José de Souza Martins*
Fonte: Estadão, 29 de abril de 2012
Para sociólogo, a falta de um sistema de cotas deixava de fora milhares de talentos potenciais de jovens que precisavam apenas de uma oportunidade e um desafio para mostrar do que são capazes
O
julgamento da ação contra o regime de cotas raciais para ingresso na
Universidade Nacional de Brasília é histórico porque leva a Justiça a decidir
sobre os duradouros débitos de uma abolição mal feita da escravatura. A
abolição não foi essencialmente motivada por intuitos humanitários nem pelo
indiscutível reconhecimento da humanidade do negro em cativeiro. Nem o Estado
nem os fazendeiros assumiram o ônus da escravidão que os beneficiara. Florestan
Fernandes, em livro referencial da sociologia brasileira, já demonstrara os
efeitos perversos dessa modalidade de abolição no estado de anomia e
desorganização social, desamparo e pobreza, a que lançou o negro liberto. A
abolição foi feita para libertar o senhor do fardo de seu escravo, cujo preço
de mercado, com o fim do tráfico negreiro, tornou-o comparativamente oneroso e
antieconômico em relação ao trabalho livre.
Em
1883, o abolicionista Joaquim Nabuco, que fora aluno da Faculdade de Direito de
São Paulo, de uma rica família da Província de Pernambuco, publicou O
Abolicionismo, um clássico do ideário da luta contra a escravidão.
Nele, faz esta afirmação fundamental: “A emancipação não significa tão somente
o termo da injustiça de que o escravo é mártir, mas também a eliminação
simultânea dos dois tipos contrários, e no fundo os mesmos: o escravo e o
senhor”. No entanto, citada como de outro autor, essa premissa fundamental não
presidiu o embate judicial de agora nem influenciou a decisão final do STF.
Embora estivesse em jogo a emancipação do povo brasileiro dos fantasmas das
servidões que o assombram.
A escravidão indígena foi formalmente abolida em 1755 com o
Diretório dos Índios do Grão-Pará e Maranhão e a escravidão negra o foi, como
sabemos, em 1888. Invocou-o a vice-procuradora-geral da República, em citação
incorreta, para explicar o fenômeno da miscigenação e impugnar a definição minimalista
de negro na presente disputa, mesmo que a maioria dos negros seja constituída
de mestiços, nem por isso menos negros. Alegou que a miscigenação entre nós foi
produto de uma engenharia social dos tempos coloniais, que determinava “aos
homens brancos a união com mulheres negras como uma estratégia de povoamento e
de criação de força de trabalho escravo...”. Nada disso consta do Diretório
que, para abolir a escravidão do índio e do pardo, suspendia as interdições
estamentais que os alcançava e degradava socialmente o branco que casasse com
índia. Era, juridicamente, outra escravidão.
O lugar desse equívoco ficou evidente na intervenção da
representante do Movimento Pardo-Mestiço Brasileiro, que questionou o dualismo
branco-negro que informava o julgamento e informa a controvérsia sobre as
cotas. O censo demográfico de 2012 contou no país 48,2% de brancos, 6,9% de
pretos, 44,2 de pardos e 0,7% de amarelos e índios, e lembrou que juntar negros
e pardos numa única categoria, como se fossem todos negros, usurpa direitos de
identidade dos pardos e mestiços.
A questão é mais complicada do que a de direitos supostamente
gerados pela cor da pele e nem foi isso que o Supremo decidiu. O País
discrimina e na discriminação é injusto. A cor da pele é o estigma de marca,
como assinala Oracy Nogueira, em que se apoia o preconceituoso para
discriminar. Se recorrêssemos a um dos mais insignes conhecedores da nossa
questão racial, o sociólogo Roger Bastide, saberíamos que a negritude não está
na cor da pele. Está nas estruturas profundas e oníricas da consciência negra.
Nesse sentido, um número provavelmente expressivo dos que se consideram negros,
no critério do regime de cotas, negros não são, não obstante a cor da pele,
pois descendentes dos que no cativeiro foram culturalmente privados da alma
dessa negritude. Estão crucificados no estigma.
A decisão do STF legitima uma tendência histórica do Brasil
contemporâneo, que é a do deslocamento dos seus eixos de orientação política da
referência clássica e meramente teórica do cidadão abstrato da doutrina, das
classes sociais da teoria e dos partidos políticos das ideologias. Essa decisão
põe no centro das demandas e tensões os grupos sociais discretos e restritos
que, através dos movimentos sociais e das ONGs, falam e reivindicam hoje pelos
carentes de todo tipo, os socialmente lesados e os vulneráveis.
A decisão afeta a universidade. Os negros beneficiados pelo
regime de cotas têm demonstrado, segundo várias fontes, competência que os
iguala aos seus colegas do regime tradicional. É evidente que o problema não
está num suposto filtro racial para ingresso na universidade e sim no critério
de recrutamento que deixa de fora milhares de competências e talentos
potenciais de jovens que precisam apenas de uma oportunidade e de um desafio
para mostrar do que são capazes. Afeta porque turba positivamente o privilégio
dos que acham que, tendo ingressado na universidade, já não têm o dever de
provar continuamente que têm direito de ocupar a vaga que nela ocupam. Agora, o
terão.
*JOSÉ DE SOUZA MARTINS É SOCIÓLOGO, PROFESSOR EMÉRITO DA
FACULDADE DE FILOSOFIA DA USP E AUTOR, ENTRE OUTROS, DE EXCLUSÃO SOCIAL E A NOVA
DESIGUALDADE (PAULUS, 2009)
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