terça-feira, 2 de fevereiro de 2021

Tempo (XXIII)



Refeição Cultural

Sigo na releitura e leitura de textos críticos a respeito do tempo e das diversas configurações do tempo nas narrativas e poesias.

Estou lendo o segundo capítulo do livro Futuro passado, de Reinhart Koselleck. O capítulo se chama "Historia magistra vitae", uma expressão que vem desde a antiguidade, e aparece em uma obra de Cícero, Da Oratória.

Koselleck discorre no texto sobre a diferença de conceitos em relação às duas palavras alemãs para "história". Uma mais relacionada a "acontecimentos" (Geschichte) e a outra a "narrativa" (Historie). E que isso influenciou o conceito antigo de "Historia magistra vitae" (história mestra da vida).

"A história [Geschichte] como acontecimento [Begebenheit] único ou como complexos de acontecimentos [Ereigniszusammenhang] não seria capaz de instruir da mesma forma que uma história [Historie] compreendida como relato exemplar." (p. 49)

E completa o novo conceito que passou a se destacar a partir do século XIX:

"Um adversário político de nossa testemunha atribui à velha fórmula um significado novo e imediato, utilizando o sentido duplo do termo alemão: 'a verdadeira mestra é a história em si [die Geschichte selbst], e não a história escrita [die geschriebene]'. A história [Geschichte] só é capaz de instruir à medida que se renuncia à história [Historie] escrita. Todas as três variantes contribuíram para delimitar um novo espaço de experiência, à medida que a velha 'Historie' teve que renunciar à sua pretensão de ser magistra vitae." (p. 49)

Droysen resumiria o processo assim: "acima das histórias está a história". E Koselleck vai citar que após a Revolução Francesa "a história tornou-se ela própria um sujeito, ao qual foram designados atributos divinos como 'todo-poderosa', 'justa', 'equânime' e 'sacra'." (p. 50)

Seguindo na leitura do capítulo de Koselleck, fica claro para mim que o conceito de história que foi se firmando e prevalecendo é aquele que não fortalece o conceito de tempo cíclico e repetitivo da história porque as circunstâncias de cada momento são únicas e com isso as repetições de fatos ocorridos não se dariam como das vezes anteriores.

Koselleck cita historiadores e filósofos e também aponta a "filosofia da história" como conceitos que passariam a prevalecer a partir do século XIX.

"(...) Tiveram, entretanto, como perspectiva comum, a destruição da ideia do caráter modelar dos acontecimentos passados, para perseguir em lugar disso a singularidade dos processos históricos e a possibilidade de sua progressão. A constituição da história [Geschichte], no sentido que hoje nos é corrente, teve origem em um mesmo e único evento, tanto do ponto de vista histórico quanto linguístico. O surgimento da filosofia da história está associado exatamente a esse processo." (p. 54)

Koselleck está se referindo à Revolução Francesa.

E com o passar do tempo e dos estudos e debates, vai perdendo força o conceito de Historia magistra vitae (história mestra da vida):

"A filosofia, ao transpor para o progresso a história compreendida singularmente como um todo unitário, fez com que o nosso topos perdesse obrigatoriamente o sentido. Se a história se torna um evento único e singular da educação do gênero humano, então cada exemplo particular, advindo do passado, perderá força, necessariamente. Cada ensinamento particular conflui então no evento pedagógico geral. A perfídia da razão impede que o homem aprenda diretamente a partir da história, impelindo-o a seu destino de forma indireta." (p. 55)

COMENTÁRIO: Esse texto de Koselleck faz cair por terra o conceito que eu tinha de história... mas não deixa de ser interessante essa reviravolta para mim. Fica claro que a história não ensina nada para nós, sociedades humanas. Veja a que ponto chegamos no Brasil pós golpe de 2016! A explicação mais coerente da situação que vivemos é que a história não ensina porra nenhuma!

E o autor prossegue com seu ensinamento:

"Trata-se aqui da consequência progressiva que nos leva de Lessing a Hegel. 'O que a experiência e a história nos ensinam é que os povos e os governos jamais aprenderam algo a partir da história, assim como jamais agiram segundo ensinamentos que dela fossem extraídos'." (p. 55)

Se não fosse verdade isso, que a história não ensina porra nenhuma, não teríamos os erros sequenciais da esquerda, dos movimentos sociais e a tragédia atual do Brasil sob um regime neofascista, neoliberal e genocida em andamento sem qualquer reação razoável por parte do povo que é vítima e ao mesmo tempo é estupidamente apoiador do regime de destruição e a favor de poucos poderosos da casa-grande Brasil.

"Passado e futuro jamais coincidem, não apenas porque acontecimentos decorridos não podem se repetir. Mesmo se o fizessem, exatamente como no recrudescimento da Revolução de 1820 na Espanha, a história que vem ao nosso encontro escaparia à nossa capacidade de apreensão da experiência. Uma experiência acabada é tanto completa quanto passada, ao passo que aquela que se realizará no futuro desfaz-se em uma infinidade de diferentes extensões temporais." (p. 55/56 - o sublinhado é meu)

Já cansado da leitura, a parte final trouxe o conceito de historicismo e citou a escola histórica alemã.

"A escola histórica alemã, compreendendo-se como uma ciência que tem por objeto o passado, logrou elevar a história [Geschichte] à categoria de uma ciência de reflexão, fazendo uso pleno do duplo sentido da palavra 'Geschichte'. O caso isolado deixa de ter caráter político-didático. Mas a história [Geschichte], como totalidade, coloca aquele que a apreende de maneira compreensiva em um 'estado propício à formação' [Zustand der Bildung] que deve influir no futuro. Como sublinha Savigny, a história 'não é mais uma mera coleção de eventos, mas sim o único caminho para o verdadeiro conhecimento de nossa própria situação'." (p. 59/60)

Ufa! Que leitura difícil!

William


Bibliografia:

KOSELLECK, R. “O futuro passado dos tempos modernos” (Cap. 1) e “Historia magistra vitae” (Cap. 2). Futuro passado. Contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto PUC Rio, 2006.

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