras, por um motivo de inconsciente hipocrisia. Não digo cálculo; D. Paula enganava-se a si mesma. Podemos compará-la a um general inválido, que forceja por achar um pouco do antigo ardor na audiência de outras campanhas."

Os leitores vão conhecer a "alma da história" ao descobrir os segredos não da sobrinha Venancinha, mas da tia dela, D. Paula, ao ouvir as confissões da jovem. 

Ao lerem o conto, atentem para o comportamento da personagem principal, D. Paula.

"Machado foca o comportamento das mulheres em várias obras, pois elas são controladas, ou seja, elas buscam burlar o controle, como a lei que cria o contraventor." (do blog Refeitório Cultural)

Ver postagem sobre a aula do professor Hansen aqui.

---

ESCRAVIDÃO PERSISTE

"(...) A primeira escrava que a viu, quis ir avisar a senhora, mas D. Paula ordenou-lhe que não..."

"(...) e lá dentro as pretas espalhavam o sono contando anedotas, uma ou outra vez, impacientes..."


Sempre necessário comentar a naturalização da condição de pessoas escravizadas no passado ou pouco tempo atrás. 

É difícil não perceber a atualidade da luta por direitos básicos e universais a pessoas que executam serviços nas residências de outras pessoas, comumente chamadas de "empregadas domésticas". 

Por mais de um século, após a lei que aboliu a escravidão em 1888, as mulheres que trabalhavam nas casas da "classe média" e nas casas-grandes (casas dos ricos de verdade) seguem na condição de trabalho análogo à escravidão.

Os governos do Partido dos Trabalhadores mexeram num vespeiro ao propor direitos básicos às empregadas domésticas. A casa-grande e a "classe média" acabaram derrubando o governo pela petulância dele em aumentar o custo da empregada (e por diminuir o spread bancário também, em 2012).

A exploração dos seres humanos na forma de escravidão ou trabalhos análogos à escravidão segue há mais de 500 anos aqui no Brasil.

Até quando?

William


quinta-feira, 14 de novembro de 2024

Dom Quixote de La Mancha - Miguel de Cervantes (2)



Refeição Cultural

"En efecto, llevad la mira puesta a derribar la máquina mal fundada destos caballerescos libros, aborrecidos de tantos y alabados de muchos más; que si esto alcanzáredes, no habriades alcanzado poco." (Prólogo)


De novo cito o "contrato" entre autor do livro e leitores da obra: "El ingenioso caballero don Quijote de la Mancha", publicado em 1605, é uma narrativa criada por Miguel de Cervantes para denunciar "a máquina infundada dos livros de cavalarias" da época, que eram muito populares.

---

CAPÍTULO 1

"Que trata de la condición y ejercicio del famoso hidalgo don Quijote de la Mancha"

A abertura da história e apresentação do fidalgo senhor Quijana que conheceremos como o famoso cavaleiro Dom Quixote é uma delícia!

"En un lugar de la Mancha, de cuyo nombre no quiero acordarme, no ha mucho tiempo que vivia un hidalgo..."

Em seguida há uma descrição da condição econômica do fidalgo. 

Depois os leitores conhecem a ama e a sobrinha do fidalgo:

"Tenía en su casa un ama que pasaba de los cuarenta, y una sobrina que no llegaba a los veinte, y un mozo de campo y plaza, que así ensillaba el rocín como tomaba la podadera..."

Após os leitores conhecerem a condição econômica bem mediana do fidalgo e as pessoas que viviam com ele, o narrador vai descrever o fidalgo:

"Frisaba la edad de nuestro hidalgo con los cincuenta años; era de complexión recia, seco de carnes, enjuto de rostro, gran madrugador y amigo de la caza..."

E então o narrador diz aos leitores que a história é baseada em fatos reais, que o importante é que a narrativa não vai se desviar da verdade. Vejam a técnica narrativa do romance ficcional de Cervantes, é muito inovadora.

"Quieren decir que tenía el sobrenombre de Quijada o Quesaba (que en esto hay alguna diferencia en los autores que deste caso escriben), aunque por conjeturas verosímiles se deja entender que se llamaba Quijana. Pero esto importa poco a nuestro cuento; basta que en la narración dél no se salga un punto de la verdad."

Outro personagem que conhecemos no início da história é o cura, com quem o senhor Quijana debatia as aventuras dos heróis dos livros de cavalarias:

"Tuvo muchas veces competencia con el cura de su lugar (que era hombre docto, graduado en Sigüenza)... (uma ironia de Cervantes)

E também conhecemos o barbeiro local:

"(...) mas maese Nicolás, barbero del mesmo pueblo, decía que ninguno llegaba al Caballero del Febo..."

