quinta-feira, 16 de abril de 2020

160420 (d.C.) - Diário e reflexões



Céu de Osasco. A imagem não reproduz o que vi. Mas...

Refeição Cultural

Uma questão de consciências

Quais relações poderíamos fazer entre a história de Walter White, da série Breaking Bad (2008/2013), um discurso sobre a "consciência" nos seres vivos que li hoje de manhã no romance de Morris West, As Sandálias do pescador (1963), a existência de Bolsonaro e Trump e seus seguidores que custamos acreditar que existam, a atual fase do neoliberalismo e o necrocapitalismo, e a pandemia do novo coronavírus (Covid-19)?

Na minha opinião, poderíamos fazer muitas relações entre essas coisas aparentemente desconexas. Muitas. Na minha leitura matinal de hoje, uma coisa me chamou a atenção ao ler o discurso do personagem Jean Télémond, de Morris West: a existência da consciência nos seres humanos. A partir dessa cutucada do personagem, nos lembrando que temos consciência como animais humanos, comecei a fazer várias associações de causas e consequências de diversas coisas como as que enumerei acima.

Consciência biológica é diferente de consciência política

"Toda a evidência aponta para uma lenta emersão das espécies, mas, a certa altura da história, o homem está presente e com ele aparece algo de novo, também... A consciência. O homem é um fenômeno especial: é um ser que sabe, e, o que é mais, um ser que sabe que sabe. Atingimos, como vedes, um ponto crucial da história. Existe uma criatura cônscia de que sabe..." (As sandálias do pescador, Morris West)


O personagem de Morris West nos traz à lembrança um tipo de consciência que sequer percebemos que ela exista, a consciência biológica, animal, instintiva, de sobrevivência. Queiramos ou não, nosso ser animal tem fome, tem sede, respira, busca a reprodução, busca abrigo, calor, prazer, se esforça por existir. Aliás, tem medo, tem raiva, até amor.

Essa consciência é diferente de outras formas ideológicas de consciência. De forma biológica e natural, podemos dizer que todo ser é consciente, com exceção é claro de casos patológicos. Isso não quer dizer que todo animal humano, consciente enquanto tal, tenha consciência política, por exemplo.

Por influência de meu filho, acabei assistindo a série inteira Breaking Bad, exibida entre os anos de 2008 e 2013 e disponível na plataforma de streaming Netflix. Foram 62 episódios e cerca de 50 horas de estória. Ufa! Nem acredito que vi até o fim. Vi o episódio final nesta semana. 

É impossível não ficar pensando na sociedade humana da atualidade ao ver todas as merdas que acontecem na série ao longo das 5 temporadas. Ali está a sociedade norte-americana; ali está a hipocrisia e a essência do necrocapitalismo. Os filmes Beleza americana (1999) e Crash - no limite (2004) já anunciavam a sociedade doentia que o mundo estava seguindo como fonte de inspiração.

Chutando o balde

Breaking Baddirigida por Vince Gilligan. 

Por que o pacato professor de química do ensino médio Walter White se transformaria em Heisenberg? Várias podem ser as motivações levantadas e debatidas. Mas para mim, ao refletir, somar, dividir, multiplicar, ficou evidente o que o personagem de Morris West apontou sobre a consciência do homem, que sabe que sabe: em White vemos uma consciência em atuação.

Ontem, sentei e vi novamente o primeiro episódio da série, e com poucos minutos ficou claro para mim o efeito da consciência biológica daquele ser falando mais alto. 

Walter White é um pacato cidadão americano, muito inteligente, humilhado em sala de aula, ganhando uma miséria e endividado, humilhado pelo patrão no segundo emprego, descobre que está com câncer terminal e o seu seguro saúde sequer cobre alguns exames básicos; o professor fodido e morrendo terá pela frente decisões a tomar: o que ele poderia fazer para deixar algum conforto ou providência para sua família querida: um amoroso filho adolescente com paralisia cerebral e a esposa esperando outra criança?

A essência do necrocapitalismo está no cotidiano que vimos nos 62 episódios de Breaking Bad. Tem muita violência, muita hipocrisia, muita mentira e manipulação, muita dor e sofrimento, muitas drogas, muito dinheiro sujo, muita nudez do sistema; e ao mesmo tempo, até de forma contraditória, temos ali uma solidariedade entre iguais, e muito instinto. Consciência biológica animal na veia. E de tudo isso, pode até surgir consciência política.

Chutando o balde (no Brasil)

O animal que ocupa a cadeira política mais importante do Brasil tem plena consciência biológica e ideológica. Os financiadores e apoiadores do poder instituído no país após mais um golpe de Estado têm plena consciência de tudo também. É um tremendo autoengano, uma ação de conforto psicológico, dizermos que essa parte da sociedade humana onde vivemos, o bolsonarismo, não tem consciência do que faz. Cada ser que apoia tudo o que estamos presenciando é um animal com consciência: "um ser que sabe que sabe". A pessoa LGBT, a suposta "cristã", o povo preto, a mulher, o funcionário público, enfim, a pessoa que defende o "mito" racista, machista, sexista e que odeia o próximo, tem consciência do que faz. 

