quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

Diários com Machado de Assis (XII)



Refeição Cultural

Osasco, 24 de fevereiro de 2022. Tarde de quinta-feira (enquanto lia a respeito de Machado de Assis e os leitores de sua época, a Rússia bombardeava a Ucrânia pela manhã. O presidente russo se encheu das palhaçadas da Otan e dos Estados Unidos. Desde o fim da União Soviética, a Otan já descumpriu quase 20 vezes o acordo de não se expandir e espremer a Rússia)


Terminei a leitura do capítulo 1 do livro de Hélio de Seixas Guimarães - Os leitores de Machado de Assis - o romance machadiano e o público de literatura no século 19. O capítulo tem duas partes: "Um preto de balaio no braço a vender romances" (ver um comentário que fiz aqui) e "O isolamento do escritor".

O fim do capítulo tem um trecho que resume o conteúdo analisado por Guimarães. 

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"Recapitulando: a percepção do público leitor como questão problemática atravessa o século 19 brasileiro, embora as explicações para a pequena circulação e repercussão da literatura nacional se transformem muito nesse período. Embora os problemas diagnosticados por Alencar, na década de 1860, e por Azevedo, na década de 1880, fossem muito semelhantes, há diferença no modo como esses escritores, emblemáticos de suas gerações, explicavam as dificuldades e se referiram ao público leitor. Num primeiro momento, supõe-se a existência de um público numeroso, mas caprichoso e indolente, como acreditavam Alencar e os primeiros românticos; num segundo momento, a pouca repercussão da literatura é associada à exiguidade do público leitor; num terceiro momento, esse público leitor passa a ser encarado como potencial consumidor de literatura, uma mudança de percepção que tem a ver com a organização da produção e comercialização dos livros." (p. 82)

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Os estudos de Hélio de Seixas são fantásticos! As informações trazidas por ele aos seus leitores são curiosas e apontam para reflexões que podemos fazer sobre o Brasil e os brasileiros ainda hoje, esse Brasil bolsonarista, aglomerado humano que nunca saiu da condição e relação de casa-grande e senzala entre o 1% e os 99%.

Um país de analfabetos no século 19 quando na Europa e nos Estados Unidos mais de 80% do povo sabia ler e escrever. Um país no qual a pequena parte alfabetizada não lia nada e não tinha um livro em casa, gente da casa-grande ou ao redor dela. Um país onde a produção de um livro custava infinitamente mais que a edição feita no exterior. E tem gente que não entende os porquês do nosso dia a dia sob o regime miliciano e do crime organizado na atualidade.

Evidente que na leitura do capítulo aumentei minhas lacunas culturais. Eu não li ainda A moreninha (1844), de Joaquim Manuel de Macedo, e nem O mulato (1881), de Aluísio de Azevedo, dois romances considerados exceções de vendas no século 19 e best sellers da época. Mas pelo menos li um dos campeões de vendas do período: Memórias de um sargento de milícias (1854), de Manuel Antônio de Almeida, romance lançado primeiro em folhetins sob o pseudônimo de "um brasileiro" e depois em livro. Ao me lembrar da estória é inevitável associar o enredo e aquelas figuras com o Brasil bolsonarista de hoje.

Imaginem os dilemas dos escritores brasileiros da época: por um lado, a "burguesia" daqui não lia romances ("burguesia" em termos... aquela coisa brasileira que queria se comparar à burguesia europeia, que pelo menos lia alguma coisa). Por outro, era essa gente inculta e ignorante que financiava alguma coisa da produção e distribuição de livros nesta terra. Os escritores sabiam que tinham que escrever de forma que alguém consumisse seus textos.

Não à toa, Machado de Assis vai desenvolver ao longo de sua trajetória uma linguagem com uma ironia refinadíssima que será pouco percebida em sua época. Algo como os brasileiros produtores de cultura fizeram durante o regime civil-militar entre 1964-85 por causa da censura. Muitos estudiosos e especialistas avaliam até hoje que parte dos milicos é formada por gente muito ignorante (vejam os nossos) e na ditadura as músicas e livros e peças teatrais usavam linguagem cifrada para enganar os desgraçados que se meteram na política dando golpes na democracia brasileira.

Enfim, esse é o nosso país (até hoje). Olhem ao redor... 

William



GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Os leitores de Machado de Assis: o romance machadiano e o público de literatura no século 19. São Paulo: Nankin Editorial: Edusp, 2004.

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