Natureza linda, mesmo no inferno. |
Refeição Cultural
Tenho textos para ler, muitos textos para ler. Pior, quer dizer, melhor: os textos são muito bons. São textos literários ou textos de crítica literária. Caramba! É tudo que eu queria fazer! Ler bons textos, sentir o prazer da leitura. E o pior é que está muito difícil ler no contexto desgraçado em que nos encontramos, já que somos brasileiros. O país virou o inferno após o golpe de Estado. Pior: nós descobrimos ao acordar que o brasileiro não é nunca foi e não poderia ser cordial. Cordial uma ova! Como um povo explorado, vindo da escravidão, do estupro, da desapropriação, da violência contra a mulher, contra o negro, contra as pessoas com deficiência, contra qualquer um diferente dos da laia dos da casa grande e dos seus agregados adestrados capitães do mato, conselheiros acácios, como poderíamos ser dóceis, gentis, tolerantes e solidários com outrem? Se tudo o que recebemos na vida secular foi coice, chicote, humilhação, fome, dor, estupro, arrogância, manipulação?
Funcionou o envenenamento inoculado e enfiado goela abaixo de cada um de nós pela Globo e demais lixos midiáticos que durante anos semeou, acordou e libertou o monstro que estava contido em cada animalzinho que somos desde que começamos a nascer nesta terra por estupro, violência, negócio, acordo, e raras vezes por amor e consideração. Agora somos todos bestas-feras. Estamos com raiva. Estamos sem tolerância. Não acreditamos em mais nada e ninguém. Se estamos assim, não podemos ser humanos; se humanos, não podemos ser assim. Que coisa! Somos coisa? Nossa natureza não é coisa, temos um telencéfalo altamente desenvolvido e mão preênsil, como diz o cineasta Jorge Furtado em seu clássico Ilha das flores de 1989. Mas então, que não sejamos coisa!
Enfim, em meio às notícias do inferno... advogada que publica em conta de Twitter um chamado para que estuprem e matem as filhas de algumas autoridades; invasão da embaixada da Venezuela no Brasil por milicianos e com apoio dos milicianos no poder institucional do país; publicação no Diário Oficial do fim da previdência pública para o povo pobre do país; o presidente que decreta o fim do seguro de acidente de trânsito no país (Dpvat) para se vingar de ex-parceiro de coisas e partido e dane-se o povo no trânsito; o filho do presidente que apaga as contas de redes sociais porque alguma coisa de errada deve ter nelas ou talvez seja porque ele cansou disso e quer levar uma vida mais introspectiva; bolsonarista que chuta cozinheira de restaurante; bolsonaristas que fazem vaquinha virtual pra contratar sniper pra matar o presidente Lula... enfim, notícias do inferno. A advogada que conclamou a estuprarem e matarem está livre; os mandantes do assassinato de Marielle Franco estão livres; o "deputado" que elogiou um torturador e a tortura numa sessão da Câmara em 2016 está livre; o sujeito que conclamou o povo do Acre a fuzilar petistas segue solto (foi conduzido ao posto de presidente)...
E eu que tenho que desenvolver dois trabalhos de conclusão de semestre em disciplinas de Literatura Hispano-Americana nos próximos dias, duas monografias ou dois textos argumentativos que avaliem algum aspecto ou temática que tenha chamado minha atenção nas obras de Margo Glantz e Roberto Bolaño. Tá difícil, juro pra vocês, tá difícil achar um recanto, uma reentrância desintoxicada do meu cérebro para feito tão belo, tão nobre, quanto esse da natureza humana das artes literárias...
William
Cidadão brasileiro intoxicado
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