Refeição Cultural
Osasco, 19 de dezembro de 2022. Segunda-feira nublada e chuvosa.
"Dizem que algumas pessoas escrevem para não morrer, outras pintam, algumas representam, e há também as que cantam, as que tocam instrumentos, as que bordam... Eu danço." (Rose Dusreis)
Li relativamente rápido as 13 histórias contidas na obra Insubmissas Lágrimas de Mulheres (2016), livro de Conceição Evaristo. Li as narrativas em três dias.
As histórias das personagens são duras, são a realidade, sejam elas inspiradas em casos de pessoas reais, sejam elas inventadas, ficções que retratam o mais duro cotidiano de mulheres brasileiras, sobretudo mulheres negras, pardas, trans, sem recursos financeiros e sem acesso aos direitos básicos da cidadania e da plenitude humana.
A oportunidade de ler mais um livro de nossa grande escritora Conceição Evaristo se deu pelo fato de o livro em questão ser uma das obras escolhidas para fazermos uma leitura coletiva no curso "13 livros para compreender o Brasil", ministrado por Lindener Pareto e Suze Piza no Instituto Conhecimento Liberta (ICL). O livro de Evaristo é o 10º que estamos trabalhando, alguns eu já li, outros serão lidos ainda por mim.
Meu estado de espírito durante a leitura das Insubmissas Lágrimas de Mulheres foi de certa forma propício a cada história trágica que lia. Minha tristeza pessoal destes dias me colocou numa condição de imensa solidariedade com cada personagem das histórias que li: violência, injustiça, impotência diante dos fatos, resignação, uma noção de que se deve seguir mesmo sem achar satisfatório o viver.
A solidariedade e a identificação com cada personagem ocorreram naturalmente, mesmo sendo eu um leitor homem branco cinquentenário, porque as injustiças e violências descritas no livro estão nas reminiscências do meu passado, nas ambiências nas quais cresci e vivi.
As "escrevivências" de Evaristo me fazem voltar nos ambientes do meu viver, no mundo machista e violento no qual fui aculturado nas primeiras décadas de minha vida. Brasil.
---
INSUBMISSAS LÁGRIMAS DE MULHERES
Mulheres e crianças violentadas, espancadas, vítimas dos piores abusos de homens e do sistema machista no qual vivemos há centenas de anos. A injustiça cotidiana de nosso mundo.
Mulheres com uma resiliência incrível e uma insistência inspiradora em viver e seguir e lutar por um lugar ao sol e pelo direito à vida em toda a sua plenitude.
Cada personagem de Evaristo que conhecia e sua respectiva história de vida me fazia ver uma espécie de flash back do passado. Nas veredas de meu viver, a violência era a regra e não a exceção. Toda forma de violência, desde a verbal até a física, da violência da hierarquia social à violência da discriminação. Fomos criados para sermos cínicos e hipócritas. Brasil.
O curso que estamos fazendo sobre as leituras de livros e autores que nos fazem compreender o Brasil e o que somos tem um olhar interessante sobre a questão da "permanência": o que permanece desde sempre nesse país, em nós, nas relações sociais? A violência em todas as suas formas causa injustiça e isso é uma permanência insuportável em nossas vidas ontem e hoje.
Se olharmos ao nosso redor, em nosso contexto de vida, veremos tudo o que acontece com cada uma das 13 personagens de Insubmissas Lágrimas de Mulheres. É foda! É permanência demais toda a violência e injustiça que se pratica nesta terra há cinco séculos de invasão e apropriação ao modo ocidental capitalista de estabelecer o mundo.
É isso! Eu já estava triste quando comecei a ler o livro, fatos familiares que me impedem de aproveitar os instantes de felicidades pontuais através das notícias sobre a chegada do novo governo que ajudamos a eleger, bloqueando a continuidade do Mal representado pelos desgraçados que estavam no poder.
Vale a pena ler este livro e todos os livros de Conceição Evaristo. Já li dela Ponciá Vicêncio (ler a respeito aqui), Becos da Memória (comentários aqui) e Olhos D'água (comentei aqui). E quero ler as obras que não li ainda de Evaristo. As obras da autora me fazem pensar demais no ontem e no hoje de nossa sociedade brasileira.
SOLIDÃO
Termino a postagem com uma passagem que me fez pensar muito na solidão que sentia no momento no qual li a narrativa "Mary Benedita", umas quatro e tanto da manhã, um sentimento muito pessoal e que dói fundo no ser. Na voz da personagem Mary Benedita ficou bonita a imagem da soledad.
"Nesses concertos íntimos, um dia, depois que eu estava morando definitivamente com ela, assisti a uma das cenas mais comoventes de minha vida. Tia Aurora tocava o violino, eu de olhos fechados, tal era o enlevo que a música me causava, quando, de repente percebi um som diferente. Abri os olhos, a musicista chorava, soluçava... Ela e o violino. Um dia, hei de retomar essa imagem em uma pintura... Mas como pintar a concretude da solidão de uma mulher? Como pintar a concretude da soledad humana?" (Mary Benedita)
Talvez eu escreva alguns rabiscos desde a mais tenra juventude "para não morrer" como nos conta a personagem Dusreis, que citei na abertura do texto.
William
Bibliografia:
EVARISTO, Conceição. Insubmissas Lágrimas de Mulheres. 3ª ed. Rio de Janeiro: Malê, 2020.
Nenhum comentário:
Postar um comentário