CONTOS DE MACHADO DE ASSIS, 1864 (6)
(ao final deste conto, faço uma rápida análise sobre
ele)
Publicado originalmente em Jornal das
Famílias 1864
Cuidado, caro
leitor, vamos entrar na alcova de uma donzela.
A esta notícia o
leitor estremece e hesita. É naturalmente um homem de bons costumes, acata as
famílias e preza as leis do decoro público e privado. É também provável que já
tenha deparado com alguns escritos, destes que levam aos papéis públicos certas
teorias e tendências que melhor fora nunca tivessem saído da cabeça de quem as
concebeu e proclamou. Hesita e interroga a consciência se deve ou não continuar
a ler as minhas páginas, e talvez resolva não prosseguir. Volta a folha e passa
a coisa melhor.
Descanse, leitor,
não verá neste episódio fantástico nada do que se não pode ver à luz pública.
Eu também acato a família e respeito o decoro. Sou incapaz de cometer uma ação
má, que tanto importa delinear uma cena ou aplicar uma teoria contra a qual
proteste a moralidade.
Tranquilize-se,
dê-me o seu braço, e atravessemos, pé ante pé, a soleira da alcova da donzela
Cecília.
Há certos nomes que
só assentam em certas criaturas, e que quando ouvimos pronunciá-los como
pertencentes a pessoas que não conhecemos, logo atribuímos a estas os dons
físicos e morais que julgamos inseparáveis daqueles. Este é um desses nomes. Veja o leitor se
a moça que ali se acha no leito, com o corpo meio inclinado, um braço nu
escapando-se do alvo lençol e tendo na extremidade uma mão fina e comprida, os
cabelos negros, esparsos, fazendo contraste com a brancura da fronha, os olhos
meio cerrados lendo as últimas páginas de um livro, veja se aquela criatura
pode ter outro nome, e se aquele nome pode estar em outra criatura.
Lê, como disse, um
livro, um romance, e apesar da hora adiantada, onze e meia, ela parece estar
disposta a não dormir sem saber quem casou e quem morreu.
Ao pé do leito,
sobre a palhinha que forra o soalho, estende-se um pequeno tapete, cuja estampa
representa duas rolas, de asas abertas, afagando-se com os biquinhos. Sobre
esse tapete estão duas chinelinhas, de forma turca, forradas de seda
cor-de-rosa, que o leitor jurará serem de um despojo de Cendrilon. São as
chinelas de Cecília. Avalia-se já que o pé de Cecília deve ser um pé
fantástico, imperceptível, impossível; e examinando bem pode-se até
descobrir, entre duas pontas do lençol mal estendido, a ponta de um pé capaz de
entusiasmar o meu amigo Ernesto C..., o maior admirador dos pés pequenos,
depois de mim... e do leitor.
Cecília lê um
romance. É o centésimo que lê depois que saiu do colégio, e não saiu há muito
tempo. Tem quinze anos. Quinze anos! é a idade das primeiras palpitações,
a idade dos sonhos, a idade das ilusões amorosas, a idade de Julieta; é a
flor, é a vida, e a esperança, o céu azul, o campo verde, o lago tranquilo, a
aurora que rompe, a calhandra que canta, Romeu que desce a escada de seda,
o último beijo que as brisas da manhã ouvem e levam, como um eco, ao céu.
Que lê ela? Daqui
depende o presente e o futuro. Pode ser uma página da lição, pode ser uma gota
de veneno. Quem sabe? Não há ali à porta um índex onde se indiquem os livros
defesos e os lícitos. Tudo entra, bom ou mau, edificante ou corruptor, Paulo
e Virgínia ou Fanny. Que lê ela neste momento? Não sei.
Todavia deve ser interessante o enredo, vivas as paixões, porque a fisionomia
traduz de minuto a minuto as impressões aflitivas ou alegres que a leitura lhe
vai produzindo.
Cecília corre as
páginas com verdadeira ânsia, os olhos voam de uma ponta da linha à outra; não
lê; devora; faltam só duas folhas, falta uma, falta uma lauda, faltam dez
linhas, cinco, uma... acabou.
Chegando ao fim do
livro, fechou-o e pô-lo em cima da pequena mesa que esta ao pé da cama. Depois,
mudando de posição, fitou os olhos no teto e refletiu.
Passou em revista
na memória todos os sucessos contidos no livro, reproduziu episódio por
episódio, cena por cena, lance por lance. Deu forma, vida, alma, aos heróis do
romance, viveu com eles, conversou com eles, sentiu com eles. E enquanto ela
pensava assim, o gênio que nos fecha as pálpebras à noite hesitou, à porta do
quarto, se devia entrar ou esperar.
