A nossa edição do livro. |
Refeição Cultural
Terminei neste mês de fevereiro a leitura do livro de Patrick Süskind - O perfume, a história de um assassino (1985). O livro é de minha esposa e ela ganhou na adolescência esta edição que temos. Eu comecei a leitura dele lá em setembro de 2014... como faço com dezenas de livros. Li a primeira parte da obra até outubro daquele ano. Aí fiz como Jean-Baptiste Grenouille quando hibernou por sete anos no maciço de Auvergne, em uma caverna: fiquei sem pegar no livro por mais de dois anos. Quando foi dia 8 de fevereiro, para aliviar o estresse do trabalho, retomei a leitura em voo para Natal, RN. Consegui embalar e terminar as outras três partes da ficção em quatro dias.
Como tenho escrito neste Blog de cultura, entrei neste ano de 2017 com certa urgência em acabar leituras iniciadas e nunca finalizadas, urgência em ler e ler para buscar compreender tudo o que tenho visto e vivido em nosso mundo. A sensação em meio às crises e golpes contra nós povo trabalhador é que não sabemos sobre o amanhã, sequer sobre nossas vidas. Por mais que saibamos que a vida humana é dádiva, é instável e que se extingue num segundo, o fato concreto é que o momento político, econômico e social é de desconstrução de direitos sociais e de más perspectivas para a nossa classe, a trabalhadora.
Para entrar no período de descanso do feriado brasileiro de Carnaval, iniciei meu ciclo cultural assistindo ao filme baseado na obra de Süskind. O filme tem o mesmo nome da obra, é de 2006 e foi dirigido por Tom Tykwer. Uma coisa que gosto em adaptações para o cinema de obras literárias é quando o roteiro e direção mantêm o fio condutor da obra sem viajar demais nos gostos pessoais de adaptação, fugindo ao original. Nunca me esqueço de uma cena do filme "O poderoso chefão" ao ver um detalhe em uma personagem que guardei da leitura da obra de Mário Puzo. Um dos filhos do chefão teve o nariz quebrado ao ser espancado e nunca mais deixou de ter coriza. Quando vi o filme respeitar essa característica na personagem, achei muito legal.
Eu não tenho um olfato apurado. Durante a leitura do livro, fiquei refletindo sobre esse dom de perceber de forma intensa os odores do mundo. É provável que eu tenha perdido um pouco da sensibilidade olfativa por causa de alguns trabalhos braçais que fiz na infância e adolescência. Trabalhei de ajudante de encanador, quebrar concreto e mexer em esgoto e merda dos outros. E o pior trabalho que fiz quando era ajudante de depósito de palmitos foi me colocarem num canto isolado para abrir latas estufadas e podres de palmito para jogar fora. É o pior fedor do mundo! Nunca esqueci. Imaginem se havia uso de material de proteção nos anos oitenta... nem hoje usam como deve. Já lidei com os piores cheiros do mundo. Também estudei corpos em laboratório de anatomia, cheiro de corpos com formol.
Gostei do livro e gostei do filme. Eu os recomendo para aqueles que querem fugir um pouco de suas rotinas de trabalho e vida. Vou deixar alguns excertos abaixo que me chamaram a atenção, não muitos porque daria muito trabalho transcrever, mas fiquei pensativo sobre as descrições daquele mundo do século 18 em odores.
O filme baseado na obra de Süskind. |
Excertos...
O COMEÇO (IMAGINEM OS ODORES DA ANTIGA PARIS...)
"No século XVIII viveu na França um homem que pertenceu à galeria das mais geniais e detestáveis figuras daquele século nada pobre em figuras geniais e detestáveis. A sua história é contada aqui. Ele se chamava Jean-Baptiste Grenouille e se, ao contrário dos nomes de outros geniais monstros como, digamos, Sade, Saint-Just, Fouché, Bonaparte etc., o seu nome caiu hoje no esquecimento, isto certamente não ocorreu porque Grenouille tenha ficado atrás desses homens das trevas mais famosos em termos de arrogância, desprezo à raça humana, imoralidade, ou seja, em impiedade, mas porque o seu gênio e a sua ambição se concentravam numa área que não deixa rastros na história: o fugaz reino dos perfumes.
Na época de que falamos, reinava nas cidades um fedor dificilmente concebível por nós, hoje. As ruas fediam a merda, os pátios fediam a mijo, as escadarias fediam a madeira podre e bosta de rato; as cozinhas, a couve estragada e gordura de ovelha; sem ventilação, salas fediam a poeira, mofo; os quartos, a lençóis sebosos, a úmidos colchões de pena, impregnados do odor azedo dos penicos. Das chaminés fedia o enxofre; dos curtumes, as lixívias corrosivas; dos matadouros fedia o sangue coagulado. Os homens fediam a suor e a roupas não lavadas; da boca eles fediam a dentes estragados, dos estômagos fediam a cebola e, nos corpos, quando já não eram mais bem novos, a queijo velho, a leite azedo e a doenças infecciosas. Fediam os rios, fediam as praças, fediam as igrejas, fedia sob as pontes e dentro dos palácios. Fediam o camponês e o padre, o aprendiz e a mulher do mestre, fedia a nobreza toda, até o rei fedia como um animal de rapina, e a rainha como uma cabra velha, tanto no verão quanto no inverno. Pois à ação desagregadora das bactérias, no século XVIII, não havia sido ainda colocado nenhum limite e, assim, não havia atividade humana, construtiva ou destrutiva, manifestação alguma de vida, a vicejar ou a fenecer, que não fosse acompanhada de fedor..."
