CONTOS DE MACHADO DE ASSIS, 1864 (7)
(as marcas em negrito e sublinhado são do blog. Após o conto faço alguns comentários críticos)
Mestre Machado de Assis |
(as marcas em negrito e sublinhado são do blog. Após o conto faço alguns comentários críticos)
Publicado originalmente em Jornal das Famílias 1864
I
No dia em que José
de Meneses recebeu por mulher Eulália Martins, diante do altar-mor da matriz do
Sacramento, na presença das respectivas famílias, aumentou-se com mais um a
lista dos casais felizes.
Era impossível amar-se mais do que se
amavam aqueles dois. Nem me atrevo a descrevê-lo. Imagine-se a fusão de quatro
paixões amorosas das que a fábula e a história nos dão conta e ter-se-á a
medida do amor de José de Meneses por Eulália e de Eulália por José de Meneses.
As mulheres tinham inveja à mulher
feliz, e os homens riam dos sentimentos, um tanto piegas, do apaixonado marido.
Mas os dois filósofos do amor relevaram à humanidade as suas fraquezas e
resolveram protestar contra elas amando-se ainda mais.
Mal contava um mês de casado, sentiu José de Meneses, em seu egoísmo de
noivo feliz, que devia fugir à companhia e ao rumor da cidade. Foi procurar uma
chácara na Tijuca, e lá se encafuou com Eulália.
Ali viam correr os dias no mais
perfeito descuido, respirando as auras puras da montanha, sem inveja dos
maiores potentados da terra.
Um ou outro escolhido conseguiu às
vezes penetrar no santuário em que os dois viviam, e de cada vez que de lá saía
vinha com a convicção mais profunda de que a felicidade não podia estar em
outra parte senão no amor.
Acontecia, pois, que, se as mulheres invejavam Eulália e se os homens
riam de José de Meneses, as mães, as mães previdentes, a espécie santa, no
dizer de E. Augier, nem riam nem se deixavam dominar pelo sexto pecado
mortal: pediam simplesmente a Deus que lhes deparasse às filhas um marido da
estofa e da capacidade de José de Meneses.
Mas cumpre dizer, para inspirar amor
a maridos tais como José de Meneses, era preciso mulheres tais como Eulália
Martins. Eulália em alma e corpo era o que há de mais puro unido ao que há de
mais belo. Tanto era um milagre de beleza carnal, como era um prodígio de
doçura, de elevação e de sinceridade de sentimentos. E, sejamos francos, tanta
coisa junta não se encontra a cada passo.
Nenhuma nuvem sombreava o céu azul da existência do casal Meneses.
Minto; de vez em quando, uma vez por semana apenas, e isto só depois de cinco meses de casados, Eulália derramava algumas lágrimas de impaciência por se demorar mais
do que costumava o amante José de Meneses. Mas não passava isso de uma chuva de
primavera, que, mal assomava o sol à porta, cessava para deixar aparecer as
flores do sorriso e a verdura do amor. A explicação do marido já vinha
sobreposse; mas ele não deixava de dá-la apesar dos protestos de Eulália; era
sempre excesso de trabalho que pedia a presença dele na cidade até uma parte da
noite.
Ano e meio viveram
assim os dois, ignorados do
resto do mundo, ébrios da felicidade e da solidão.
A família tinha aumentado com uma filha no fim de dez meses. Todos que são pais sabem o que é
esta felicidade suprema. Aqueles quase enlouqueceram. A criança era um mimo de
graça angélica. Meneses via nela o riso de Eulália, Eulália achava que os olhos
eram os de Meneses. E neste combate de galanteios passavam as horas e os dias.
Ora, uma noite, como o luar estivesse claro e a
noite fresquíssima, os dois, marido e mulher, deixaram a casa, onde a pequena
ficara adormecida, e foram conversar junto ao portão, sentados em cadeiras de ferro e debaixo de uma viçosa latada, sub
tegmine fagi.
Meia hora havia que ali estavam, lembrando o passado, saboreando o
presente e construindo o futuro, quando parou um carro na estrada.
Voltaram os olhos e viram descer duas
pessoas, um homem e uma mulher.
— Há de ser aqui, disse o homem
olhando para a chácara de Meneses.