Mas, entre as
muitas reflexões que fazia, entre os muitos sentimentos que a dominavam, alguns
havia que não eram de agora, que já eram velhos hóspedes no espírito e no
coração de Cecília.
Assim que, quando a
moça acabou de reproduzir e saciar os olhos da alma na ação e nos episódios que
acabara de ler, voltou-lhe o espírito naturalmente para as ideias antigas e o
coração palpitou sob a ação dos antigos sentimentos.
Que sentimentos,
que ideias seriam essas? Eis a singularidade do caso. De há muito tempo que as
tragédias do amor a que Cecília assistia nos livros causavam-lhe uma angustiosa
impressão. Cecília só conhecia o amor pelos livros. Nunca amara. Do colégio
saíra para casa e de casa não saíra para mais parte alguma. O pressentimento
natural e as cores sedutoras com que via pintado o amor nos livros, diziam-lhe
que devia ser uma coisa divina, mas ao mesmo tempo diziam-lhe também os livros
que dos mais auspiciosos amores pode-se chegar aos mais lamentáveis desastres.
Não sei que terror se apoderou da moça; apoderou-se dela um terror invencível.
O amor, que para as outras mulheres apresenta-se com aspecto risonho e sedutor,
afigurou-se a Cecília que era um perigo e uma condenação. A cada novela que lia
mais lhe cresciam os sustos, e a pobre menina chegou a determinar em seu
espírito que nunca exporia o coração a tais catástrofes.
Provinha este
sentimento de duas coisas: do espírito supersticioso de Cecília, e da natureza
das novelas que lhe davam para ler. Se nessas obras ela visse, ao lado das más
consequências a que os excessos podem levar, a imagem pura e suave da
felicidade que o amor dá, não se teria de certo apreendido daquele modo. Mas
não foi assim. Cecília aprendeu nesses livros que o amor era uma paixão
invencível e funesta; que não havia para ela nem a força de vontade nem a
perseverança do dever. Esta ideia calou no espírito da moça e gerou um
sentimento de apreensão e de terror contra o qual ela não podia nada, antes se
tornara mais impotente à medida que lia uma nova obra da mesma natureza.
Este estrago moral
completava-se com a leitura da última novela. Quando Cecília levantou os olhos
para o teto tinha o coração cheio de medo e os olhos traduziam o sentimento do
coração. O que sobretudo a atemorizava mais era a incerteza que ela tinha de
poder escapar à ação de uma simpatia funesta. Muitas das páginas que lera
diziam que o destino intervinha nos movimentos do coração humano, e sem poder
discernir o que teria de real ou de poético este juízo, a pobre mocinha tomou
ao pé da letra o que lera e confirmou-se nos receios que nutria de muito tempo.
Tal era a situação
do espírito e do coração de Cecília quando o relógio de uma igreja que ficava a
dois passos da casa bateu meia-noite. O som lúgubre do sino, o silêncio da
noite, a solidão em que estava, deram uma cor mais sombria às suas apreensões.
Procurou dormir
para fugir às ideias sombrias que se lhe atropelavam no espírito e dar descanso
ao peso e ao ardor que sentia no cérebro; mas não pôde; caiu em uma dessas
insônias que fazem padecer mais em uma noite do que a febre de um dia inteiro.
De repente sentiu
que se abria a porta. Olhou e viu entrar uma figura desconhecida, fantástica.
Era mulher? era homem? não se distinguia. Tinha esse aspecto masculino e
feminino a um tempo com que os pintores reproduzem as feições dos serafins.
Vestia túnica de tecido alvo, coroava a fronte com rosas brancas e despedia dos
olhos uma irradiação fantástica e impossível de descrever. Andava sem que a esteira
do chão rangesse sob os passos. Cecília fitou os olhos na visão e não pôde mais
desviá-los. A visão chegou-se ao leito da donzela.
— Quem és tu?
perguntou Cecília sorrindo, com a alma tranquila e os olhos vivos e alegres
diante da figura desconhecida.
— Sou o anjo
das donzelas, respondeu a visão com uma voz que nem era voz nem música, mas um
som que se aproximava de ambas as coisas, articulando palavras como se
executasse uma sinfonia do outro mundo.
— Que me
queres?
— Venho em teu
auxílio.
— Para quê?
O anjo pôs as mãos
no peito de Cecília e respondeu:
— Para
salvar-te.
— Ah!
— Sou o anjo
das donzelas, continuou a visão, isto é, o anjo que protege as mulheres que
atravessam a vida sem amar, sem depor no altar dos amores uma só gota do óleo
celeste com que se venera o Deus menino.
— Sim?
— É verdade.
Queres que eu te proteja? Que te imprima na fronte o sinal fatídico ante o qual
recuarão todas as tentativas, curvar-se-ão todos os respeitos?