A ESSÊNCIA DO PERFUME
"Grenouille ficou fascinado pelo processo. Se alguma coisa na vida conseguira entusiasmá-lo - é claro que não de modo externamente visível, mas em contido entusiasmo, a arder como em chama baixa - era esse trabalho, com fogo, água e vapor e uma delicada aparelhagem, de arrancar às coisas a sua alma aromática. Essa alma aromática, o óleo etéreo, era afinal o melhor que nelas havia, a única razão pela qual se interessava. Todo o resto - flores, folhas, cascas, fruto, cor, beleza, vida e tudo o que nelas mais houvesse de supérfluo - nada disso o interessava. Isso era apenas envoltório e peso morto. Tinha de ser eliminado..."
"PAZ OLFATIVA" (DO TEMPO DE HIBERNAÇÃO NA MONTANHA)
"(...) Pois suspeitava ainda encontrar em qualquer direção um escondido fragmento de cheiro humano. No entanto não havia nada aí. Havia apenas paz, e se assim se pode dizer, paz olfativa. Ao seu redor dominava apenas o odor homogêneo, soprando com leve sussurro, das pedras mortas, dos liquens cinzas e das gramíneas ralas, nada mais..."
O CHEIRO (MAU CHEIRO) DO SER HUMANO
"Ele queria apropriar-se, e mesmo que por enquanto fosse apenas um mau subproduto, do cheiro de gente, cheiro que ele mesmo não tinha. É verdade que não existe o semblante humano. Cada ser humano cheira de um modo, ninguém sabia disso melhor que Grenouille, que conhecia milhares e milhares de cheiros individuais e era capaz de distinguir pelo faro pessoas desde o nascimento. E no entanto havia um aroma humano essencial, aliás bastante simples: um tema básico, sudorento e gorduroso, de queijo azedo, um tema em si bastante nojento, que impregnava igualmente todos os homens e por sobre o qual flutuavam, mais refinadas e isoladas, as nuvenzinhas de uma aura individual..."
INGREDIENTES PARA REPRODUZIR O CHEIRO BÁSICO HUMANO
"Havia ali um montinho de merda de gato atrás do umbral da porta que levava ao pátio, ainda bastante fresco. Pegou meia colherinha disso, juntando-o a algumas gotas de vinagre e sal moído no garrafão de misturar. Debaixo da mesa da oficina encontrou um pedacinho de queijo do tamanho de uma unha, provavelmente resto de uma refeição de Runel. Estava bastante velho, começava a se decompor e emanava um forte odor. Da tampa do tonel de sardinhas, nos fundos de trás da loja, raspou algo como ranço de peixe, misturou-o com ovo podre e castóreo, amoníaco, noz-moscada, raspa de chifre e toucinho chamuscado, cortado em pedacinhos. A isso acrescentou uma quantidade relativamente alta de almíscar. Misturou esses horríveis ingredientes com álcool, deixou dissolver e filtrou numa segunda garrafa. O caldo tinha um cheiro devastador. Cheirava a cloaca pútrida, e quando se misturava a sua evaporação à brisa pura do movimento do leque, era como se se estivesse num dia quente de verão na Rue aux Fers, em Paris, esquina da Rue de la Lingerie, onde se encontravam os odores das galerias, do Cimitière des Innocents e das casas superlotadas..."
ENFLEURAGE (MODO DE CAPTURAR AS FRAGRÂNCIAS DAS COISAS)
"O resultado era ainda quantitativamente menor que na maceração. Mas a qualidade dessa pasta de jasmim obtida mediante enfleurage a frio ou a de uma huile antique de tubéreuse superava em finura e fidelidade o original de qualquer outro produto da arte da perfumaria (...) Mas, em todo caso, enfleurage a frio era o meio mais refinado e eficaz de captar fragrâncias suaves..."
Enfim, a ficção tem passagens interessantes. Em relação ao filme, algumas cenas são muito bem-feitas.
William
Bibliografia:
SÜSKIND, Patrick. O perfume, história de um assassino. Tradução de Flávio R. Kothe. 4ª edição. Editora Record.
2 comentários:
Livro da minha adolescência. Vi o filme também, não me lembro temporalidades...Nada a acrescentar em seus comentários, apenas: Não importa o perfume, a carne está podre do berço
E aí primo, tudo bem? Eu não esperava muito do livro e do filme. Acabei gostando de ambos.
Abração!
William
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