Neste momento o luar deu em cheio no
rosto da mulher. Eulália exclamou:
— É Cristiana!
E correu para a recém-chegada.
Os dois novos personagens eram o
capitão Nogueira e Cristiana Nogueira, mulher do capitão.
O encontro foi o mais cordial do mundo. Nogueira era já amigo de José de
Meneses, cujo pai fora colega dele na escola militar, andando ambos a estudar
engenharia. Isto quer dizer que Nogueira era já homem dos seus quarenta e seis
anos.
Cristiana era uma moça de vinte e cinco anos, robusta, corada, uma
dessas belezas da terra, muito apreciáveis, mesmo para quem goza uma das
belezas do céu, como acontecia a José de Meneses.
Vinham de Minas, onde se haviam
casado.
Nogueira, cinco meses antes, saíra
para aquela província a serviço do Estado e ali encontrou Cristiana, por quem
se apaixonou e a quem soube inspirar uma estima respeitosa. Se eu dissesse amor, mentia, e eu tenho
por timbre contar as coisas como as coisas são.
Cristiana, órfã de pai e mãe, vivia na companhia de um tio, homem velho e impertinente,
achacado de duas moléstias gravíssimas: um reumatismo crônico e uma saudade do regime colonial. Devo
explicar esta última enfermidade; ele
não sentia que o Brasil se tivesse feito independente; sentia que,
fazendo-se independente, não tivesse conservado a forma de governo absoluto. Gorou o ovo, dizia ele, logo depois de
adotada a Constituição. E protestando interiormente contra o que se fizera,
retirou-se para Minas Gerais, de onde nunca mais saiu. A esta ligeira notícia
do tio de Cristiana acrescentarei que era rico como um Potosi e avarento
como Harpagão.
Entrando na fazenda do tio de
Cristiana e sentindo-se influído pela beleza desta, Nogueira aproveitou-se da
doença política do fazendeiro para lisonjeá-la com umas fomentações de louvor
do passado e indignação pelo presente. Em um servidor do Estado atual das
coisas, achou o fazendeiro que era aquilo uma prova de rara independência, e o
estratagema do capitão surtiu duas vantagens: o fazendeiro deu-lhe a sobrinha e mais um bom par de contos de réis.
Nogueira, que só visava a primeira, achou-se felicíssimo por ter alcançado
ambas. Ora, é certo que, sem as opiniões forjadas no momento pelo capitão,
o velho fazendeiro não tiraria à sua fortuna um ceitil que fosse.
Quanto a Cristiana, se não sentia pelo capitão um amor igual ou mesmo
inferior ao que lhe inspirava, votava-lhe uma estima respeitosa. E o hábito, desde Aristóteles
todos reconhecem isto, e o hábito,
aumentando a estima de Cristiana, dava à vida doméstica do capitão Nogueira uma
paz, uma tranquilidade, um gozo brando, digno de tanta inveja como era o amor sempre violento do casal Meneses.
Voltando à corte, Cristiana esperava
uma vida mais própria aos seus anos de moça do que a passada na fazenda mineira
na companhia fastidiosa do reumático legitimista. Pouco que pudessem alcançar
as suas ilusões, era já muito em comparação com o passado.
Dadas todas estas explicações,
continuo a minha história.
II
Deixo ao espírito
do leitor ajuizar como seria o encontro de amigos que se não veem há muito.
Cristiana e Eulália tinham muito que
contar uma à outra, e, em sala à parte, ao pé do berço em que dormia a filha de
José de Meneses, deram largas à memória, ao espírito e ao coração. Quanto a
Nogueira e José de Meneses, depois de narrada a história do respectivo
casamento e suas esperanças de esposos, entraram, um na exposição das suas
impressões de viagem, o outro na das impressões que deveria ter em uma viagem
que projetava.
Passaram-se deste modo as horas até
que o chá reuniu a todos quatro à roda da mesa de família. Esquecia-me dizer que Nogueira e Cristiana declararam desde o princípio
que, tendo chegado pouco havia, tencionavam demorar-se uns dias em casa de
Meneses até que pudessem arranjar na cidade ou nos arrabaldes uma casa
conveniente.
