Refeição Cultural
Na sequência de releituras e leituras dos textos críticos que nos foram passados pela professora Viviana Bosi para termos embasamento teórico para refletir sobre o tempo, a passagem do tempo, a história, e as diversas configurações do tempo nas formas narrativas e poéticas, sigo agora com a leitura do texto "Tempo e história: 'Como escrever a história da França hoje?'*", de François Hartog.
Ler na sequência os textos que já li traz um aprendizado imenso, concentrado, e nos faz pensar muito a respeito de tudo na vida, inclusive de tudo o que está acontecendo neste momento, neste tempo histórico, de pandemia mundial, bolsonarismo, a fase atual do capitalismo etc. Li capítulos dos livros Mito do eterno retorno, Eliade; História do futuro, Minois; Futuro passado, Koselleck; e agora Tempo e história, Hartog. Muita reflexão...
A leitura e os estudos não diminuem nossa dor e sofrimento pelos acontecimentos do presente, mas nos ajudam a compreender os porquês dos fatos presentes.
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Logo no início da leitura de Hartog, ele nos fala de textos de Chateaubriand (1830) e Pierre Nora (anos 1980), ambos refletindo sobre refazer a leitura da história da França mediante supostos progressos da inteligência.
"Mas, de Chateaubriand à Nora, notamos de imediato uma diferença em relação ao tempo: o 'novo patamar' trazido pelo 'progresso' remete a uma visão do tempo como progresso." (p. 128)
Hartog vai nos explicar o que ele entende por "regimes de historicidade".
"Permitam-me aqui uma digressão e a introdução da noção de regime de historicidade. Entendo essa noção como uma formulação erudita da experiência do tempo que, em troca, modela nossa forma de dizer e viver nosso próprio tempo. Um regime de historicidade abre e circunscreve um espaço de trabalho e de pensamento. Ele dá ritmo à escrita do tempo, representa uma 'ordem' à qual podemos aderir ou, ao contrário (e mais frequentemente), da qual queremos escapar, procurando elaborar outra. Posso dizer que a frase emprestada de Tocqueville, 'Quando o passado não mais esclarece o futuro, o espírito caminha nas trevas', esclarece meu propósito. Antes (quando o passado esclarecia o futuro, quando a relação do passado com o futuro era regrada pela referência ao passado) era o tempo da historia magistra vitae [história mestra da vida]. Quando, ainda em 1796, Chateaubriand pensava que poderia 'iluminar, tendo nas mãos o facho das revoluções passadas, a noite das revoluções futuras', seu paralelo entre as revoluções antigas e modernas fazia parte daquele paradigma. Mas este antigo regime de historicidade se desfez. Na França, a Revolução marcou a transformação desta economia do tempo. Doravante, não é mais o passado que deve esclarecer o futuro, mas, inversamente, cabe ao futuro esclarecer o passado." (p. 129)
A partir da Revolução Francesa, a história deixou de ser exemplar e o novo se impôs ao presente e futuro.
"A exigência de previsões substitui as lições da história. O historiador não elabora mais o exemplar, mas está em busca do único. Na historia magistra, o exemplar reatava o passado ao futuro através da imagem do modelo a imitar. Com o regime moderno, o exemplar desapareceu para dar lugar àquilo que não se repete mais. O passado é, por princípio, ultrapassado. O futuro, ou melhor, o ponto de vista do futuro comanda: 'A História tornou-se essencialmente uma intimação endereçada pelo Futuro ao Contemporâneo'." (p. 130)
Hartog diz que a historia magistra vitae trazia a ideia de que "o futuro não repetia o passado, mas também nunca o excedia (movia-se no interior de um mesmo círculo, com as mesmas regras do jogo, a mesma Providência e os mesmos homens, partilhando a mesma natureza humana)." (p. 131)
PRESENTISMO - após os anos sessenta veio uma ideia de presentismo, conceito de tempo embalado pela sociedade do consumo e pela desvalorização do homem perante os avanços das ciências e das técnicas.
