Refeição Cultural
Osasco, 24 de abril de 2022. Noite de domingo.
Apesar de ter decidido neste ano não ler mais com periodicidade de leitor até que dê fim a questões domésticas proteladas por anos, de vez em quando sento-me alguns minutos e leio algumas páginas de livros iniciados. Foi assim o caso com o livro excelente de Hélio de Seixas Guimarães - O romance machadiano e o público de literatura no século 19 (2004). Terminei na manhã de sábado o Capítulo 2, que está na Primeira Parte "Sobre as condições de circulação e recepção da produção literária no Brasil oitocentista".
Em 1876 foi realizado um recenseamento no Brasil que surpreendeu a todos, principalmente ao mundo da literatura e das letras, surpreendeu pelo fato de demonstrar que o povo brasileiro era analfabeto (84%) e se considerarmos a pequena parcela dos alfabetizados em condições de ler e entender textos literários teríamos alguns milhares de pessoas, e só!
Uma frase de Machado de Assis me chamou a atenção porque a ideia central me trouxe à realidade dos dias de hoje. Hélio observa na citação de Machado, que vou reproduzir um trecho abaixo, que o escritor cita 70% de analfabetos, mas o censo diz que eram 84% os analfabetos.
Machado imagina um diálogo com o algarismo, os números do censo, ao dizer que os números falam por si, sem metáforas sem nada. A parte que sublinho é demais! É o Brasil de hoje. É o Brasil das eleições de 2018, que elegeu esse bando de monstros e canalhas e imbecis como se eleição fosse um divertimento qualquer.
Machado diz:
"(...)
A isto responderá o algarismo com a maior simplicidade:
- A nação não sabe ler. Há só 30% dos indivíduos residentes neste país que podem ler, desses uns 9% não leem letra de mão. 70% jazem em profunda ignorância. Não saber ler é ignorar o Sr. Meireles Queles, é não saber o que ele vale, o que ele pensa, o que ele quer, nem se realmente pode querer ou pensar. 70% dos cidadãos votam do mesmo modo que respiram: sem saber por que nem o quê. Votam como vão à festa da Penha, - por divertimento. A constituição é para eles uma coisa inteiramente desconhecida. Estão prontos para tudo: uma revolução ou um golpe de Estado." (p. 102 do livro de Hélio de Seixas Guimarães)
Demais essa comparação machadiana: votam do mesmo jeito que respiram, sem saber o que nem por que... porra, é isso que vivemos desde sempre nesta terra miserável!
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VERGONHA
Mudando de assunto, mas ficando no assunto de certo modo, ontem pela manhã, parei a leitura sobre Machado de Assis para ouvir uma live do grupo Prerrogativas, sobre os áudios do Superior Tribunal Militar (STM) do período da ditadura dos anos 1964-85.
O programa contou com a participação de Fernando Fernandes, o pesquisador que está trabalhando com o material, com seus professores e orientadores, Gizlene Neder e Gisálio Cerqueira, o professor e jurista Lenio Streck e o apresentador Gustavo Conde. O programa foi espetacular e me emocionei muito, muito. A live foi no site do Brasil247, no dia 23/4/22, com o título "Voz humana, por dentro dos áudios da ditadura".
Num certo momento, a professora Gizlene Neder lembrou a questão da "Vergonha" citando o escritor Primo Levi e foi um instante muito forte para mim. Gizlene relembrou a questão do encontro entre o exército vermelho, vitorioso e o primeiro a chegar aos campos de concentração, e as vítimas do nazismo. O choque do encontro... os russos chocados com aquilo que viram, os presos envergonhados por terem sofrido aquilo... eu desmoronei...
E pensar que 30% dos brasileiros apoiam e estão firmes com tudo o que significa esses monstros desumanos que ocuparam o poder no Brasil após o golpe de Estado... Eu não estou conseguindo lidar com isso faz tempo, tenho vergonha, tenho nojo, tenho raiva dessa gente bolsonarista, e essa gente está no prédio que moro, na comunidade familiar onde nasci e me criei, no mundo do trabalho onde passei minha vida adulta... é tudo muito difícil. Vergonha...
Mas sei que não posso desistir de viver, de seguir, até de lutar contra tudo isso, todo esse mal, da forma que ainda me for possível.
Chega. Pra ser sincero, perdi a vontade de escrever como escrevia antes. Tento de vez em quando registrar alguma coisa que sinto ou penso, mas acho que perdeu o sentido escrever como escrevia.
William
GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Os leitores de Machado de Assis: o romance machadiano e o público de literatura no século 19. São Paulo: Nankin Editorial: Edusp, 2004.
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