Meneses e Eulália ouviram isto,
pode-se dizer que de coração alegre. Foi decretada a instalação dos dois
viajantes. Tarde se levantaram da mesa, onde o prazer de se verem juntos os
prendia insensivelmente. Guardaram o muito que ainda havia a dizer para os
outros dias e recolheram-se.
— Conhecia José de Meneses?
perguntou Nogueira a Cristiana ao retirar-se para os seus aposentos.
— Conhecia de casa de meu pai.
Ele ia lá há oito anos.
— É uma bela alma!
— E Eulália!
— Ambos! ambos! É um casal
feliz!
— Como nós, acrescentou
Cristiana abraçando o marido.
No dia seguinte, foram os dois
maridos para a cidade, e ficaram as duas mulheres entregues aos seus corações.
De volta, disse Nogueira ter encontrado casa; mas era preciso
arranjá-la, e foi marcado para os arranjos o prazo de oito dias.
Os seis primeiros
dias deste prazo correram na maior alegria, na mais perfeita intimidade. Chegou-se a aventar a ideia de
ficarem os quatro habitando juntos. Foi Meneses o autor da ideia. Mas Nogueira
alegou ter necessidade de casa própria e especial, visto como esperava alguns
parentes do Norte.
Enfim, no sétimo dia, isto é, na véspera de se separarem os dois casais,
estava Cristiana passeando no jardim, à tardinha, em companhia de José de
Meneses, que lhe dava o braço. Depois de trocarem muitas palavras sobre coisas totalmente
indiferentes à nossa história, José de Meneses fixou o olhar na sua
interlocutora e aventurou estas palavras:
— Não tem saudade do passado, Cristiana?
A moça estremeceu, abaixou os olhos e
não respondeu. José de Meneses insistiu. A resposta de Cristiana foi:
— Não sei; deixe-me!
E forcejou por tirar o braço do de
José de Meneses; mas este reteve-a.
— Que susto pueril! Onde quer
ir? Meto-lhe medo?
Nisto parou ao portão um moleque com
duas cartas para José de Meneses. Os dois passavam neste momento em frente do
portão. O moleque fez entrega das cartas e retirou-se sem exigir resposta.
Meneses fez os seguintes raciocínios:
— Lê-las imediatamente era dar lugar a que Cristiana se evadisse para o
interior da casa; não sendo as cartas de grande urgência, visto que o portador
não exigira resposta, não havia grande necessidade de lê-las imediatamente.
Portanto guardou as cartas cuidadosamente para lê-las depois.
E de tudo isto conclui o leitor que Meneses tinha mais
necessidade de falar a Cristiana do que curiosidade de ler as cartas.
Acrescentarei, para não dar azo aos esmerilhadores de inverossimilhanças, que Meneses conhecia muito
bem o portador e sabia ou presumia saber de que tratavam as cartas em questão.
Guardadas as cartas, e sem tirar o
braço a Cristiana, Meneses continuou o passeio e a conversação.
Cristiana estava confusa e trêmula.
Durante alguns passos não trocaram uma palavra.
Finalmente, Meneses rompeu o silêncio
perguntando a Cristiana:
— Então, que me responde?
— Nada, murmurou a moça.
— Nada! exclamou Meneses. Nada!
era então esse o amor que me tinha?
Cristiana levantou os olhos
espantados para Meneses. Depois, procurando de novo tirar o braço do de
Meneses, murmurou:
— Perdão, devo recolher-me.
Meneses reteve-a de novo.
— Ouça-me primeiro, disse. Não
lhe quero fazer mal algum. Se me não ama, pode dizê-lo, não me zangarei;
receberei essa confissão como o castigo do passo que dei, casando minha alma
que se não achava solteira.
— Que estranha linguagem é essa?
disse a moça. A que vem essa recordação de uma curta fase da nossa vida, de um
puro brinco da adolescência?
— Fala de coração?
— Pois, como seria?
— Ah! não me faça crer que um
perjúrio...
— Perjúrio!...
A moça sorriu-se com desdém. Depois
continuou:
— Perjúrio é isto que faz.
Perjúrio é trazer enganada a mais casta e a mais digna das mulheres, a mais
digna, ouve? Mais digna do que eu, que ainda o ouço e lhe respondo.
