sábado, 2 de abril de 2022

O animal humano é o mais violento da natureza



Refeição Cultural

Ao longo de minha vida fui mudando de acordo com as experiências que a própria existência me trouxe. Até os dez anos de idade vivi na maior metrópole da América do Sul, São Paulo. Pelos olhos daquela criança a violência era algo difuso, estava em todo lugar mas a gente não percebia. Tive a cabeça furada numa guerra de pedradas entre moleques de nosso lado do bairro e os do lado de lá do córrego do Rio Pequeno, hoje canalizado como Avenida Politécnica. Uma coisa estúpida, violenta, aquelas rixas entre nós e eles do Barro Branco. Por que teria que haver alguma rixa entre os meninos de um lado e outro do córrego ali no campinho? Só por causa dos pipas cortados por linhas com cerol melhor de uns e de outros? Violência pura e estúpida de nossas naturezas humanas. Me lembro como se fosse hoje de outro dia dessas guerras de pedradas entre nós e o outro lado do córrego em que o Peninha levou uma pedrada na testa bem na hora que olhei pra ele. O corte e a sujeira da pedra se mostraram primeiro na testa dele antes de escorrer o sangue e a gente sair correndo com a mão na testa dele. Aff... que merda somos nós? Estou falando de garotos com menos de dez anos de idade. Mas no geral, minhas lembranças da infância até os dez anos são as melhores que tenho. Fui feliz.

Se avalio que era um menino que vivia num ambiente razoavelmente bom até os dez anos morando no Rio Pequeno - apesar do que descrevi acima -, ocorreu o inverso entre os dez e os dezessete anos. Fomos morar em Minas Gerais, na cidade de Uberlândia, no bairro Marta Helena. Anos oitenta. Muita miséria do povo brasileiro, a ditadura ainda estava no poder. Naquela época, o Sílvio Santos já puxava o saco dos ditadores com o programa "Semana do presidente". A Globo já chafurdava na lama putrefata dos ditadores, era parceira do regime desde a época em que essa flor malcheirosa desabrochou em 1965. E nós no Marta Helena convivíamos com os componentes de gangues violentas no bairro. Quem não fosse ao menos conhecido dos caras não andava no bairro. Estou falando de garotos de 12, 13, 14 anos de idade - os mais valentões eram talvez os de 16 e 17 anos. Nos bailes que rolavam nos finais de semana, se viessem caras de outros bairros era porrada neles: era proibido dançar e até flertar com as meninas do "nosso" bairro. Era hábito conviver com a violência pura e sem motivo, violência só por estupidez e animalismo mesmo. Cansei de ver gente agredida de graça por grupos de jovens a troco de nada. Os que brigavam eram os líderes, o restante só olhava porque não tinha o que fazer, era cada um ficar na sua. Me tornei uma pessoa muito diferente do menino que saiu de São Paulo aos dez anos.

Voltei para São Paulo e fui sobrevivendo da forma que era possível para jovens próximos aos dezoito anos que não eram filhos das classes privilegiadas pelo regime ditatorial (a casa-grande e os ditadores eram parceiros, sempre foram!), vivendo sem empregos certos e sem destino certo. Me lembro de ter sido uma pessoa rude, amarga com tudo e todos até perto dos trinta anos de idade. Após uma década de trabalhos braçais em Uberlândia e São Paulo, tive a oportunidade de me tornar bancário, primeiro no Unibanco e depois no Banco do Brasil. Aos trinta anos me tornei dirigente da classe trabalhadora no sindicato dos bancários. Essa oportunidade mudou minha vida porque mudou minha visão de mundo. A politização através do mundo do trabalho e da organização sindical me fez ser uma pessoa mais consciente num mundo injusto, desigual e violento ao extremo. Talvez eu fosse hoje um pobre de direita, um bitolado religioso manipulado por algum canalha que se diz "pastor" (de ovelhas, carneiros, cabras, quadrúpedes diversos... - nada contra a fé individual das pessoas), poderia ser um bolsonarista de merda se não tivesse tido a oportunidade de conviver com os movimentos sociais. Não é à toa que a casa-grande odeia os movimentos sociais organizados pela esquerda: educação libertadora e formação política nos tiram das diversas formas de alienação.

O animal humano é o mais violento da natureza. Não tenho dúvida sobre isso. Nós somos foda! Apesar de começar o texto relembrando alguma coisa da infância e da vida pessoal, quis registrar alguma reflexão sobre nossa natureza violenta por ter pensado muito sobre isso após uma série de produções culturais que abordam humanos e a sociedade humana. Tenho visto a série "Vikings" e a cada episódio fico mais pensativo sobre o que sempre fomos: animais violentos e bárbaros. Ao ver "O poço" (2019) dias atrás, numa madrugada na qual estava muito puto com a vida, fiquei de novo pensando na merda que nós humanos somos. Aff! Na verdade, não é preciso ver produção cultural alguma para pensar na desgraça que o ser humano foi e segue sendo ao longo de sua breve história neste planeta. Após cinco décadas de existência e busca me peguei num mundo com o bolsonarismo e o trumpismo sendo realidades porque uma parte dos animais humanos se veem representados por coisas como essas. O hitlerismo não ensinou nada ao mundo. O conceito de maldade que nós humanos criamos pode tranquilamente ser representado por figuras como essas ou como outras que já passaram por esse planeta. E também pelas multidões que apoiam essas aberrações humanas. Somos uns bárbaros!

Termino como comecei. Ao longo de minha vida fui mudando de acordo com as experiências que a própria existência me trouxe. Já cri e descri na perspectiva de um dia alcançarmos uma sociedade humana livre da violência e da maldade humana, uma sociedade justa e solidária, comunista ou socialista (tendo superado o capitalismo). Hoje, considerando minha experiência e conhecimento de mundo não acredito que seja possível isso. Nem para as pessoas de minha geração, nem para a sequência da vida humana neste planeta.

William


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