---

LEU TANTO SEM DORMIR QUE SEU CÉREBRO SECOU

O senhor Quijana lia tantos livros de cavalaria, de dia e de noite, que deixou de cuidar de seus afazeres e acabou ficando meio doido, o narrador diz que seu cérebro secou.

“En resolución, él se enfrascó tanto en su lectura, que se le pasaban las noches leyendo de claro en claro, y los días de turbio en turbio; y así, del poco dormir y del mucho leer se le secó el celebro, de manera que vino a perder el juicio.” (de “El ingenioso caballero don Quijote de la Mancha. Parte 1", Spanish Edition, Miguel de Cervantes)

---

CORRER O MUNDO EM BUSCA DE AVENTURAS PARA SUA HONRA E PARA DESFAZER SITUAÇÕES AGRAVADAS

O fidalgo, já ancião para a época, se prepara para sair pelo mundo em busca de aventuras para honrar a si mesmo e para desfazer todo gênero de agravo que encontre.

“En efecto, rematado ya su juicio, vino a dar en el más extraño pensamiento que jamás dio loco en el mundo, y fue que le pareció convenible y necesario, así para el aumento de su honra, como para el servicio de su república, hacerse caballero andante, e irse por todo el mundo con sus armas y caballo a buscar las aventuras, y a ejercitarse en todo aquello que él había leído que los caballeros andantes se ejercitaban, deshaciendo todo género de agravio, y poniéndose en ocasiones y peligros, donde acabándolos, cobrase eterno nombre y fama.” (de “El ingenioso caballero don Quijote de la Mancha. Parte 1", Spanish Edition, Miguel de Cervantes)

---

O CAVALO ROCÍN VIROU O FAMOSO ROCINANTE

Depois de quatro dias pensando que nome poderia dar ao seu cavalo, o fidalgo encontrou o nome ideal.

“y así, después de muchos nombres que formó, borró y quitó, añadió, deshizo y tornó a hacer en su memoria e imaginación, al fin le vino a llamar Rocinante, nombre, a su parecer, alto, sonoro y significativo de lo que había sido cuando fue rocín, antes de lo que ahora era, que era antes y primero de todos los rocines del mundo.” (de “El ingenioso caballero don Quijote de la Mancha. Parte 1", Spanish Edition, Miguel de Cervantes)

---

DOM QUIXOTE... DE LA MANCHA

Após colocar nome em seu cavalo, o fidalgo levou mais oito dias pensando em um nome para si mesmo. Até que lhe veio o nome: Dom Quixote.

Para honrar sua linhagem e sua pátria, acrescentou o "de La Mancha" ao nome do cavaleiro andante.

---

A DAMA AMADA PELO CAVALEIRO ANDANTE

Faltava ainda a escolha de uma amada a quem dirigir seus pensamentos, atos e bravuras. E lembrando que "el caballero andante sin amores era árbol sin hojas y sin frutos, y cuerpo sin alma".

Finalmente, escolheu sua doce amada entre as mulheres das cercanias. Uma lavradora chamada Aldonza Lorenzo. Ela seria a doce Dulcinea del Toboso.

“halló a quien dar nombre de su dama! Y fue, a lo que se cree, que en un lugar cerca del suyo había una moza labradora de muy buen parecer, de quien él un tiempo anduvo enamorado, aunque, según se entiende, ella jamás lo supo ni se dio cata dello. Llamábase Aldonza Lorenzo, y a ésta le pareció ser bien darle título de señora de sus pensamientos; y buscándole nombre que no desdijese mucho del suyo, y que tirase y se encaminase al de princesa y gran señora, vino a llamarla Dulcinea del Toboso, porque era natural del Toboso, nombre, a su parecer, músico y peregrino y significativo, como todos los demás que a él y a sus cosas había puesto.” (de “El ingenioso caballero don Quijote de la Mancha. Parte 1", Spanish Edition, Miguel de Cervantes)

---

É isso! Temos aí tudo pronto para as primeiras aventuras de nosso cavaleiro andante Dom Quixote, seu cavalo Rocinante e tudo por honra de si mesmo e pela amada Dulcinea del Toboso.

William Mendes 

14/11/24


quarta-feira, 13 de novembro de 2024

Diários com Machado de Assis (15)



Refeição Cultural 

Osasco, 13 de novembro de 2024. Quarta-feira.


