Capa de minha edição. |
CLÁSSICO
BRASILEIRO de 1959
Li nesta semana (entre idas e vindas em transporte
urbano) mais uma obra de Jorge Amado, para ver em seguida o filme brasileiro
baseado na história, pois sempre que penso em assistir a um filme baseado em
livros, gosto de ler o livro antes.
Tem filmes famosos que não vi até hoje porque não li o
livro. Querem exemplos? Moby Dick, As vinhas da Ira etc.
Outro exemplo recente é o filme também baseado na obra de Jorge Amado Capitães
da areia. Agora já li o livro e posso ver o filme também.
Fundação Casa de Jorge Amado, Pelourinho, Salvador - BA. Foto: William Mendes, 2011. |
A
LEITURA
A leitura é uma delícia. É leve e rápida. Como precisei
comprar o livro para meu filho usar na escola, acabei pegando e lendo ele
primeiro.
“Até
hoje permanece certa confusão em torno da morte de Quincas Berro Dágua. Dúvidas
por explicar, detalhes absurdos, contradições no depoimento das testemunhas,
lacunas diversas. Não há clareza sobre hora, local e frase derradeira. A família,
apoiada por vizinhos e conhecidos, mantém-se intransigente na versão da
tranquila morte matinal, sem testemunhas, sem aparato, sem frase, acontecida
quase vinte horas antes daquela outra propalada e comentada morte na agonia da
noite, quando a lua se desfez sobre o mar e aconteceram mistérios na orla do
cais da Bahia. Presenciada, no entanto, por testemunhas idôneas, largamente
falada nas ladeiras e becos escusos, a frase final repetida de boca em boca,
representou, na opinião daquela gente, mais que uma simples despedida do mundo,
um testemunho profético, mensagem de profundo conteúdo (como escreveria um
jovem autor de nosso tempo)...”
“Não
sei se esse mistério da morte (ou das sucessivas mortes) de Quincas Berro Dágua
pode ser completamente decifrado. Mas eu o tentarei, como ele próprio
aconselhava, pois o importante é tentar, mesmo o impossível.”
Assim começa e termina o primeiro capítulo do livro. Encontramos
ali na frase final um EU que se identifica para TENTAR decifrar a ou as mortes
de Quincas.
Ladeiras do Pelourinho, Salvador BA. Foto: William Mendes, 2011. |
AS
MORTES DE QUINCAS BERRO DÁGUA
São três as mortes de nosso personagem: “Cometendo uma injustiça (a família), atribuem a esses amigos de Quincas toda a
responsabilidade da malfadada existência por ele vivida nos últimos anos,
quando se tornara desgosto e vergonha para a família. A ponto de seu nome não
ser pronunciado e seus feitos não serem comentados na presença inocente das
crianças, para as quais o avô Joaquim, de saudosa memória, morrera há muito,
decentemente, cercado da estima e do respeito do todos. O que nos leva a constatar ter havido uma primeira morte, se não física
pelo menos moral, datada de anos antes, somando um total de três, fazendo de
Quincas um recordista da morte, um campeão do falecimento, dando-nos o
direito de pensar terem sido os acontecimentos posteriores – a partir do
atestado de óbito até seu mergulho no mar – uma farsa montada por ele com o
intuito de mais uma vez atazanar a vida dos parentes, desgostar-lhes a existência,
mergulhando-os na vergonha e nas murmurações da rua...”
Igreja de São Francisco, Pelourinho BA. Foto: William Mendes, 2011. |
A
MORTE TRAZ RESPEITO AO MORTO
“Quando um homem morre, ele se reintegra em
sua respeitabilidade a mais autêntica, mesmo tendo cometido loucuras em sua
vida. A morte apaga, com sua mão de ausência, as manchas do passado e a memória
do morto fulge como diamante. Essa a tese da família, aplaudida por
vizinhos e amigos. Segundo eles, Quincas
Berro Dágua, ao morrer, voltara a ser aquele antigo e respeitável Joaquim
Soares da Cunha, de boa família, exemplar funcionário da mesa de rendas
estadual, de passo medido, barba escanhoada, paletó negro de alpaca, pasta sob
o braço, ouvido com respeito pelos vizinhos, opinando sobre o tempo e a
política, jamais visto num botequim, de cachaça caseira e comedida.”
Comentário: Cara!, e não é que ao ler esta máxima sobre
a morte me lembrei de um monte de gente falecida que para uma boa parte do mundo
era um lixo de gente e que após a morte foi reverenciada como a melhor pessoa
do mundo!
Até hoje, ninguém entende o ex-presidente Lula da
Silva, sacaneado por trinta anos pelo Roberto Marinho, babando elogios ao morto
em seu velório...
Belíssima construção da Faculdade de Medicina de Salvador BA. Foto: William Mende, 2011. |
OS
PARENTES
Os personagens parentes de seu Joaquim Soares da Cunha
são a filha Vanda, seu genro Leonardo, seu irmão tio Eduardo e a esposa tia Marocas,
e a falecida esposa Dona Otacília.
Para Quincas eram jararacas mãe e esposa, saco
de peidos a cunhada, e pobre coitado o genro.
OS
AMIGOS
Os amigos inseparáveis do paizinho são Curió,
Negro
Pastinha, cabo Martim e Pé-de-Vento.
