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"Sudário" alternativo de Almodóvar (em Maus Hábitos, de 1983) |
Refeição Cultural
O universo de Pedro Almodóvar (I)
ANOS 80
Já tinha visto filmes de Almodóvar no passado. Me agradou à época a poética do diretor espanhol. Gostei bastante de "Volver" (2006) quando o vi pela primeira vez.
No entanto, minha relação com filmes era diferente da condição atual. Assistia a filmes e raras vezes ficava impactado a ponto de ficar pensativo por um tempo. Quase não me lembro dos finais de filmes que vi faz tempo.
De cada dez que via, acho que um ou outro me pegava de jeito, do tipo "Natureza selvagem", do ator e diretor Sean Penn (2007), "Uma história real", dirigido por David Lynch (1999), "Tomates verdes fritos", de Jon Avnet (1991), e outros.
Depois que passei a escrever comentários e impressões sobre alguns filmes que vejo, minha sensibilidade melhorou em relação a esta forma de cultura e arte.
Ao verificar a lista de filmes de Pedro Almodóvar que iriam sair do streaming que assino, a Netflix, decide assistir a alguns deles. Eram muitos filmes, então tentei ver por ordem cronológica de produção do diretor.
Pedro Almodóvar
O espanhol é um artista completo. Seus filmes são escritos, roteirizados e dirigidos por ele mesmo. Almodóvar tem uma criatividade impressionante! Suas obras são bastante autorais.
Ele faz parte da geração de artistas que surgiu após a queda de Franco na Espanha. O país viu nascer um movimento de libertação e contracultura desde meados dos anos setenta e com o auge nos anos oitenta, a "Movida Madrilenha".
Transgressão - a palavra que poderia resumir bem o movimento e a contracultura espanhola do período seria "transgressão". É o que vemos nos primeiros filmes de Pedro Almodóvar.
São frequentes em seus filmes: o uso de drogas em todos os cenários, mulheres e gays na luta por seus lugares ao sol, a denúncia do uso da fé e das religiões para enganar pessoas e manter privilégios.
Enfim, diria que os filmes da primeira década de Almodóvar seguem bastante atuais, as temáticas foram e voltaram ao longo do tempo como pautas e agendas em todos os espectros políticos da sociedade humana.
Neste quarto de século XXI, o mundo vive uma nova disputa global entre progressistas de um lado e conservadores e reacionários de outro.
Cultura e educação podem nos salvar. A arte é uma forma de nos fazer pensar e sentir, até quando a técnica é chocar e causar espanto.
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FILMES
Maus hábitos (Entre tinieblas), de 1983
SINOPSE:
Yolanda Bell (Cristina Sánchez Pascual), uma jovem cantora e prostituta (diz a personagem no filme), leva uma vida cheia de drogas, exageros e ambiguidades, até que assiste a seu namorado morrer de overdose de heroína. Apavorada, ela busca refúgio no convento das "redentoras humilhadas", que se dedica a salvar jovens moças da "perdição".
COMENTÁRIO:
Um dos primeiros longas de Almodóvar, o filme deve ter causado o furor da igreja católica e de autoridades públicas e privadas na Espanha.
O convento tem a Madre Superiora (Julieta Serrano) viciada em cocaína e heroína, a monja Sor Rato de Rua (Chus Lampreave) que escreve romances sob pseudônimo, a monja Esterco (Marisa Paredes) que se martiriza de formas horríveis, a monja Sor Perdida (Carmen Maura) meio doida e que cuida de um tigre, e outras monjas nada convencionais.
A Espanha vivia um novo momento político após o fim do franquismo, e a poderosa autoridade da igreja católica agora era alvo de questionamentos e denúncias.
Almodóvar vai na raiz da questão da hipocrisia representada pelas autoridades religiosas associadas ao Estado com esse filme. Achei bem interessante.
Já se vê que as mulheres e pessoas periféricas e excluídas serão o universo retratado em seus filmes.
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O que fiz eu para merecer isto? (¿Qué he hecho yo para merecer esto?), de 1984
SINOPSE:
A diarista Gloria (Carmen Maura) divide o minúsculo apartamento com o marido Antonio, motorista de táxi (Ángel de Andrés López), e os filhos desajustados. Glória é viciada em anfetaminas, o marido é apaixonado por uma cliente alemã e os filhos consomem e traficam drogas. Tem ainda a sogra (Chus Lampreave) em casa, parceira do filho mais velho. Nesse universo, se cruzam ainda a vizinha prostituta (Verónica Forqué), um policial com disfunção erétil e uma criança paranormal. Um lagarto é personagem também.
COMENTÁRIO:
Almodóvar mescla em uma comédia dramática os percalços da vida real de uma mulher das classes populares que faz de tudo para sobreviver e manter uma casa na qual ninguém faz nada para que aquilo seja um "lar". O marido é um machista de merda, que vive de arrotar lições morais, mas é um fdp.