E dizendo isto Cristiana tentou
fugir.
— Onde vai? perguntou Meneses.
Não vê que está agitada? Poderia fazer nascer suspeitas. Demais, pouco tenho a
dizer-lhe. É uma despedida. Nada mais, em nenhuma ocasião, ouvirá de minha
boca. Supunha que através dos tempos e das adversidades tivesse conservado pura
e inteira a lembrança de um passado que nos fez felizes. Vejo que me enganei.
Nenhum dos caracteres superiores que eu enxergava em seu coração tinha
existência real. Eram simples criações do meu espírito demasiado crédulo. Hoje
que se desfaz o encanto, e que eu posso ver toda a enormidade da fraqueza
humana, deixe-me dizer-lhe, perdeu um coração e uma existência que não merecia.
Saio-me com honra de um combate em que não havia igualdade de forças. Saio
puro. E se no meio do desgosto em que me fica a alma, é-me lícito trazê-la à
lembrança, será como um sonho esvaecido, sem objeto real na terra.
Estas palavras foram ditas em um tom
sentimental e como que estudado para a ocasião.
Cristiana estava aturdida. Lembrava-se que em vida de seu pai, tinha ela
quinze anos, houvera entre ela e José de Meneses um desses namoros de criança,
sem consequência, em que o coração empenhasse menos que a fantasia.
Com que direito vinha hoje Meneses
reivindicar um passado cuja lembrança, se alguma havia, era indiferente e sem
alcance?
Estas reflexões pesaram no espírito
de Cristiana. A moça expô-las em algumas palavras cortadas pela agitação em que
se achava, e pelas interrupções dramáticas de Meneses.
Depois, como aparecesse Eulália à
porta da casa, a conversa foi interrompida.
A presença de Eulália foi um alívio
para o espírito de Cristiana. Mal a viu, correu para ela, e convidou-a a
passear pelo jardim, antes que anoitecesse.
Se Eulália pudesse nunca suspeitar da
fidelidade de seu marido, veria na agitação de Cristiana um motivo para
indagações e atribulações. Mas a alma da moça era límpida e confiante, dessa
confiança e limpidez que só dá o verdadeiro amor.
Deram as duas o braço, e dirigiram-se
para uma alameda de casuarinas, situada na parte oposta àquela em que ficara
passeando José de Meneses.
Este, perfeitamente senhor de si,
continuou a passear como que entregue a suas reflexões. Seus passos, em
aparência vagos e distraídos, procuravam a direção da alameda em que andavam as
duas.
Depois de poucos minutos
encontraram-se como que por acaso.
Meneses, que ia de cabeça baixa,
simulou um ligeiro espanto e parou.
As duas pararam igualmente.
Cristiana tinha a cara voltada para o
lado. Eulália, com um divino sorriso, perguntou:
— Em que pensas, meu amor?
— Em nada.
— Não é possível, retorquiu
Eulália.
— Penso em tudo.
— O que é tudo?
— Tudo? É o teu amor.
— Deveras?
E voltando-se para Cristiana, Eulália
acrescentou:
— Olha, Cristiana, já viste um
marido assim? É o rei dos maridos. Traz sempre na boca uma palavra amável para
sua mulher. É assim que deve ser. Não esqueça nunca estes bons costumes, ouviu?
Estas palavras alegres e descuidosas
foram ouvidas distraidamente por Cristiana. Meneses tinha os olhos cravados na
pobre moça.
— Eulália, disse ele, parece que
D. Cristiana está triste.
Cristiana estremeceu.
Eulália voltou-se para a amiga e
disse:
— Triste! Já assim me pareceu. É
verdade, Cristiana? Estarás triste?
— Que ideia! Triste por quê?
— Ora, pela conversa que há
pouco tivemos, respondeu Meneses.
Cristiana fitou os olhos em Meneses.
Não podia compreendê-lo e não adivinhava onde queria ir o marido de Eulália.
Meneses, com o maior sangue-frio,
acudiu à interrogação muda que as duas pareciam fazer.
