sexta-feira, 3 de abril de 2020

030420 (d.C.) - Diário e reflexões



Os ombros suportam o mundo

Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.

(Carlos Drummond de Andrade, em Sentimento do Mundo, 1940)


Acordei cedo nesta sexta-feira 3 para ir buscar os pães que encomendamos ontem; eles foram entregues na portaria do prédio. Estamos em quarentena em tempos de pandemia do Covid-19. Moro na região mais afetada pelo vírus no Estado de São Paulo, a região Oeste que inclui a cidade de Osasco. Já soubemos de dois casos confirmados no condomínio onde moramos. Essa pandemia faz parecer que vivemos um jogo fatal de roleta russa: terei sorte ou azar?

Hoje faz cinquenta e um anos que nasci. Não estou nem feliz nem triste. Só estou aqui, estou vivo. Nunca sabemos o dia de amanhã. Antes da pandemia do novo coronavírus a gente podia morrer de infarto, câncer, AVC, por violência ou por acidente. Essas mortes são muito comuns na nossa sociedade e nas estatísticas da comunidade a qual pertenço, a dos bancários do banco público BB. Também poderia morrer de qualquer outra coisa, é lógico! Até por engasgo ou por uma "gripezinha" com agravamentos.

Ao olhar para trás, ao olhar ao redor, ao olhar para o amanhã, a gente sente tanta coisa esquisita, sentimentos difusos, tristezas, algumas sensações de alívio por ter feito a coisa certa, desilusões, gratidões diversas. O momento não nos ajuda a sentir felicidade alguma, sequer esperanças a gente consegue vislumbrar quando olha o que viraram as pessoas do nosso mundo, do nosso cotidiano; o tiozinho da padaria ou da portaria do condomínio; sua tia ou seu colega de infância.

Ao olhar ao redor, sinto que a vida me deu mais do que eu esperava, tendo ou não merecido. Estou melhor que meus pares da classe trabalhadora. Estar bem é bom porque não fiz nada errado e posso ajudar de alguma maneira pelo menos as pessoas de minha relação pessoal que precisem de apoio, e também posso ajudar os outros; mas isso me dá um aperto estranho no peito, uma vontade de chorar, algo difícil de explicar. Me sinto mal por ver meus pares sofrendo tanto nos locais de trabalho, ou desempregados, ou contaminados pela ignorância doentia do bolsonarismo. Eu fui dirigente sindical e tentei fazer formação política a vida toda. Onde erramos?

Ao olhar para trás, nem posso me demorar, porque senão corro o risco de voltar a sentir coisas ruins que senti por muito tempo na vida. Vivi o ódio intensamente, vivi o sentimento de morte também. Desde a adolescência, eu sentia um ódio mortal pelos ricos, pela burguesia, pelos lacaios puxa-sacos dos patrões, pelos exploradores das pessoas como eu e meus pares, os pobres, os que não nasceram em berço de ouro, os que não tinham ou viviam de heranças. Se eu não tivesse tido a oportunidade na vida de ter conhecido o movimento social, o estudantil primeiro e principalmente o sindical, eu poderia ser um boçal bolsonarista, violento, preconceituoso, uma pessoa má. Poderia achar que o que consegui na vida foi por "meritocracia", só porque estudei pra cacete e passei num concurso público. Sou grato à vida por ter me tornado uma pessoa melhor após o movimento sindical.

O que comemorar ao viver num mundo onde a ética, o humanismo, o amor, a solidariedade e empatia com o próximo não são valorizados, pelo contrário, tudo o que defendemos de nobre virou quase sentença de morte? Somos desprezados por sermos de esquerda, por defendermos direitos trabalhistas, sociais, direitos humanos! O ser abjeto na cadeira da presidência do Brasil não é somente aquele ser em si mesmo, ele representa um movimento, representa parte expressiva das pessoas que estavam entre nós. O bolsonarismo é um movimento anterior ao Bolsonaro. Alguns familiares, vizinhos de anos de convivência, os colegas do banco, essas pessoas estavam oprimidas pelo "politicamente correto" e não podiam expressar seus ódios aos pretos, aos pobres (mesmo sendo pobres), aos gays, a tudo e todos. A nós!

Pensando bem, não é verdade o que disse acima, que não estou nem triste nem feliz. No fundo no fundo, estou triste. Estamos tristes. Mas como diz o poeta Drummond, chegou um tempo em que não adianta morrer e a vida é uma ordem, a vida sem mistificação.

Está sofrendo quem não se contaminou ainda com essa pandemia bolsonarista (pandemia do mal); está sofrendo quem tem em si amor pelo próximo, sofremos ao ver o que está ocorrendo com os outros (o sofrimento coletivo é devido às decisões políticas das pessoas); está sofrendo quem é humanista, quem tem alguma religião (fé) e não é hipócrita (Deus, Cristo, não tem nada a ver com ódio, armas, matar, cada um por si, que se f... o outro etc); sofre quem se importa com os seres vivos, além de si mesmo.

Enfim, estão tristes pessoas como nós, eu e você que às vezes lê o que escrevo (não acredito que alguém do tipo bolsonarista perca seu tempo lendo minhas reflexões e lamentos sabendo quem sou).

Em relação ao sentimento de gratidão, seria difícil enumerar a gratidão que tenho pelas pessoas que de alguma forma consideram a gente, que se lembram de forma carinhosa ou respeitosa da pessoa que somos, que fomos, e que queremos ser, defendendo um outro tipo de mundo, uma sociedade justa, igualitária, tolerante, com liberdade e distribuição das riquezas humanas para todos. Isso não é utopia, isso é possível, basta educar as pessoas para isso, basta colocar o Estado para atingir esse fim. Nada é impossível para os seres humanos.

Se aquelas causas mais frequentes de mortes não me acharem, e nem essa merda de coronavírus, estarei vivo tentando ser uma pessoa boa, útil para a sociedade humana e para as pessoas próximas também.

Boa sexta-feira a tod@s e fiquem em casa aqueles que puderem. E se cuidem aqueles que por diversos motivos são obrigados a estarem se expondo aos riscos tanto do Covid-19 quanto aos demais riscos do viver numa sociedade hoje contaminada pelo bolsonarismo.

William

2 comentários:

mefhystho disse...

Parabéns grande primo! Um abração nessa passagem do calendário e regue o organismo com cerveja ou pinga porque o covid-19 não gosta de álcool. Gostei muito do texto mas acho que passei a fase do sofrimento. Talvez agora,apatia...(+/- quando desistimos de entender o sentido da vida)

William Mendes disse...

Olá, querido primo! Espero que esteja bem e se cuidando como puder. Acho que você me deu uma boa ideia, vou tomar uma cachaça, não 51 que acho ruim, mas uma cachaça pernambucana que tenho aqui rsrs.

Eu não tenho jeito, não! Não consigo abstrair do sofrer ao ver tanta miséria desnecessária para as pessoas desse mundo nosso.

Abração! Pro'cê, pra Geiza e pro pessoal aí.

William