Refeição Cultural
Osasco, 15 de dezembro de 2022. Quinta-feira.
A leitura dos textos produzidos por Luiz Gama, grande intelectual negro do século 19, só é possível a mim - um homem do século 21 - porque sua produção foi feita em veículos de comunicação impressos, graças ao fato de haver desde a vinda da Corte para o Brasil jornais e revistas circulando entre os poucos letrados desta terra.
Se posso ler confortavelmente através de um livro a reunião de textos de Luiz Gama é porque o jovem Bruno Rodrigues de Lima, advogado e pesquisador da vida e obra de Luiz Gama, passou a última década dedicando seu tempo e suas energias para que pudéssemos ler e conhecer a produção intelectual de um dos homens mais impressionantes que tivemos no Brasil do período colonial e imperial.
NOVOS CONHECIMENTOS
Estou buscando sentidos para o viver (como sempre). Uma das formas de dar sentido ao viver é estudar e aprender coisas novas diariamente. Cada informação nova que adquirimos se soma às experiências que já temos registradas em nosso ser e com mais conhecimento melhor a chance de tentarmos compreender o mundo e a vida.
Na adolescência eu já tinha uma curiosidade interessante pelo conhecimento. Do passado só guardamos fragmentos, instantes marcantes por algum motivo. Me lembro de terminar livros de matemática sozinho porque na escola pública sempre íamos até a metade ou menos do livro. Me lembro que às vezes estudava matemática ouvindo rock - AC/DC e Iron Maiden -, por exemplo. Fragmentos de instantes... é o que vemos ao olhar para trás.
Ao trabalhar de entregador numa drogaria aos 14 anos, subindo e descendo de bicicleta pelos bairros da cidade de Uberlândia, também estava aprendendo coisas novas, mesmo no sofrimento da labuta pesada (eu sei o que sofrem esses entregadores de aplicativo sem direito a nada).
Me fizeram aprender a aplicar injeções, no músculo e na veia... uma loucura se pensarmos o mundo de 2022, mas era o ano de 1984. "Quadrante superior externo" para definir onde aplicar quando era na bunda.
Aprendi coisas novas mesmo quebrando concreto e mexendo em esgoto de residências velhas trabalhando com o seu Joaquim. É impossível hoje imaginar minhas mãozinhas finas tendo sido calejadas e grossas ao trabalhar de ajudante de encanador na adolescência. Eu esquentava marmita com um pouco de álcool numa latinha sobre uma madeira com 4 pregos. Ao apagar o álcool, a comida estava quente.
A vida seguiu. Quando trabalhei em lanchonetes, aprendi a fazer pão de queijo e outras coisas que já me esqueci porque nosso cérebro é plástico e se adapta às necessidades e estímulos do momento do viver. O corpo inteiro se adapta ao viver, o que não quer dizer que não nos matamos um pouquinho todo dia por causa do tipo de exploração ao qual somos obrigados a nos submeter. Ou às loucuras de moda que matam pessoas tanto quanto necessidades do viver em sociedade.
Quando trabalhei em escola de idiomas sabia inglês. Quando fui bancário sabia bastante sobre o cotidiano do sistema financeiro. De bancário nos locais de trabalho virei dirigente sindical a convite de lideranças do movimento e passei a organizar uma categoria de um milhão de pessoas, metade formalizada com direitos profissionais. Estudei e conheci muito sobre nossas lutas e nossa história. Cheguei a negociador nacional. Era responsável por desenvolver estratégias, teses, documentos e contratos que resultaram em milhões de reais para a nossa categoria.
A vida seguiu e me vi ainda dirigente de uma autogestão em saúde. Nunca me imaginaria estudando e aprendendo tanta coisa sobre sistemas de saúde públicos e privados, modelos de organização de cuidados e atendimento em saúde de grandes grupos sociais. Os funcionários da associação que geri, que os liberais chamam de "empresa", me relatavam impressionados ("feedback") a respeito do quanto aprendi rápido sobre aquela função que desempenhei em nome de centenas de milhares de associados.