— Quero.
— Queres que
com um bafejo meu te fique eternamente gravado o emblema da eterna virgindade?
— Quero.
— Queres que
eu te garanta em vida as palmas verdes e viçosas que cabem às que podem
atravessar o lodo da vida sem salpicar o vestido branco de pureza que receberam
do berço?
— Quero. —
Prometes que nunca,
nunca, nunca te arrependerás deste pacto, e que, quaisquer que sejam as
contingências da vida, abençoarás a tua solidão?
— Quero.
— Pois bem!
Estás livre, donzela, estás inteiramente livre das paixões. Podes entrar
agora, como Daniel, entre os leões ferozes; nada te fará mal. Vê bem; é a
felicidade, é o descanso. Gozarás ainda na mais remota velhice de uma isenção
que será a tua paz na terra e a tua paz no céu!
E dizendo isto a
fantástica criatura desfolhou algumas rosas sobre o seio de Cecília. Depois
tirou do dedo um anel e introduziu no dedo da moça, que não opunha a
nenhum destes atos, nem resistência nem admiração, antes sorria com um sorriso
de angelical suavidade como se naquele momento entrevisse as glórias perenes
que o anjo lhe prometia.
— Este anel, disse
o anjo, é o anel de nossa aliança; doravante és minha esposa ante a eternidade.
Deste amor não te resultarão nem tormentos nem catástrofes. Conserva este anel
a despeito de tudo. No dia em que o perderes, estás perdida.
E dizendo estas
palavras a visão desapareceu.
A alcova ficou
cheia de uma luz mágica e de um perfume que parecia mesmo hálito de anjos.
No dia seguinte Cecília acordou
com o anel no dedo e a consciência do que se passara na véspera. Nesse dia
levantou-se da cama mais alegre que nunca. Tinha o coração leve e o espírito
desassombrado. Tocara enfim o alvo que procurara: a indiferença para os amores,
a certeza de não estar exposta às catástrofes do coração... Esta mudança
tornou-se cada dia mais pronunciada, e de modo tal que as amigas não deixaram
de reparar.
— Que tens tu?
dizia uma. És outra inteiramente. Aqui anda namoro!
— Qual namoro!
— Ora, de
certo! acrescentava outra.
— Namoro?
perguntava Cecília. Isso é bom para as... infelizes. Não para mim. Não amo...
— Amas!
— Nem amarei.
— Vaidosa!...
— Feliz é que
deves dizer. Não amo, é verdade. Mas que felicidade não me resulta disto?...
Posso afrontar tudo; estou armada de broquel e cota de armas...
— Sim?
E as amigas
desataram a rir, apontando para Cecília e jurando que ela se havia de arrepender
de dizer palavras tais.
Mas passavam os
dias e nada fazia notar que Cecília tivesse pago o pecado que cometera na
opinião das amigas. Cada dia trazia um pretendente novo. O pretendente fazia
corte, gastava tudo quanto sabia para cativar a menina, mas afinal desistia da
empresa com a convicção de que nada podia fazer.
— Mas não se
lhe conhece preferido? perguntavam uns aos outros.
— Nenhum.
— Que milagre
é este?
— Qual
milagre! Não lhe chegou a vez... Ainda não enflorou aquele coração. Quando
chegar a época da florescência há de fazer o que as mais fazem, e escolher
entre tantos pretendentes um marido.
E com isto se
consolavam os taboqueados.
O que é certo é que
corriam os dias, os meses, os anos, sem que nada mudasse a situação de Cecília.
Era a mesma mulher fria e indiferente. Quando completou vinte anos tinha
adquirido fama; era corrente em todas as famílias, em todos os salões, que Cecília
nascera sem coração, e a favor desta fama faziam-se apostas, levantavam-se
coragens; a moça tornou-se a Cartago das salas. Os romanos de bigode
retorcido e cabelo frisado juravam sucessivamente vencer a indiferença púnica.
Trabalho vão! Do agasalho cordial ao amor ninguém chegava nunca, nem por
suspeita. Cecília era tão indiferente que nem dava lugar à ilusão.
Entre os
pretendentes um apareceu que começou por cativar os pais de Cecília. Era um
doutor formado em matemáticas, metódico como um compêndio, positivo como um
axioma, frio como um cálculo. Os pais viram logo no novo pretendente o modelo,
o padrão, a fênix dos maridos. E começaram por fazer em presença
da filha os elogios do rapaz. Cecília acompanhou-os nesses elogios, e deu
alguma esperança aos pais. O próprio pretendente soube do conceito em que o
tinha a moça e criou esperanças.
