terça-feira, 30 de maio de 2023

Leitura: O governo no futuro - Noam Chomsky



Refeição Cultural

Osasco, 30 de maio de 2023. Terça-feira.


Tive pouco tempo para me dedicar à leitura de livros em abril e maio. Só finalizei três livros: O trono no morro, de José J. Veiga, A impureza da minha mão esquerda, de Henry Bugalho e este do Chomsky. Outros estão em andamento, mas ainda vai um tempo para a conclusão das leituras iniciadas. 

A leitura como prática diária é um esforço, como costumo dizer em meus textos e comentários em redes sociais. Ler é uma necessidade vital para quem deseja manter o bom funcionamento do cérebro humano.

Noam Chomsky é um dos maiores intelectuais vivos de nosso tempo. Meu primeiro contato com seus conhecimentos foi na área da linguística e da linguagem, pois o linguista é um dos estudiosos que revolucionou a ciência das linguagens com a Teoria da Gramática Gerativa. Foram os meus anos do curso de graduação em Letras na USP que me apresentaram este intelectual linguista.

Neste livro - O governo no futuro - Chomsky responde a uma pergunta feita em uma conferência ministrada em 1970, em Nova York. 

A questão "Qual o papel do Estado em uma sociedade industrial avançada?" permite ao intelectual abordar quatro posições idealizadas de comunidades humanas:

- a liberal clássica

- a socialista libertária

- a socialista de Estado

- a capitalista de Estado

De cara, o autor se posiciona e diz ter preferência pelos conceitos socialistas libertários:

"Penso que os conceitos socialistas libertários - uma esfera do pensamento que abrange do marxismo esquerdista ao anarquismo - são fundamentalmente corretos e extensões naturais e apropriadas do liberalismo clássico na atual era da sociedade industrial avançada." (p. 5 e 6)

LIBERALISMO CLÁSSICO

Chomsky aponta Wilhelm von Humboldt e seu livro Limites da ação do Estado (1792) como uma referência na questão.

"Segundo Humboldt, o Estado tende a 'fazer do homem um instrumento para seus fins arbitrários, deixando de lado os propósitos individuais'... " (p. 7)

Com isso o Estado seria "anti-humano":

"e, uma vez que os homens são por essência seres livres que se aperfeiçoam, que buscam, o que se conclui é que o Estado é uma instituição profundamente anti-humana." (idem)

Interessante o ponto de vista do intelectual.

HUMBOLDT E ROUSSEAU

- O atributo central do homem é a sua liberdade: indagar e criar, estes são o centro em torno do qual giram todas as buscas do homem.

Chomsky nos lembra que Humboldt escreveu antes do século 19, antes do auge da implantação do modo de produção capitalista. Se ele visse o capitalismo em ação, entenderia a importância do Estado para preservar a vida humana e o meio ambiente porque o capitalismo sem controle inviabiliza a vida e a natureza.

O autor aproxima as ideias de Humboldt aos primeiros textos de Marx em relação à alienação do trabalho: 

"Creio que seja bastante revelador e interessante se o compararmos com Marx, com os primeiros manuscritos de Marx, particularmente às considerações deste sobre 'a alienação do trabalho, quando o trabalho é externo ao trabalhador, (...) e não parte de sua natureza, (...) [de forma que] ele não se realiza no trabalho, mas nega a si mesmo (...). [e] se sente fisicamente esgotado e mentalmente enfraquecido', a alienação, que 'lança alguns trabalhadores de volta à barbárie de certo tipo de trabalho e transforma outros em máquinas', com isso privando o homem de seu 'caráter de espécie', da 'atividade de livre consciência' e da 'vida produtiva'." (p. 11)

Humboldt não previu que o capitalismo destruiria os ideais liberais em uma democracia:

Chomsky diz que é claro que ele não tinha ideia, ao escrever em 1790, do modo como viria a ser reinterpretada a noção de pessoa privada na era do capitalismo corporativo. 

Ele não previu - e cita o historiador anarquista Rudolf Rocker - que "a democracia, com seu lema de 'igualdade de todos os cidadãos perante a lei', e o liberalismo, com seu 'direito do homem sobre sua própria pessoa', naufragariam nas realidades do modelo econômico capitalista.

"Humboldt não previu que, numa economia capitalista predatória, a intervenção do Estado seria uma necessidade absoluta para preservar a existência humana e evitar a destruição do ambiente físico." (p. 13)

SOCIALISMO LIBERTÁRIO

Chomsky cita sua preferência por Bakunin e Haymarket ao lembrar que "um anarquista coerente deve se opor à propriedade privada dos meios de produção" (p. 19) e que "um anarquista coerente também fará oposição à 'organização da produção pelo governo" (idem): Daí se tem claro um conceito:

"O objetivo da classe trabalhadora é libertar-se da exploração. Este objetivo não é atingido e não pode ser alcançado por uma nova classe dirigente e governante em substituição à burguesia." (p. 19)

Citando um texto de William Paul (1917): "a República do Socialismo será o governo da indústria administrada pelo bem de toda a comunidade (...) representará a liberdade econômica de todos - será, portanto, uma democracia verdadeira." (p. 21)

Chomsky diz: "Proudhon, em 1851, escreveu que o que colocamos no lugar do governo é organização industrial, e podemos citar muitos comentários semelhantes. Esta, em essência, é a ideia fundamental dos revolucionários anarquistas." (idem)