— Eu contei a D. Cristiana o
assunto da única novela que li em minha vida. Era um livro interessantíssimo. O
assunto é simples, mas comovente. É uma série de torturas morais por que passa
uma moça a quem esqueceu juramentos feitos na mocidade. Na vida real este fato
é uma coisa mais que comum; mas tratado pelo romancista toma um tal caráter que
chega a assustar o espírito mais refratário às impressões. A análise das atribulações
da ingrata é feita por mão de mestre. O fim do romance é mais fraco. Há uma
situação forçada... uma carta que aparece... Umas coisas... enfim, o melhor é o
estudo profundo e demorado da alma da formosa perjura. D. Cristiana é muito
impressível...
— Oh! meu Deus! exclamou
Eulália. Só por isto?
Cristiana estava ofegante. Eulália,
assustada por vê-la em tal estado, convidou-a a recolher-se. Meneses
apressou-se a dar-lhe o braço e dirigiram-se os três para casa. Eulália entrou
antes dos dois. Antes de pôr pé no primeiro degrau da escada de pedra que dava
acesso à casa, Cristiana disse a Meneses, em voz baixa e concentrada:
— É um bárbaro!
Entraram todos. Era já noite.
Cristiana reparou que a situação era falsa e tratou de desfazer os cuidados, ou
porventura as más impressões que tivessem ficado a Eulália depois do
desconchavo de Meneses. Foi a ela, com o sorriso nos lábios:
— Pois, deveras, disse ela,
acreditaste que eu ficasse magoada com a história? Foi uma impressão que
passou.
Eulália não respondeu.
Este silêncio não agradou nem a
Cristiana, nem a Meneses. Meneses contava com a boa-fé de Eulália, única
explicação de ter adiantado aquela história tão fora de propósito. Mas o
silêncio de Eulália teria a significação que lhe deram os dois? Parecia ter, mas
não tinha. Eulália achou estranha a história e a comoção de Cristiana; mas,
entre todas as explicações que lhe ocorressem, a infidelidade de Meneses seria
a última, e ela nem passou da primeira. Sancta simplicitas!
A conversa continuou fria e
indiferente até a chegada de Nogueira. Seriam então nove horas. Serviu-se o
chá, depois do que, todos se recolheram. Na manhã seguinte, como disse acima,
deviam partir Nogueira e Cristiana.
A despedida foi como é sempre a
despedida de pessoas que se estimam. Cristiana fez os esforços maiores para que
no espírito de Eulália não surgisse o menor desgosto; e Eulália, que não
usava mal, mal não cuidou na história da noite anterior. Despediram-se
todos com promessa jurada de se visitarem a miúdo.
III
Passaram-se quinze
dias depois das cenas que narrei acima. Durante esse tempo nenhum dos
personagens que nos ocupam tiveram ocasião de se falarem. Não obstante pensavam
muito uns nos outros, por saudade sincera, por temor do futuro e por frio
cálculo de egoísmo, cada qual pensando segundo os seus sentimentos.
Cristiana refletia profundamente
sobre a sua situação. A cena do jardim era para ela um prenúncio de
infelicidade, cujo alcance não podia avaliar, mas que lhe pareciam inevitáveis.
Entretanto, que tinha ela no passado? Um simples amor de criança, desses amores
passageiros e sem consequências. Nada dava direito a Meneses para reivindicar
juramentos firmados por corações extremamente juvenis, sem consciência da
gravidade das coisas. E demais, o casamento de ambos não invalidara esse
passado invocado agora?
Refletindo deste modo, Cristiana era
levada às últimas consequências. Ela estabelecia em seu espírito o seguinte
dilema: ou a reivindicação do passado feita por Meneses era sincera ou não. No
primeiro caso era a paixão concentrada que fazia irrupção no fim de tanto
tempo, e Deus sabe onde poderiam ir os seus efeitos. No segundo caso, era
simples cálculo de abjeta lascívia; mas então, se mudara a natureza dos
sentimentos do marido de Eulália, não mudava a situação nem desapareciam as
apreensões do futuro. Era preciso ter a alma profundamente mirrada para iludir
daquele modo uma mulher virtuosa tentando contra a virtude de outra mulher.
Em honra de Cristiana devo acrescentar que os seus temores eram
menos por ela que por Eulália. Estando segura de si, o que ela temia era que a
felicidade de Eulália se anuviasse, e a pobre moça viesse a perder aquela paz
do coração que a fazia invejada de todos.