Dormi pouco. Tenho dormido mal faz dias. Poucas horas e sem acordar bem-disposto. E olha que ontem caminhei 4 Km, era para ter dormido melhor. Suspeito de vários motivos para o sono pouco reparador. Problemas da família que me afetam, e sempre a política, sendo eu um animal político.

Tendo acordado cedo, me levantei. Me deu vontade de ler alguma coisa do Bruxo do Cosme Velho. Sempre me equivoco nesse apelido de Machado de Assis e escrevo Mestre do Cosme Velho. Tudo bem! Ele é tudo isso e muito mais.

Peguei o livro de contos do Machado organizado por John Gledson. Li o conto "Conto da escola", que está grafado de duas formas no próprio livro do Gledson: está escrito "Conto de escola" no índice e nas referências ao final do livro e "Conto da escola" na página 326. Evidente que essa diferença faz diferença no sentido semântico. Como o autor é estrangeiro, pode ser questão de tradução. 

Fui olhar na internet em uma página onde consulto todos os contos do Machado de Assis: esse conto está lá no livro "Várias histórias", de 1896, e está grafado "Conto de escola".

---

CONTO DE ESCOLA (1884)

Vou ficar com a opção "Conto de escola". Ele foi publicado na Gazeta de Notícias em 8 de setembro de 1884 e depois no livro Várias histórias em 1895, segundo o livro de Gledson.

No enredo, um adulto faz referência ao passado, situa o caso que vai contar ao ano de 1840. Com uma memória incrivelmente detalhista, diz que o fato se passou numa segunda-feira do mês de maio. Pelo que pude perceber ao concluir a leitura do conto, o narrador teria motivos para guardar tantas lembranças do dia, pois teria sido um dia de aprendizado para toda a vida.

O garoto do ano de 1840 era peralta e inteligente, mas não ligava para a escola. Faltava às aulas ao sabor das escolhas diárias entre brincar em algum lugar ou ir para a escola. Ele teria menos de onze anos, pois faz referência a um menino bem mais velho de onze anos, o Curvelo.

No dia em questão, ele optou por ir à escola porque lembrou-se da sova que o pai havia lhe dado dias antes por alguma coisa que teria feito. Não fica claro se apanhou com vara de marmeleiro por ter faltado à escola ou não. Mas poderia ter sido esse o motivo da sova.

"(...) Ora, foi a lembrança do último castigo que me levou naquela manhã para o colégio. Não era um menino de virtudes."

Nosso narrador é chamado lá no passado por "Seu Pilar". O menino que dialoga com ele na cena da sala de aula se chama Raimundo e é filho do mestre, Policarpo. O narrador diz que o garoto não é muito inteligente e o seu pai é mais duro com ele do que com o restante dos alunos. Raimundo tem medo dos castigos do pai, o professor.

Seu Pilar nos conta que era um menino inteligente, mesmo sabendo que isso seria arrogante de se dizer. Acaba antes de todos as tarefas da escola (e faltava com frequência pelo que temos de informação no início do caso narrado).

O assunto da história que Seu Pilar está nos contando é sobre uma "troca de serviços", um "toma lá, dá cá" entre alunos. Foi uma proposta inédita para o garoto. Uma cola para uma lição de sintaxe a troco de uma pratinha (doze vinténs ou dois tostões). O garoto, Seu Pilar, se tinha dinheiro, era uns cobres (um cobre feio, grosso, azinhavrado...)

A causa do negócio, a "troca de serviços", era o medo que o Raimundo tinha do pai, o professor. Estamos no cenário do século 19 e a pedagogia do ensino é a violência, a temida palmatória, pendurada ao lado da janela da sala.

A história caminha para o seu desfecho, Seu Pilar pega a moeda, passa a cola e os dois são vistos pelo menino mais velho, o Curvelo.

Eu não gosto de dar spoiler em meus textos sobre romances, contos e filmes... 

Este conto em questão é de domínio público, qualquer pessoa pode lê-lo e ele é bem pequeno, de leitura rápida. 

Na página do blog, na versão para "web" (e não celular), tem um link para os contos do Machado na seção "Links a caminho da cultura". 

O final é bem ao estilo do escritor. O homem adulto que narra o "Conto de Escola" disse que aprendeu a lição naquele dia a respeito das consequências da corrupção e da delação. 

Mas o que realmente dominou seu coração no dia seguinte acabou sendo outra coisa, um encantamento que teve pelo caminho, que mudou seu foco e, quem sabe, até seu destino.

É isso! Eu não conhecia esse conto do Bruxo do Cosme Velho. Foi uma novidade para mim.

William


Post Scriptum: o texto anterior desta série sobre leituras de Machado de Assis pode ser lido aqui.