Pé-de-Vento vendia anfíbios para a ciência. Ele vivia
com uma jia na mão e no bolso. (“sapo
não, jia”)
Quitéria
do olho arregalado, que “nos momentos de maior ternura,
dizia-lhe ‘Berrito’ por entre os dentes mordedores”.
Mestre
Manuel, o dono do saveiro.
Maria Clara, Doralice, gorda Margô...
Outra bela igreja da região do Pelourinho. Foto: William Mendes, 2011. |
AS
ALCUNHAS
Rei
dos vagabundos da Bahia, Cachaceiro-mor de Salvador, Filósofo
esfarrapado da Rampa do Mercado, Senador das gafieiras, “o
vagabundo por excelência” eis como o tratavam os jornais, onde por
vezes sua sórdida fotografia era estampada. O Patriarca da zona do baixo
meretrício.
Quincas se via como O velho marinheiro (“Velho marinheiro sem barco e sem mar,
desmoralizado em terra, mas não por culpa sua”).
Panorâmica vendo a baía e o Elevador Lacerda. Foto: William Mendes, 2011. |
O
NOME QUINCAS BERRO DÁGUA
“(...) Nos bares,
nos botequins, no balcão das vendas e armazéns, onde quer que se bebesse
cachaça, imperou a tristeza e a consumação era por conta da perda irremediável.
Quem sabia beber melhor do que ele, jamais completamente alterado, tanto mais
lúcido e brilhante quanto mais aguardente emborcava? Capaz como ninguém de
adivinhar a marca, a procedência das pingas mais diversas, conhecendo-lhes
todas as nuanças de cor, de gosto e de perfume. Há quantos anos não tocava em
água? Desde aquele dia em que passou a ser chamado Berro Dágua.
Não
que seja fato memorável ou excitante história. Mas vale a pena contar o caso
pois foi a partir desse distante dia que a alcunha de “Berro Dágua”
incorporou-se definitivamente ao nome de Quincas. Entrara ele na venda de
Lopez, simpático espanhol, na parte externa do mercado. Freguês habitual,
conquistara o direito de servir-se sem auxílio do empregado. Sobre o balcão viu
uma garrafa, transbordando de límpida cachaça, transparente, perfeita. Encheu um
copo, cuspiu para limpar a boca, virou-o de uma vez. E um berro inumano cortou
a placidez da manhã no mercado, abalando o próprio elevador Lacerda em seus
profundos alicerces. O grito de um animal ferido de morte de um homem traído e
desgraçado:
-
Águuuuua!”.
Foto noturna do Elevador Lacerda. Até ele sacudiu com o berro do Quincas. Foto de William Mendes, 2011. |
E
AS DERRADEIRAS PALAVRAS?
Há várias versões. Um dos trovadores do mercado diz
assim:
No
meio da confusão
Ouviu-se
Quincas dizer:
“Me
enterro como entender
Na
hora que resolver.
Podem
guardar seu caixão
Pra
melhor ocasião.
Não
vou deixar me prender
Em
cova rasa no chão.”
E foi
impossível saber
O resto
de sua oração.
Noturna do Elevador Lacerda, com detalhe de pintura. Foto: William Mendes, 2011. |
COMENTÁRIO
FINAL
O defunto que não deixou de rir um momento sequer
enquanto durou a sacanagem dele em desfazer a tentativa da família de
ressuscitar o venerável e respeitável Joaquim Soares da Cunha é um dos pontos
altos da história. Sem essa de manter a reputação social da família!
O humor, a ironia e a sensualidade nas obras de Jorge
Amado na sua fase após os anos cinquenta são bem diferentes do estilo de forte
denúncia social presente nos primeiros vinte anos de obras como Capitães
da areia. Não estou dizendo que não há denúncia social em histórias como a de Quincas, mas na primeira fase, as histórias são bem duras.
Lembro-me de como fiquei tocado com a leitura de Mar
morto, leitura de minha adolescência. Preciso reler este livro, mas na
minha cabeça ficou uma história de marinheiros e mulheres do porto, que sempre
vinculo à música de Chico Buarque “Minha História (Gesubambino)”.
“Ele
vinha sem muita conversa, sem muito explicar,
Eu
só sei que falava e cheirava e gostava de mar,
Sei
que tinha tatuagem no braço e dourado no dente,
E
minha mãe se entregou a esse homem perdidamente...”
Capa do filme. |
O
FILME
O filme estreou em 2010 e tem direção e adaptação de
Sérgio Machado.
Eu gostei do filme. A interpretação de Paulo José no
corpo defunto de Quincas está muito boa. O filme ficou alegre e divertido. A
sonoplastia também ficou boa.
A adaptação do Sérgio Machado também é satisfatória, já
que ele não segue a história. Mas eu sei que transformar em arte visual obras
literárias não é nada fácil.
As técnicas e os efeitos são completamente diferentes. Na
literatura, a participação do leitor é obrigatória. Além de ler, cabe ao leitor
ser o diretor de fotografia e sonoplastia. Toda a arte visual é dele – leitor -
e é única.
Na sétima arte, ganhamos de mão beijada todo o visual.
BUUMM! Lá está, é só sentar e ver, ouvir, sentir...
Gostei do filme. Tá bem levinho. É só sentar e
assistir!
William
Post Scriptum (24/jan/17):
Releitura da postagem para escrever sobre a releitura de Mar Morto, de 1936.
William
Post Scriptum (24/jan/17):
Releitura da postagem para escrever sobre a releitura de Mar Morto, de 1936.
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