COMUNISMO DE CONSELHOS

Chomsky defende: "Pode-se argumentar, pelo menos eu o faria, que o comunismo de conselhos - no sentido da longa citação que interpreto - é a forma natural de socialismo revolucionário numa sociedade industrial." (p. 12)

Diferenças táticas entre o marxismo de esquerda e o anarquismo, segundo o autor:

"Ora, pode parecer quixotesco agrupar o marxismo de esquerda e o anarquismo sob a mesma rubrica, como fiz, dado o antagonismo em todo o século passado entre marxistas e anarquistas - a começar pelo antagonismo entre Marx e Engels de um lado e, por exemplo, Proudhon e Bakunin de outro. No século XIX, suas diferenças com relação à questão do Estado eram significativas mas, de certa forma, táticas." (p. 24/25)

Chomsky explica que enquanto anarquistas eram a favor de destruir o capitalismo e o Estado juntos, Engels, por exemplo, entendia que o Estado tomado pelos trabalhadores seria "o único organismo por meio do qual o proletariado vitorioso pode afirmar seu poder recém-conquistado, controlar seus adversários capitalistas e realizar essa revolução econômica da sociedade sem a qual toda vitória deve terminar numa nova derrota e numa carnificina em massa dos trabalhadores semelhante à que se seguiu à comuna de Paris." (p. 25)

SOCIALISMO DE ESTADO E CAPITALISMO DE ESTADO

O intelectual dá um resumo geral do que pensa em relação à essas duas formas:

"Em resumo, o sistema democrático, na melhor das hipóteses, funciona dentro de uma faixa estreita em uma democracia capitalista, e mesmo dentro desta faixa estreita seu funcionamento tende enormemente a concentrações de poder privado e aos modos autoritários e passivos de pensamento que são induzidos por instituições autocráticas como as indústrias. É um truísmo, mas um truísmo que deve ser constantemente enfatizado, que capitalismo e democracia sejam basicamente incompatíveis." (p. 38/39)

Logo em seguida, Chomsky nos conta sobre o poder das burocracias não eleitas nas democracias capitalistas. Os diversos escalões da máquina do Estado são indicados e ocupados por representantes dos donos do poder econômico e os eleitos chegam e quase nada podem fazer para alterar profundamente as lógicas da estrutura.

UMA EXPERIÊNCIA PESSOAL - Eu vivi isso numa estrutura nacional burocrática até a medula espinal e como diretor eleito pelos associados numa autogestão em saúde tive que mover rios e mares para cumprir minimamente o projeto apresentado e eleito pelos donos da associação. O presidente Lula enfrentou e enfrenta isso o tempo todo em seus mandatos eletivos.

GUERRA FRIA, SISTEMA DE CONTROLE - Como a conferência de Chomsky é no início dos anos 1970, ele acaba abordando o papel estratégico do conceito de Guerra Fria para as potências - principalmente os EUA capitalista, mas também a URSS:

"(...) Na verdade, acredito que esta provavelmente seja a função da Guerra Fria: ela serve como mecanismo útil para os administradores da sociedade americana e suas contrapartes na União Soviética controlarem o povo em seus respectivos sistemas imperiais." (p. 45)

A economia de guerra dos EUA após a 2ª GM trouxe o maior poder econômico já registrado para um país, o fornecedor de armas para todo o mundo. Guerra é lucro certo para o imperialismo norte-americano. Ontem e hoje! Olha a Guerra na Ucrânia aí para não nos deixar enganar...

CONCLUSÃO DO AUTOR - O SOCIALISMO LIBERTÁRIO É POSSÍVEL

Cito integralmente o parágrafo final com a conclusão de Noam Chomsky sobre a temática abordada neste livro. A palestra foi em 1970, mas guardadas as devidas mudanças do cenário mundial neste meio século, a essência do que ele trata segue a mesma em 2023: modelos de organização econômica, política e social.

"Temos hoje os recursos técnicos materiais para atender às necessidades animais do homem. Não desenvolvemos os recursos culturais e morais - ou as formas democráticas de organização social - que possibilitam o uso humano e racional de nossa riqueza e poder materiais. É concebível que os ideais liberais clássicos, expressos e desenvolvidos em sua forma socialista libertária, sejam realizáveis. Mas se assim forem, o serão apenas por um movimento revolucionário popular, baseado em um amplo estrato da população e comprometido com a eliminação de instituições repressoras e autoritárias, estatais e privadas. Criar esse movimento é um desafio que enfrentamos e que devemos cumprir, se quisermos escapar da barbárie contemporânea." (p. 54)

COMENTÁRIO FINAL

De forma até irônica, quero terminar a postagem sobre a leitura desse livro, fruto de uma conferência de Chomsky sobre o papel do Estado numa sociedade industrial, com a citação que ele faz de Mark Twain, ironizando a democracia nas formas de Socialismo de Estado e Capitalismo de Estado:

"Mark Twain certa vez escreveu que 'é pela bondade de Deus que em nosso país temos aquelas três coisas indescritivelmente preciosas: liberdade de expressão, liberdade de consciência e a prudência de nunca praticar nenhuma delas'." (p. 52)

É isso!

Fim da leitura dessa aula de Chomsky. Foi o 11º livro lido no ano. Neste caso, lido e relido hoje enquanto fiz a postagem.

William


Bibliografia:

CHOMSKY, Noam. O governo no futuro. Tradução de Maira Parula. 2ª edição. Rio de Janeiro: Record, 2021.


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