O cenário eu conheço bem, apesar de ter vivido os anos oitenta no Brasil. A Espanha saía do período franquista, no qual a igreja católica era mancomunada com o poder estatal. O povo era massa de manobra das superstições e a hipocrisia era a lei.
O bairro pobre onde Gloria morava com a família não era muito diferente do bairro Marta Helena onde vivi nos anos oitenta, em Minas Gerais.
O mais interessante do filme de Almodóvar é que passadas quatro décadas do lançamento, o enredo continua atual.
O mundo segue dominado pelas drogas, que só mudaram de características com o passar do tempo. O machismo continua o mesmo, apesar de décadas de lutas das mulheres para ocuparem seu legítimo espaço social (o lugar da mulher é onde ela quiser). As religiões e superstições que dominam as massas seguem mancomunadas com a política: vejam as igrejas neopentecostais com seus projetos de poder estatal.
O filme é uma denúncia sobre a condição da mulher, sempre submetida à violência da sociedade dos homens e do capital.
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A lei do desejo (La ley del deseo), de 1987
SINOPSE:
O cineasta Pablo Quintero (Eusebio Poncela) começa um relacionamento com Antonio Benítez, fã obcecado por ele (Antonio Banderas), após terminar relação com outro jovem - Juan Bermúdez (Miguel Molina) - que decide ir embora. Pablo é apaixonado por Juan. Tina Quintero (Carmen Maura), irmã transsexual de Pablo, é atriz e será protagonista da próxima obra de Pablo. Ela cuida da garota Ada (Manuela Velasco) como se fosse sua filha. Antonio não aceita a ideia de Pablo ser apaixonado por Juan e isso trará consequências trágicas na vida de todos.
COMENTÁRIO:
O filme é forte na temática de gênero e orientação sexual. E lembro aqui que Almodóvar está em sua primeira década de longas-metragens nos anos oitenta. O tema era muito sensível para os conservadores e reacionários.
Os primeiros minutos do filme já chocam os espectadores. Um homem jovem nu recebe ordens de um outro homem para tirar as roupas e encenar cenas eróticas na cama.
É de se admirar a ousadia e a capacidade de Almodóvar de pautar já naquela época as questões mais comezinhas do cotidiano das pessoas "caídas" ou periféricas: a condição da mulher; a violência e a intolerância contra a liberdade sexual e a questão LGBT; o mal causado pelo mundo das drogas e a hipocrisia na forma como a questão é tratada pelas elites e pelas autoridades estabelecidas; e a questão da religião misturada à política estatal.
Interessante ver filmes de Almodóvar como estou fazendo, porque é possível perceber a evolução do ator e diretor e a forma como ele vai pautando os temas centrais da vida das pessoas comuns.
Lógico que seu estilo com cores fortes nos cenários, o vermelho principalmente, vai se impondo a cada filme. A forma teatral como se desenha as histórias, idem. Estou gostando bastante dos filmes.
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Mulheres à beira de um ataque de nervos (Mujeres al borde de un ataque de nervios), de 1988
SINOPSE:
O filme conta a história de Pepa Marcos (Carmen Maura), dubladora que tenta desesperadamente contatar seu amante Ivan (Fernando Guillén) que decide deixá-la. Ele é casado com Lucía (Julieta Serrano), e Ivan já atuou em vários trabalhos com Pepa. Durante dois dias, a história vai apresentando mais personagens como, por exemplo, o filho de Ivan, Carlos (Antonio Banderas), e sua noiva Marisa (Rossy de Palma). Também conhecemos Candela (María Barranco), amiga de Pepa que acha que está sendo perseguida pela polícia por ter tido um caso com um líder terrorista que promete fazer um atentado em Madri. Ao deixar tanto a amante Pepa quanto a esposa Lucía, Ivan será o catalisador de todos os eventos da história.
COMENTÁRIO:
Filme muito engraçado, apesar das situações das personagens serem dramáticas. Uma mulher que busca uma resposta do amante para o seu abandono. Outra mulher apaixonada por um homem xiita que a usou para seus objetivos em Madri. Um taxista nos anos oitenta que já apontava o que seria o futuro dos serviços de aplicativos da atualidade, com um carro que vendia de tudo para os passageiros.
Pepa está grávida de Ivan, e seus sentimentos estão à flor da pele. Apesar do abandono, ela demonstra ser uma pessoa de grande coração, pois no meio da bagunça daqueles dois dias de encontros e desencontros é ela quem ajuda cada personagem com o seu problema pessoal. Pepa é a grande mulher da história.
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Comentário final
Vamos ver mais alguns filmes de Almodóvar e apreciar o talento incrível desse ator, roteirista e diretor espanhol. Sem dúvidas, ele é um dos grandes de nossa época!
Nas sinopses, adaptei textos da Wikipédia, Netflix e outras fontes modificando a descrição ao meu gosto.
William
Post Scriptum: o texto anterior desta série sobre filmes pode ser lido aqui.
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