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Biologicamente, gado de verdade não tem consciência. O bolsonarista pode ser gado metafórico, mas tem consciência e deve ser cobrado pela sociedade por isso.
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Os necrocapitalistas neoliberais donos do mundo, aqueles poucos humanos que detêm todos os meios de produção, todas as propriedades, todos os recursos financeiros e econômicos, todas as formas de manipulação ideológica, têm plena noção que a consciência biológica de sobrevivência dos pobres fala muito antes de qualquer consciência ideológica. Por isso o sistema de exploração capitalista persiste há mais de dois séculos. Eles pagam os ideólogos para manipularem as "classes médias" e os pobres. 

Os milhões de miseráveis agirão pela consciência biológica de subsistência e seus adversários imediatos pela continuidade existencial estão ao seu lado, na horizontal, e não na pirâmide e no andar de cima, distante de suas realidades.

Pandemia do novo coronavírus (COVID-19)

"(...) desde o microorganismo ao macaco hominídeo. Todos eles têm algo de comum: o impulso, a busca, o instinto de preparação para a sobrevivência da espécie. Para usar um termo bastante usado, embora impreciso, é ao instinto de agir, de participar das combinações e associações que lhes permitirão prosseguir ao longo da sua própria linha de continuidade. Eu prefiro usar outra palavra, em vez de 'instinto'. Prefiro dizer que tal impulso, tal capacidade, é uma forma primitiva, mas em evolução, daquilo que no homem culmina... a consciência." (As sandálias do pescador, Morris West)


Podemos pegar como exemplo a atual pandemia de vírus que parou o mundo desde o início do ano. A quarentena para os do andar de cima, bem de cima (o 1% e os outros 5%), é um tormento psicológico com menos viagens e prazeres, presos em suas confortáveis casas e com rendas certas nas contas correntes. Para a imensa maioria, os 94% de vulneráveis restantes, a pandemia e a quebra da "normalidade" de se vender de dia pra comer de noite, é a consciência biológica de continuar a viver ou morrer de qualquer forma que se morre diariamente na periferia, seja com vírus, seja com fome, seja com violência, morte morrida ou matada.

Para os 6% (o 1% + os 5%) do topo da pirâmide da má distribuição de renda no Brasil, a pandemia de Covid-19 e a estratégia de quarentena e isolamento social para reduzir a velocidade de contágio do vírus e evitar o colapso dos sistemas de saúde existentes equivale a gente que nunca pôs a mão numa vassoura e numa água sanitária ter que lavar banheiro e vaso sanitário, fazer comida, lavar louça... Já para os 94% do povo, o isolamento e a hipotética quarentena (de 8 ou 10 pessoas em dois cômodos?) equivaleu até agora ao fim dos bicos, demissão, redução de salários e direitos, fome, fome, carência de mais coisas básicas.

O pior de tudo isso é saber que a riqueza material e imaterial produzida e gerada pela classe trabalhadora, pela mais-valia, está toda aí. Amig@s leitores, entendo que é necessário desapropriar os bens dessa gente que vive da exploração humilhante dos outros (basta desapropriar o 1%). Mas não acho que isso vá acontecer. Estou pessimista com o animal ser humano que temos para o momento. A tendência histórica é que os 94% se ataquem e se matem reciprocamente, horizontalmente, pois os seus semelhantes na pirâmide social são aqueles que estão acessíveis para se canalizar toda a ira e medo gerados pela fome e misérias humanas diversas.

Há outras formas de produção e distribuição das necessidades humanas. Associativismo e cooperativismo são alternativas experimentadas ao longo de milênios e dão certo. Já o modelo capitalista existente há dois séculos e pouco vai nos tirar até o planeta que habitamos e a humanidade que em tese nos definiria: aquela com dimensões diversas como amor, solidariedade, justiça, igualdade, liberdade etc, dimensões humanas para além da consciência de instinto de sobrevivência biológica, na qual vale tudo para se perpetuar vivo, até se alimentar de seu semelhante da espécie.

Pensem nisso!

William


Post Scriptum: ao final da confecção desta reflexão, soube que o Ministro da Saúde do Bolsonaro, o tal Mandetta, havia sido demitido. O tema da demissão do pseudo-herói de nossa gente, o "combativo" ministro que falava "nosso SUS" tomou conta nos últimos dias da pauta da imprensa golpista, parte dela agora também pseudo-heroína de nossa gente. É como se o sujeito não fosse um ferrenho defensor do fim do SUS, da PEC da morte, e a favor da banca privada da saúde; como se ele não tivesse participado de todas as merdas que os golpistas fizeram contra o país e o povo miserável brasileiro... exemplo: a plaquinha do "Tchau, querida" no impeachment sem crime da presidenta Dilma.

- Vai com os deuses, ministro! (O Brasil é mesmo uma jabuticaba!)


Bibliografia:

WEST, Morris. As sandálias do pescador. Círculo do Livro S.A., São Paulo.

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