sexta-feira, 29 de julho de 2022

O bolsonarismo que existe em nós


Refeição Cultural (indigesta)

Outro dia, a jornalista Dhayane Santos (TV 247) perguntava ao professor Pedro Serrano qual a explicação que ele teria para ainda hoje um terço do povo brasileiro ser apoiador e se ver representado pelo ser mais repugnante que já chegou a um cargo eletivo no Brasil. Dhayane fez referência a um artigo recente de Serrano na revista CartaCapital sobre o circuito afetivo no autoritarismo...

Serrano começa a responder assim: "Política é afeto, afeto não é emoção..." e depois diz que "afeto não é divorciado da razão, razão e afetividade atuam juntas, uma interfere na outra..." 

Na sequência da explicação, Serrano vai abordar a questão da tirania sob a ótica de Étienne de la Boétie, um filósofo do iluminismo que fez uma obra clássica abordando os motivos pelos quais as pessoas se submetiam à tirania. 

Uma das respostas de Boétie e que Serrano faz uma analogia com o Brasil e os apoiadores do tirano daqui é que as pessoas o apoiam para poderem exercer suas pequenas tiranias.

"As pessoas apoiam os tiranos para poderem ser pequenos tiranos em seu cotidiano", diz Pedro Serrano pensando sobre os bolsonaristas. Então, os homens brancos da elite, por exemplo, se sentiriam ressentidos de não poderem mais bater nas mulheres, estuprarem as mulheres, privilégios dos homens que constavam no código de direito civil de 1916...

É uma verdadeira aula que o ouvinte teve com o professor Serrano.

Ou seja, aquele sujeito representa os valores dos homens brancos das casas-grandes e dos colonizadores, essa gente que barbarizou por aqui nos últimos séculos. Os valores dessa gente que via mulheres e filhos como propriedade, escravos como animais de carga e objetos de prazer e sarro, a coisa pública como extensão de suas propriedades privadas, a igreja como sua subalterna no domínio local etc.

Isso tem muito sentido. Esse homem que representa o mal em sua forma mais básica representa também toda essa gente que não gostou de se ver contestada, freada em seus impulsos mais primitivos e repulsivos como o estupro, o assassinato, a violência, a opressão por poder oprimir. 

Talvez esse sujeito na presidência dessa terra opressora chamada Brasil, sujeito que virou uma palavra da língua portuguesa, um qualitativo pejorativo de pessoas e comportamentos, talvez ele represente um pouco do que existe dentro de cada um de nós.

José Saramago, no Ensaio sobre a cegueira, disse num momento duríssimo do romance que "Dentro de nós há uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que somos". Não paro de pensar nisso quando olho e vejo o que somos algumas vezes...

Mas por que então parcelas de mulheres, pretos e pobres, gays e oprimidos em geral também apoiam esse ser opressor e demoníaco? Porque todo oprimido também tem o seu espaço de opressor dentro da família, do trabalho etc. Deter a opressão significa também coibir os pequenos opressores nos cotidianos de nossa vida em sociedade.

Eu achei a explicação de uma coerência nunca imaginada por mim. Essa gente que se identifica com o criminoso no poder tem um sentimento afetivo com ele. De certa forma, elas sabem que com ele no poder e dando a linha das normas na sociedade na qual vivemos, elas têm a liberdade de seguirem fazendo as suas pequenas barbaridades diárias, nos seus espaços de opressão.

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E o bolsonarismo que existe em nós?

Após essa aula de Serrano ressoando sem parar em meu cérebro como as badaladas de um sino gigante me peguei nervoso e falando alto em casa... após um momento de decepção e de intolerância com um evento cotidiano, lá estava eu gritando em casa... Que merda! Fiquei tão arrasado, tão decepcionado comigo mesmo que não sabia onde enfiar a cabeça... 

Dessa decepção comigo mesmo, fiquei um tempão relembrando meu passado e minha vida ao longo de décadas. Aquelas palavras de Serrano ressoando na cabeça... os pequenos tiranos...

Fiquei pensando em mim e nos homens de minha família, nos homens intolerantes das gerações de meu pequeno mundo miserável em todos os sentidos, no início miserável por falta de quase tudo, depois miserável pelo que fomos ou somos nos momentos das pequenas tiranias cotidianas...

Qual diferença haveria entre mim e entre nós que nos apresentamos como pessoas contrárias ao que representa o bolsonarismo e os chamados bolsonaristas raízes, que nada mais seriam que pessoas que pertencem a esse circuito de afetos que une o que eles são e o que o sujeito no poder representa?

Como extirpar esse bolsonarismo que talvez exista dentro de cada um de nós, de alguns de nós, nascidos, criados e aculturados nessa terra com o passado bárbaro que tem?

Percebi que não tenho a resposta...

William


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