Apreciando estes fatos à luz da razão
prática, se julgarmos legítimos os temores de Cristiana, julgaremos exageradas
as proporções que ela dava ao ato de Meneses. O ato de Meneses reduz-se, afinal
de contas, a um ato comum, praticado todos os dias, no meio da tolerância geral
e até do aplauso de muitos. Certamente que isso não lhe dá virtude, mas
tira-lhe o mérito da originalidade.
No meio das preocupações de Cristiana
tomara lugar a carta a que Meneses aludira. Que carta seria essa? Alguma dessas
confidências que o coração da adolescência facilmente traduz no papel. Mas os
termos dela? Em qualquer dos casos do dilema apresentado acima Meneses podia
usar da carta, a que talvez faltasse a data e sobrassem expressões ambíguas
para supô-la de feitura recente.
Nada disto escapava a Cristiana. E
com tudo isto entristecia. Nogueira
reparou na mudança que apresentava sua mulher e interrogou-a carinhosamente.
Cristiana nada lhe quis confiar, porque uma leve esperança lhe fazia crer às
vezes que a consciência de sua honra teria por prêmio a tranquilidade e a
felicidade. Mas o marido, não alcançando
nada e vendo-a continuar na mesma tristeza, entristecia-se também e
desesperava.
Que podia desejar Cristiana? pensava ele. Na incerteza e na angústia da
situação lembrou-se de ter com Eulália para que esta ou o informasse, ou, como
mulher, alcançasse de Cristiana o segredo das suas concentradas mágoas. Eulália
marcou o dia em que iria à casa de Nogueira, e este saiu da chácara da Tijuca
animado por algumas esperanças.
Ora, nesse dia apresentou-se pela
primeira vez em casa de Cristiana o exemplar José de Meneses. Apareceu como a
estátua do comendador. A pobre moça, ao vê-lo, ficou aterrada. Estava só. Não
sabia que dizer quando à porta da sala assomou a figura mansa e pacífica de
Meneses. Nem se levantou. Olhou-o fixamente e esperou.
Meneses parou à porta e disse com um
sorriso nos lábios:
— Dá licença?
Depois, sem esperar resposta,
dirigiu-se para Cristiana; estendeu lhe a mão e recebeu a dela fria e trêmula.
Puxou cadeira e sentou-se ao pé dela familiarmente.
— Nogueira saiu? perguntou
depois de alguns instantes, descalçando as luvas.
— Saiu, murmurou a moça.
— Tanto melhor. Tenho então
tempo para dizer-lhe duas palavras.
A moça fez um esforço e disse:
— Também eu tenho para dizer-lhe
duas palavras.
— Ah! sim. Ora bem, cabe às
damas a precedência. Sou todo ouvidos.
— Possui alguma carta minha?
— Possuo uma.
— É um triste documento, porque,
respondendo a sentimentos de outro tempo, se eram sentimentos dignos deste
nome, de nada pode valer hoje. Todavia, desejo possuir esse escrito.
— Vejo que não tem hábito de
argumentar. Se a carta em questão não vale nada, por que deseja possuí-la?
— É um capricho.
— Capricho, se existe algum é o
de tratar por cima do ombro um amor sincero e ardente.
— Falemos de outra coisa.
— Não; falemos disto, que é
essencial.
Cristiana levantou-se.
— Não posso ouvi-lo, disse ela.
Meneses segurou-lhe em uma das mãos e
procurou retê-la. Houve uma pequena luta. Cristiana ia tocar a campainha que se
achava sobre uma mesa, quando Meneses deixou-lhe a mão e levantou-se.
— Basta, disse ele; escusa de
chamar seus fâmulos. Talvez que ache grande prazer em pô-los na confidência de
um amor que não merece. Mas eu é que me não exponho ao ridículo depois de me
expor à baixeza. É baixeza, sim; não devia mendigar para o coração o amor de
quem não sabe compreender os grandes sentimentos. Paciência; fique com a sua
traição; eu ficarei com o meu amor; mas procurarei esquecer o objeto dele para
lembrar-me da minha dignidade.
