Pandemia: frutas lavadas. Que trabalhão dá fazer isso! |
Cenas cotidianas (d.C.)*
"Tive uma noite de insônia.
Entre o viver e sonhar,
uma estranha roeção no abdômen.
Entre o viver e sonhar,
senti perto a morte do homem." (William Mendes)
O Brasil registrou ontem, quinta-feira 23 de abril, 407 mortes oficiais por Covid-19. A palavra "oficiais" não é à toa. O país é um dos que menos testam as pessoas no mundo em relação a mapear quem está e quem não está com o novo coronavírus, uma doença que se transmite com uma velocidade impressionante por não apresentar sintomas por vários dias.
Sendo assim, oficialmente, o Brasil registrou até ontem à tarde, 3.303 mortes e 49.492 casos confirmados de Covid-19. Vários especialistas, inclusive autoridades de instituições públicas, dizem que o número pode ser várias vezes maior, alguns dizem ser até 10 vezes mais o número de pessoas infectadas e não testadas.
No mundo, chegamos a 2,7 milhões de infectados e 192 mil mortos, sendo os Estados Unidos o país mais vitimado, são 50 mil vítimas fatais em poucas semanas. Os governos de lá e de cá foram contrários às recomendações da OMS e de vários especialistas em saúde e pandemias de que a melhor forma de frear a rapidez de transmissão da doença seria o isolamento social e a quarentena, para evitar o colapso dos sistemas de saúde. Efetivamente, não é uma "gripezinha".
CENAS DE HIGIENE DAQUELA CLASSE MÉDIA PRIVILEGIADA QUE ESTÁ EM QUARENTENA (NÃO DEVERIA SER, MAS É PRIVILÉGIO NO BRASIL TER UMA RENDA CERTA)
O que quero registrar neste diário virtual nesta sexta-feira ensolarada em Osasco, Brasil?
A foto que ilustra esta postagem são frutas lavadas para cumprir a rotina sugerida de higienização para se evitar contrair o vírus maligno e letal desta nova peste pandêmica. Que trabalho da peste! Há que se registrar que eu sou um privilegiado! Vivo num país miserável, que tem um governo miserável contra os pobres, e ter casa, renda mensal e alimento na mesa é um privilégio de menos da metade da população brasileira.
As medidas de precaução em relação ao Covid-19 transformaram o cotidiano num inferno. Pra todo mundo, pra quem tem recursos, pra quem não tem, ricos, pobres, remediados, pra todos a vida ficou bem difícil. Óbvio que nada se compara à situação trágica da imensa maioria do povo brasileiro sem uma renda básica da cidadania, sem ter como sobreviver dignamente diariamente. E essa miséria de mais de 100 milhões de pessoas é uma escolha proposital, política, consciente, por parte dos caras da casa grande.
Antes da pandemia já vivíamos em diversos mundos e realidades paralelas no Brasil e no mundo. Agora isso se exponenciou. Eu realmente fico em dúvida sobre a continuação da civilização humana nas próximas décadas. As cenas cotidianas demonstram que o gênero homo sapiens, da espécie humana, pode estar com os dias contados. E olha que nosso gênero existe há pouquíssimo tempo no planeta Terra. E talvez já vá tarde... já que o estrago e a incivilidade fazem com que o homo sapiens pareça um vírus.
Isolamento e higienização: várias realidades. Na "classe média" - sempre detestei essas classificações que disfarçam que há duas classes, a dos proprietários do capital e dos meios de produção e a dos que vendem sua força de trabalho para sobreviver, os proletários - temos dois grupos na classe média, aquele que respeita a quarentena e segue as sugestões de higienização e aquele que é bolsonarista, bárbaro e incivilizado. Na classe "povão", que inclui os 38 milhões de trabalhadores informais ou desempregados e as comunidades onde eles vivem, não tem água, não tem comida, não tem nada. Higienização? Isolamento social nos cômodos que moram? Fala sério!
COTIDIANO BÁRBARO E NAZISTA: PESSOAS PROPÕEM CRIAÇÃO DE CAMPOS DE CONCENTRAÇÃO E MARCAÇÃO DE PESSOAS
Voltando às cenas que gostaria de registrar sobre esses dias.