Essas memórias acima, sobre novos conhecimentos, me fazem pensar muitas coisas a respeito da vida humana. Uma delas é sobre a plasticidade de nosso cérebro como nos ensina o neurocientista Miguel Nicolelis. Outra é sobre a capacidade ilimitada de aprendizagem que qualquer ser humano traz consigo, podemos aprender qualquer coisa que quisermos. A educação e a formação podem mudar as pessoas, e as pessoas podem mudar o mundo. Juro pra vocês que isso é verdade. Mudei várias vezes em uma vida tão curta como essa minha.
Por fim, uma outra coisa que tenho pensado é sobre as relações utilitaristas que prevalecem na sociedade humana contemporânea, por mais conhecimento que tenhamos só seremos chamados a contribuir se houver algum tipo de relação de interesses nos grupos sociais nos quais vivemos. Se você não estiver mais nas graças das pessoas nas posições de poder, seu conhecimento não será utilizado nos espaços de poder. Mas fique tranquilo! Você segue com todo o potencial humano que traz consigo, não se preocupe com isso. Viver é uma oportunidade, sempre!
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AINDA A QUESTÃO DOS NOVOS CONHECIMENTOS
Os fragmentos de memória acima mostrando quarenta anos de novas aquisições de conhecimento em relação ao mundo do trabalho, pois não falei de conhecimentos em outras dimensões sociais, me trazem à lembrança uma preocupação que tem pautado meu viver nos últimos anos: novos conhecimentos pra quê? O que vou fazer com os novos conhecimentos diários que busco desenvolver como um ser humano?
A pergunta parece ser contraditória até em relação ao que eu mesmo escrevi acima, mas diria que é e não é.
Conhecimento novo nos modifica e pode nos ajudar até a compreender melhor o mundo e a vida em toda a complexidade que isso significa. Mas como fazer o conhecimento novo ser incorporado a uma dimensão social coletiva, além da questão pessoal?
Cara, por duas décadas fui um militante da classe trabalhadora e tinha a consciência de que eu não sabia quase nada sobre nós e nossa história e por isso passei duas décadas estudando diariamente para tentar fazer uma representação honesta de meus pares. Quanto mais eu estudava sobre nós, mais eu tinha conteúdo para fazer um bom papel social. Isso preenchia minha vida de forma satisfatória naquilo que chamaríamos de dar sentido ao viver.
Minha busca por conhecimentos nas três décadas anteriores ao meu viver político foi de outra natureza. Eu era outro. A busca pessoal preenchia a totalidade do viver, o que não quer dizer que isso fosse algo ideal para o tipo de homem que sou hoje: um cidadão politizado e de esquerda. Todos os meus objetivos naquela época eram pessoais, não eram coletivos. É como eu era. Me arrisco a dizer que é como é a maioria absoluta dos seres humanos não politizados, a multidão não politizada da classe trabalhadora explorada e moldada a partir da ideologia da classe dominante.
É nesse ponto que estou do viver como um cidadão do mundo neste espaço geográfico chamado Brasil, neste fim de ano e próximo ao alvorecer de 2023, após uma longa noite que durou no Brasil desde o golpe de Estado em 2016 até a eleição e diplomação do presidente Lula nesta semana. O que fazer da vida no próximo período de existência? Não sou e nem poderia voltar a ser aquele que fui até os trinta anos, com minha perspectiva de vida individualista e egoísta do mundo. Não vejo que haverá oportunidades de voltar a viver o que vivi nos últimos vinte anos, com uma dimensão de vida toda voltada a servir à coletividade.
Chega por hoje. De começar pensando na pessoa fantástica e revolucionária que foi o cidadão Luiz Gama no século 19, homem que eu não conhecia até ontem, divaguei pra cacete olhando fragmentos de quarenta anos de minha própria vida.
E agora, José?
William
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