Depois desta tirada dita em tom
sentimental e lacrimoso, Meneses encostou-se a uma cadeira como para não cair.
Houve um silêncio entre os dois. Cristiana falou em primeiro lugar.
— Não tenho direito, nem dever,
nem vontade de averiguar a extensão e a sinceridade desse amor; mas deixe que
eu lhe observe; o seu casamento e a felicidade que parece gozar nele protestam
contra as alegações de hoje.
Meneses levantou a cabeça, e disse:
— Oh! não me exprobre o meu casamento! Que queria que eu fizesse
quando uma pobre moça me caiu nos braços declarando amar-me com delírio?
Apoderou-se de mim um sentimento de compaixão; foi todo o meu crime. Mas neste
casamento não empenhei tudo; dei a Eulália o meu nome e minha proteção; não lhe
dei nem o meu coração nem o meu amor.
— Mas essa carta?
— A carta será para mim uma
lembrança, nada mais; uma espécie de espectro do amor que existiu, e que me
consolará no meio das minhas angústias.
— Preciso da carta!
— Não!
Neste momento entrou precipitadamente
na sala a mulher de Meneses. Vinha pálida e trêmula. Ao entrar trazia na mão
duas cartas abertas. Não pôde deixar de dar um grito ao ver a atitude meio
suplicante de Cristiana e o olhar terno de Meneses. Deu um grito e caiu sobre o sofá. Cristiana correu para ela.
Meneses, lívido como a morte, mas cheio de uma tranquilidade aparente,
deu dois passos e apanhou as cartas que caíram da mão de Eulália. Leu-as rapidamente.
Descompuseram-se-lhe as feições. Deixou Cristiana prestar os seus cuidados de
mulher a Eulália e foi para a janela. Aí fez
em tiras miúdas as duas cartas, e esperou, encostado à grade, que passasse
a crise de sua mulher.
Eis aqui o que se passara.
Os leitores sabem que era aquele dia destinado à
visita de Eulália a Cristiana, visita de que só Nogueira tinha conhecimento.
Eulália deixou que Meneses viesse
para a cidade e mandou aprontar um carro para ir à casa de Cristiana.
Entretanto, assaltou-lhe uma ideia. Se seu marido voltasse para casa antes
dela? Não queria causar-lhe impaciências ou cuidados, e arrependia-se de nada
lhe ter dito com antecipação. Mas era forçoso partir. Enquanto se vestia
ocorreu-lhe um meio. Deixar escritas duas linhas a Meneses dando-lhe parte de
que saíra, e dizendo-lhe para que fim. Redigiu a cartinha mentalmente e
dirigiu-se para o gabinete de Meneses.
Sobre a mesa em que Meneses costumava
trabalhar não havia papel. Devia haver na gaveta, mas a chave estava
seguramente com ele. Ia saindo para ir ver papel a outra parte, quando viu
junto da porta uma chave; era a da gaveta. Sem escrúpulo algum, travou da
chave, abriu a gaveta e tirou um caderno de papel. Escreveu algumas linhas em
uma folha, e deixou a folha sobre a mesa debaixo de um pequeno globo de bronze.
Guardou o resto do papel, e ia fechar a gaveta, quando reparou em duas cartinhas
que, entre outras muitas, se distinguiam por um sobrescrito de letra trêmula e
irregular, de caráter puramente feminino.
Olhou para a porta a ver se alguém
espreitava a sua curiosidade e abriu as cartinhas, que, aliás, já se achavam
descoladas. A primeira carta dizia assim:
Meu caro Meneses.
Está tudo acabado. Lúcia contou-me tudo. Adeus; esquece-te de mim. — MARGARIDA.
A segunda carta era concebida nestes
termos:
Meu caro Meneses.
Está tudo acabado. Margarida contou-me tudo. Adeus; esquece-te de mim. — LÚCIA.
Como o leitor adivinha, estas cartas eram
as duas que Meneses recebera na tarde em que andou passeando com Cristiana no
jardim.
Eulália, lendo estas duas cartas,
quase teve uma síncope. Pôde conter-se, e, aproveitando o carro que a esperava,
foi buscar a Cristiana as consolações da amizade e os conselhos da prudência.