"O slogan 'esquecer o futuro' é provavelmente a contribuição dos anos sessenta ao estrito encerramento sobre o presente. As utopias revolucionárias, progressistas e futuristas em seu princípio, deveriam operar em um horizonte que pouco ultrapassasse o círculo do presente: Tout, tout de suite!, diziam os muros de Paris em 1968. Neles se inscreve um pouco depois: 'No future'. Vieram, com efeito, os anos setenta, as desilusões, a clivagem da ideia revolucionária, a crise econômica de 1974, e as respostas mais ou menos desesperadas ou cínicas que, em todo caso, apostaram no presente, somente nele e em nada além. Mas esse não era exatamente o carpe diem dos homens da Renascença." (p. 135)
Achei muito interessante a explicação que Hartog faz a respeito das "Falhas do presente". O presente já é visto como o passado, de forma que se constrói o presente para que no amanhã se olhe para trás.
"A economia (midiática) do presente não cessa de produzir e de consumir o acontecimento. Mas com uma particularidade: o presente, no momento mesmo em que se dá, deseja ver a si mesmo como já histórico, como já passado, voltando-se de uma certa maneira sobre si e antecipando o olhar que lhe dirigiremos quando ele for completamente passado, como se quisesse “prever” o passado, se tornar passado antes mesmo de ter advindo plenamente como presente. Esse olhar é aquele do presente sobre si mesmo. Um presente que é seu próprio passado, ou, ainda, sonha com o domínio do tempo ou, principalmente, com a sua supressão." (p. 137)
MEMÓRIA-HISTÓRIA (ou história-memória)
"O texto de abertura dos Lieux (lugares), “Entre memória e história”, parte da maré memorial buscando analisá-la e extrair-lhe as consequências do ponto de vista das formas de escrita da história e do exercício do ofício do historiador. Para Nora, indo quase que exaustivamente de um termo a outro como se procurasse um caminho entre eles, torna-se claro que a história nacional modelo Lavisse seria, no fundo, uma memória passada pelo filtro da história, uma memória “autentificada”, transubstanciada em história, “no cruzamento da história crítica e da memória republicana”: uma história-memória." (p. 141)
E Hartog completa:
"Lavisse assinalava ainda esta singularidade concernente à história da França: se a Revolução a tinha separado de seu passado, reconstruí-la seria então um “trabalho de erudição” e de história, não de memória. O que legitimava portanto a história no seu papel de instrutora nacional, a pietas erga patriam ("devoção à pátria", na tradução do Google), pressupunha o conhecimento da pátria. Estava clara a função, ou melhor, a missão da história." (p. 141)
Caminhando para o fim do texto, Hartog nos lembra o momento atual após a queda do muro de Berlim e o fim da União Soviética:
"E veio 1989, que simboliza o 9 de novembro com a queda do muro de Berlim e o fim da ideologia que se concebera como o degrau mais alto da modernidade. Não o fim da história, mas hipoteticamente, fim ou quebra no regime moderno de historicidade. Depois de 1989, podemos apreender melhor as novas relações com o tempo que se procura. Fim não significa que não haja mais futuro, mas que se reconheça que, mais que nunca, ele é imprevisível (tanto quanto 1989 obriga a repensar o mundo e que as regras do jogo mudaram). Do ponto de vista do passado, o fim da tirania do futuro teve como consequência torná-lo opaco, fazê-lo igualmente um passado em grande parte imprevisível." (p. 152)
O intelectual termina com perguntas e não com respostas:
"Como a Alemanha viverá como nação? E a Europa, o que pode ela ser? Como fazer sua história? Em todo caso, hoje, os historiadores não podem escamotear a questão da história nacional. Como escrevê-la ou reescrevê-la, sem reativar a historia magistra, a tirania do passado nem os pressupostos do século XIX, unindo progresso e nação, nacional e nacionalismo?" (p. 154)
Ufa! Outro longo texto teórico que me fez pensar bastante.
William
Bibliografia:
*Tradução de Ana Cláudia Fonseca Brefe. Artigo originalmente publicado na revista Annales ESC, 1995, nº 6, pp. 1219 à 1236. Somos gratos ao autor por seus esclarecimentos relativos a esta tradução. Revisão de Cristina Meneguello.
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