sábado, 27 de setembro de 2025

Entrevista: João Pedro Stedile (2005)



Refeição Cultural

A entrevista concedida por João Pedro Stedile, liderança do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST), ao professor Juarez Guimarães para a confecção do livro "Leituras da crise - Diálogos sobre o PT, a democracia brasileira e o socialismo" (2006), livro editado pela Fundação Perseu Abramo, é uma aula extraordinária sobre o nosso país e as questões centrais à nossa classe, a classe trabalhadora.

À época, as entrevistas reunidas no livro foram fundamentais para entender melhor a crise do ano de 2005 - apelidada pela oposição e pela imprensa capitalista de "crise do mensalão" -, ocorrida no primeiro mandato do presidente Lula, do Partido dos Trabalhadores. 

Eu estava no começo do segundo mandato de representação de meus colegas bancários e todas as reflexões políticas e filosóficas que li e ouvi me ajudaram no diálogo com a base, e eu estava muito envolvido no trabalho de base da categoria. 

Tanto é verdade o que afirmo que durante o ano de 2005 e 2006 os locais onde me sentia mais acolhido eram nos departamentos e agências do BB, porque os bancários e bancárias conheciam minha atuação em defesa de nossos direitos e demonstravam apoio ao meu trabalho político e organizativo, mesmo sendo um militante petista e cutista, alvos das oposições de direita e conservadoras e das oposições que se diziam "mais à esquerda" que nós (coisa questionável).

O livro foi importante para mim e segue atualíssimo em seu conteúdo neste momento da história brasileira, ano de 2025!

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"O Estado brasileiro é um Estado montado pelas elites para unicamente garantir seus privilégios."

Essa afirmação feita por Stedile em 2006 serve para qualquer período da história do Brasil sob análise. Ela pode ser dita hoje, 2025, e poderia ser dita no passado, em 1968 ou 2016, ou ainda em 1888 ou 1889.

Seguem algumas afirmações de Stedile. 

SAIR DA CRISE COM A ENERGIA DO POVO 

"A verdadeira natureza da crise não era apenas ética; era uma disputa entre as classes dominantes para transformar o governo Lula em refém das políticas neoliberais."

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"A nossa força não está apenas na justeza das nossas ideias, está no contingente que conseguimos organizar para as mudanças."

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"Nós achamos que há uma alternativa para o governo; não basta o governo ficar respondendo se há ou não corrupção - isso é secundário nesta altura da luta de classes. O que é importante é o governo recuperar o debate na sociedade sobre a necessidade de um novo modelo econômico para o país." (o MST disse isso de viva voz a Lula durante a crise)

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O DESAFIO DAS FORÇAS SOCIAIS 

"A sociedade brasileira vive uma crise de destino, uma crise de projeto."

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"Se você parte de uma análise, como certos setores da esquerda, que estão no governo, e das classes dominantes, de que a economia brasileira vai muito bem, a sua leitura é diferente (da) dos movimentos."

Comentário: Stedile explica bem os malefícios do agro e do modelo exportador do Brasil para o povo e o país. 

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Consequências do neoliberalismo 

"Essa crise ideológica de valores talvez seja uma das consequências mais graves do neoliberalismo. E isso vai para dentro dos movimentos também - o dirigente sindical não quer ser presidente para se transformar num líder de massas, ele quer ser presidente porque em algum momento ele vai viver - ele pessoalmente - melhor do que sua categoria, por benesses. Isso é o antivalor: eu quero resolver o meu, e não o da minha categoria."

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Stedile explica que 1964 e 1989 foram dois momentos brasileiros de derrotas dos movimentos populares no país. E quando Lula foi eleito em 2002 era um momento de descenso dos movimentos. 

"Costumo citar uma fala do Eric Hobsbawm em que ele considerou extemporânea a vitória do PT nas condições históricas do Brasil. Por quê? Normalmente a esquerda ganha eleições, ou seja, batalhas eleitorais, como fruto do ascenso do movimento de massas. Nós aqui tivemos uma vitória da batalha eleitoral importante, que foi a vitória do Lula, mas em um momento de descenso."

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"As esquerdas, se quiserem ser consequentes, têm que trabalhar com uma visão de longo prazo."

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Tarefas dos movimentos sociais de esquerda 

1. Formação política da militância: preparar pessoas que interpretem a realidade e tenham capacidade de transformá-la

2. Voltar a fazer trabalho de base, o que significa organizar as pessoas nos seus locais de vivência, seja na fábrica, na comunidade rural, no colégio ou universidade 

3. A necessidade de priorizar o trabalho com a juventude pobre urbana, setor social que representa as reservas e a vontade de mudanças 

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LUTA DE MASSAS

"Quando não se prioriza a luta de massas, abandona-se também a concepção de que o povo é e deve ser o principal ator político das mudanças."

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"O problema não é a via institucional; ela faz parte da vida das pessoas, nós vamos debater sempre, vamos participar sempre. O problema é ter abandonado o outro lado, a luta de massas. Porque são as lutas de massa que acumulam força, que educam as massas; os militantes e os quadros são educados na formação política, mas as massas são educadas na luta. E, quando não se prioriza a luta de massas, abandona-se também a concepção de que o povo é e deve ser o principal ator político para as mudanças."

COMENTÁRIO: aqui cabe um comentário do blog, quando critico o movimento sindical por não fazer mais assembleia presencial: isso é péssimo! Não educa a base! Se o dirigente sindical não tira o trabalhador de seu trabalho sequer para ir a uma reunião para decidir seu salário e direitos, como ele quer que o trabalhador participe de uma manifestação política por democracia ou direitos políticos ou civis?