Uma mulher registrou um vídeo nesta semana defendendo que se marque com um laço vermelho as pessoas que estão respeitando o isolamento social e a quarentena sugeridos pelas autoridades de saúde para se evitar a mortandade da pandemia do Covid-19. A sujeita se diz empresária e quer que a economia volte ao "normal" (aquela desgraça após Lava Jato, Temer e Bolsonaro) e os empregados voltem a trabalhar. Sugeriu que quem não trabalha e fica em casa, que seja impedido de acessar os frutos do trabalho dos outros.
Essa pessoa praticou um ato nazista. O filólogo Victor Klemperer, no livro LTI A Linguagem do Terceiro Reich, em um capítulo chamado "A estrela", afirma que um dos dias mais marcantes para os judeus nos doze anos de Hitler e do nazismo foi o dia 19 de setembro de 1941: "Nesse dia tornou-se obrigatório o uso da estrela de Davi, de seis pontas, aquele trapo amarelo que até hoje simboliza peste e quarentena...". Hitler marcou os judeus para eliminá-los em campos de concentração.
Aliás, por falar em nazismo e campos de concentração, dias atrás um apresentador de TV propôs ao vivo que se instituísse campos de concentração no Brasil para jogar os doentes de Covid-19 lá... Esse meu relato não é ficção! São as ideias e ideais bolsonaristas e de extrema direita em ação no Brasil pós golpe de Estado em 2016. Esse é nosso cotidiano bárbaro com a ascensão do mal e com o fim dos limites sociais que estabeleciam certos padrões de comportamento que eram chamados de "politicamente correto". Os bárbaros não se manifestavam como agora que o presidente os estimula a pôr pra fora todo o mal que representam.
Enfim, são cenas que ficam martelando em nossas cabeças, em nossas vidas. Banditismo no poder estatal, quase um terço do solo brasileiro habitado por bárbaros bolsonaristas e uma parte da sociedade tentando seguir as recomendações sanitárias em defesa da vida humana, tendo um segmento que gostaria de estar se protegendo mas não pode, porque a escolha é morrer de Covid-19, de fome, ou de outras mortes severinas antes dos trinta, dos quarenta, dos cinquenta, um pouco todo dia.
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"Calo-me, espero, decifro.
As coisas talvez melhorem.
São Tão fortes as coisas!
Mas eu não sou as coisas e me revolto.
Tenho palavras em mim buscando canal,
são roucas e duras,
irritadas, enérgicas,
comprimidas há tanto tempo,
perderam o sentido, apenas querem explodir."
(Nosso Tempo, Carlos Drummond de Andrade)
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Dentro das paredes da quarentena, as pessoas buscam sentidos nas coisas, na vida. E a vida simplesmente é, até o momento em que não é mais. Queria escrever sobre o movimento sindical, as negociações dos bancários e a experiência no mandato na Cassi, mas não vem a energia pra isso. Queria ler literatura, história e filosofia, mas começo tudo e não termino quase nada. Queria estudar línguas, mas até o Japonês, que fui tão bem por três meses, perdeu o sentido.
A gente faz toda essa higienização que sugerem... a vida ficou um saco por causa disso! E tudo é tão relativo que pode ser que dentro de ti esteja te roendo as tripas alguma doença silenciosa, que tuas veias explodam ou entupam, que o coração pare. Pode ser que o vírus te encontre num vacilo e bau-bau. A tal da máscara eu já tentei mais de um modelo e a merda não para no meu rosto, além de embaçar os óculos. Que saco!
O mundo tá bem ruim com gente nazista e bolsonarista pregando e praticando o mal pra lá e pra cá, cuspindo ódio, salivando veneno e vociferando golpes e morte ao diferente, enchendo todas as fissuras por aí como água de enchente invadindo tudo com doença de ratos, barro e dejetos e cheiro de morte em nossa vida.
Enquanto isso, pelo menos, o dia está lindo lá fora, sol e calor com céu azul, sextou! Como o diabo gosta! E a gente também!
William
*(d.C.): depois do Covid-19
Bibliografia:
ANDRADE. Carlos Drummond. A rosa do povo. 19ª ed. - Rio de Janeiro: Record, 1998.
KLEMPERER. Victor. LTI A Linguagem do Terceiro Reich. 1ª ed. - Rio de Janeiro: Contraponto Editora, 2009.
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