Entrando em casa de Cristiana pôde
ouvir as últimas palavras do diálogo entre esta e Meneses. Esta nova traição de
seu marido quebrara-lhe a alma.
O resto desta
simples história conta-se em duas palavras.
Cristiana conseguira acalmar o
espírito de Eulália e inspirar-lhe sentimentos de perdão. Entretanto,
contou-lhe tudo o que ocorrera entre ela e Meneses, no presente e no passado.
Eulália mostrou ao princípio grandes
desejos de separar-se de seu marido e ir viver com Cristiana; mas os conselhos
desta, que, entre as razões de decoro que apresentou para que Eulália não
tornasse pública a história das suas desgraças domésticas, alegou a existência
de uma filha do casal, que cumpria educar e proteger, esses conselhos desviaram
o espírito de Eulália dos seus primeiros projetos e fizeram-na resignada ao
suplício.
Nogueira quase nada soube das
ocorrências que acabo de narrar; mas soube quanto era suficiente para esfriar a
amizade que sentia por Meneses.
Quanto a este, enfiado ao princípio
com o desenlace das coisas, tomou de novo o ar descuidoso e aparentemente
singelo com que tratava tudo. Depois de uma mal alinhavada explicação dada à
mulher a respeito dos fatos que tão evidentemente o acusavam, começou de novo a
tratá-la com as mesmas carícias e cuidados do tempo em que merecia a confiança
de Eulália.
Nunca mais voltou ao casal Meneses a
alegria franca e a plena satisfação dos primeiros dias. Os afagos de Meneses
encontravam sua mulher fria e indiferente, e se alguma coisa mudava era o
desprezo íntimo e crescente que Eulália votava a seu marido.
A pobre mãe, viúva da pior viuvez desta vida, que é aquela que anula o
casamento conservando o cônjuge, só vivia para sua filha.
Dizer como acabaram ou como vão
acabando as coisas não entra no plano deste escrito: o desenlace ainda é mais
vulgar que o corpo da ação.
Quanto ao que há de vulgar em tudo o que acabo de contar, sou eu o
primeiro a reconhecê-lo. Mas que querem? Eu não pretendo senão esboçar quadros
ou caracteres, conforme me ocorrem ou vou encontrando. É isto e nada mais.
FIM
COMENTÁRIOS
“Eu não pretendo senão esboçar
quadros ou caracteres, conforme me ocorrem ou vou encontrando. É isto e nada
mais”
Para comentar
este conto, nada melhor do que a própria afirmação do narrador ao final da estória
ficcional.
Já nesta
fase, Machado busca um meio termo entre atender ao possível público consumidor
de jornais e literatura em forma de livros daquela década de 1860, ou seja, os
raros leitores e leitoras da Corte e a pequena burguesia branca, católica,
patriarcal e patrimonialista, bem como apontar também de forma irônica as
mazelas tão comuns ao Brasil Imperial.
A declaração
do narrador pode ser entendida como uma declaração do escritor Machado em meio àquela
sociedade que lia ou ouvia a leitura de literatura idealizada com os caracteres
do movimento romântico – uma cópia abrasileirada do modelo europeu – vide José
de Alencar.
Veja abaixo,
o estilo que Machado passa a adotar com mais destaque textual nos contos sobre
a participação do leitor e sobre as opiniões do narrador:
“Se eu dissesse amor, mentia, e eu
tenho por timbre contar as coisas como as coisas são...”
“Deixo ao espírito do leitor ajuizar
como seria o encontro de amigos que se não veem há muito...”
“E de tudo isto conclui o leitor que...”
“Em honra de Cristiana devo
acrescentar que...”
“Os leitores sabem que...”
“Como o leitor adivinha...”
A leitura
cronológica que estou fazendo dos contos machadianos tem sido bastante
prazerosa e elucidativa sobre as mudanças que Machado vai introduzindo em seu
estilo.
Nesta década
de 1860, ele ainda publicará seus contos sempre nos periódicos locais (mas já
publicaria poesias nesta década). Passará a reunir em livro os contos nos anos
de 1870, quando também publica os primeiros romances.
É isso! Enquanto
estou lendo, estou também pesquisando e aprendendo. De repente, estou até
partilhando este conhecimento com dois ou três leitores regulares do blog.
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