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"As eleições não transformam o povo em agente de mudança. Nas eleições o povo é um mero ator passivo que vai até a urna e deposita o seu voto e depois não tem controle nenhum, tanto é que nem se lembra em quem votou, para quem ele deu esse poder de representação."

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"Só haverá uma inflexão mais democratizante do governo se houver pressão das bases partidárias, dos movimentos sociais e das mobilizações de massa."

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SOBRE O MST E A LUTA PELA REFORMA AGRÁRIA 

"O neoliberalismo afetou decisivamente a viabilidade da reforma agrária no Brasil."

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O MST é diferente da esquerda ortodoxa 

"Incorporamos no movimento a ideia da autonomia do partido, mas incorporando no movimento social princípios organizativos que os partidos tinham preservado ao longo da luta de classes. Então, a ideia da formação de quadros, de ter os nossos jornais, de ter as nossas escolas, a ideia de núcleo de base, tudo isso aprendemos da luta de classes em geral, ou seja, que os partidos eram os condutores - e nós incorporamos no movimento. Essa é a novidade do MST."

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"A reforma agrária no Brasil não é viável se não for parte de um projeto antineoliberal ou antiimperialista."

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Stedile já avaliava em 2006:

"Hoje estamos vendo que o neoliberalismo no campo, na agricultura, é a subordinação completa das formas de organização da produção agrícola às transnacionais e ao capital financeiro - isso inviabiliza definitivamente a possibilidade de organizar a produção camponesa."

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"Então, os nossos inimigos antes eram o latifúndio atrasado, patrimonialista, que reservava a terra como poder econômico e político. Desde a década de 1990, para a reforma agrária avançar precisamos enfrentar um poder muito maior, o poder do agronegócio, das transnacionais, do capital internacional e suas alianças internas, como a própria mídia."

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Tem uma parte da entrevista na qual Stedile explica as estratégias do MST, é uma espécie de texto "O que fazer". (p. 168 e seguintes)

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"O capitalismo (...) agora, na sua etapa monopolista, não disputa mais a propriedade da terra conosco, ele disputa o controle da produção e da comercialização."

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"E foi aí que fomos nos abastecer não só nas obras clássicas de Marx e dos que procuraram interpretar o capitalismo depois de Marx - e fugimos do reducionismo de 'marxismo-leninismo'; a nossa visão é de que todos os pensadores vão contribuindo numa elaboração permanente da ciência e da reinterpretação da realidade."

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Reforma agrária adequada ao caso brasileiro 

"E chegamos à seguinte síntese, que ainda está em processo de construção: evidentemente não há mais espaço no Brasil para uma reforma agrária do tipo clássico capitalista, a burguesia não precisa distribuir terra, e, ao mesmo tempo, não adianta ficarmos sonhando com uma reforma agrária socialista, a famosa tese de Lenin de nacionalizar a propriedade da terra, isso também não resolve. Temos que construir um projeto de reforma agrária que seja coadunado com um projeto popular de desenvolvimento nacional."

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"Se você não tiver vontade, se não tiver projeto, não constrói força para mudar."

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"O agronegócio é a remaquiagem da velha plantation do colonialismo, não traz nenhum benefício para a sociedade brasileira."

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Stedile nos explica a Lei Kandir (governo FHC), que isenta exportações de produtos primários de ICMS e tem efeito de transferir mais-valia social aos fazendeiros do agro, exportadores e mineradoras. (p. 177/178)

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Princípios do MST

"Que princípios são esses? A ideia da direção colegiada, de não ter presidente, secretário, tesoureiro, embora as divisões de função existam; a ideia de direção coletiva; de formação de quadros; de garantir unidade e disciplina, não disciplina hierárquica ou militar, mas disciplina da democracia - se a maioria decide, é preciso que haja unidade em torno desta decisão; a ideia do trabalho de base; da luta de massas; e a ideia de inserção dos militantes e dirigentes em todo este trabalho."

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Simbologia 

"Ao mesmo tempo, outros sociólogos nos criticam por recuperarmos a cultura, a mística (...) Procuramos em todas as atividades do movimento incorporar essa visão pedagógica de cultivar o nosso projeto com atividades culturais, com atividades lúdicas, com a simbologia."

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"Faz-se isso em jogo de futebol, em tudo o que tiver massa você usa o símbolo, porque ele resume, ele sintetiza e aglutina em torno do projeto, do objetivo coletivo: bandeira, hino, cantos, alegorias, passeatas, palavras de ordem, tudo isso chamamos de mística."

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SOBRE A CONJUNTURA POLÍTICA NACIONAL 

"A classe dominante faz a disputa política e ideológica não pelo partido, mas pelos meios de comunicação."

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"É no meio do povo, da mobilização de massas, que vão se reconstruindo forças e rearticulações de poder real que podem mudar."

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Lição final: está desanimado ou em crise, vá para a base!

"Nós do MST, e aconselho isso a todos os amigos/as, quando desanimamos sempre nos colocamos como tarefa: voltar e passar uma semana no meio do povo, num assentamento, num acampamento, e lá nós recuperamos as energias. Porque, no fundo, é no meio do povo, da mobilização de massas, que vão se reconstruindo forças e rearticulações de poder real que podem mudar."

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Comentário final 

Que entrevista extraordinária! Mais atual que nunca!

Essas lições são de 2006. 

Por esses dias, vi uma entrevista de Stedile à CartaCapital, e aprendi tanta coisa que nem digo aqui. Daria outro textão.

Ouçam as lideranças do MST! É muita sabedoria, amigas e amigos leitores.

William

27/09/25 (22h14)

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