E, conforme a
educação do espírito, tratou de regularizar a corte que fazia a Cecília, como
se se tratasse de descobrir uma verdade matemática. Mas, se a expressão dos
outros pretendentes não impressionou a moça, muito menos a impressionava a
frieza metódica daquele. Dentro de pouco tempo a moça negou-lhe até aquilo
que concedia aos outros: a benevolência e a cordialidade.
O pretendente
desistiu da causa e voltou aos cálculos e aos livros.
Como este, todos os
outros pretendentes iam passando, como soldados em revista, sem que o coração
inflexível da moça pendesse para nenhum deles.
Então, quando todos
viram que os esforços eram baldados, começou-se a suspeitar que o coração da
moça estivesse empenhado a um primo que exatamente na noite da visão de Cecília
embarcara para seguir até Santos e daí tomar caminho para a província de Goiás.
Esta suspeita desvaneceu-se com os anos; nem o primo voltou, nem a moça
mostrou-se sentida com a ausência dele. Esta conjectura com que os pretendentes
queriam salvar a honra própria perdeu o valor, e os iludidos tiveram de
contentar-se com este dilema: ou não tinham sabido lutar, ou a moça era uma
natureza de gelo.
Todos aceitaram a
segunda hipótese.
Mas que se passava
nessa natureza de gelo? Cecília via a felicidade das amigas, era confidente de
todas, aconselhava-as ao sentido de uma prudente reserva, mas nem procurava nem
aceitava os ciúmes que lhe andavam à mão. Todavia mais de uma vez, à noite,
no fundo da alcova, a moça sentia-se só. O coração solitário parece que se
não acostumara de todo ao isolamento a que o votara a dona.
A imaginação, para
fugir às pinturas indiscretas de um sentimento a que a moça fugia, corria às
soltas no campo das criações fantásticas e desenhava com vivas cores essa
felicidade que a visão lhe prometera. Cecília comparava o que perdera e o que
ia ganhar, e dava a palma do gozo futuro em compensação do presente. Mas
nesses rasgos de imaginação o coração palpitava-lhe com força, e mais de uma
vez a moça dava acordo de si procurando com uma das mãos arrancar o anel da
aliança com a visão.
Nesses momentos
recuava, entrava em si e chamava no interior a visão daquela noite dos quinze
anos. Mas o desejo era baldado; a visão não aparecia, e Cecília ia procurar no
leito solitário a calma que não podia encontrar nas vigílias laboriosas.
Muitas vezes a
aurora veio encontrá-la à janela, enlevada nas suas imaginações, sentindo um
vago desejo de conversar com a natureza, embriagar-se no silêncio da noite.
Em alguns passeios
que fez aos subúrbios da cidade deixava-se impressionar por tudo o que a vista
lhe oferecia de novo, água ou montanha, areia ou ervaçal, parecendo que a vista
se lhe comprazia nisso e esquecendo-se muitas vezes de si e dos outros.
Ela sentia um vácuo
moral, uma solidão interior, e procurava na atividade e na variedade da natureza
alguns elementos de vida para si. Mas a que atribuía ela essa ânsia de viver,
esse desejo de ir buscar fora aquilo que lhe faltava? Ao princípio não reparou
no que fazia; fazia involuntariamente, sem determinação nem conhecimento da
situação.
Mas, como se
prolongasse a situação, ela foi pouco a pouco descobrindo o estado do coração e
do espírito. Tremeu ao princípio, mas em breve se tranquilizou; a ideia da
aliança com a visão pesava-lhe no espírito, e as promessas feitas por ela de
uma bem-aventurança sem igual desenhavam na fantasia de Cecília um quadro vivo
e esplêndido. Isto consolava a moça, e, sempre escrava dos juramentos, ela
fazia honra sua em ficar pura do coração para subir à morada das donzelas
libertadas do amor.
Demais, ainda que o
quisesse, parecia-lhe impossível sacudir a cadeia a que involuntariamente se
prendera.
E os anos corriam.
Aos vinte e cinco
inspirou uma paixão violenta a um jovem poeta. Foi uma dessas paixões como só os
poetas sabem sentir. Este do meu conto depôs aos pés da bela insensível a
vida, o futuro, a vontade. Regou com lágrimas os pés de Cecília e pediu-lhe
como uma esmola uma centelha que fosse do amor que parecia ter recebido do céu.
Tudo foi inútil, tudo foi vão. Cecília nada lhe deu, nem amor nem benevolência.
Amor não tinha; benevolência podia ter, mas o poeta perdera o direito a ela
desde que declarou a extensão do seu sacrifício. Isto deu a Cecília a
consciência da sua superioridade, e com essa consciência certa dose de vaidade
que lhe vendava os olhos e o coração.
Se lhe aparecera o
anjo para tirar-lhe do coração o germe do amor, não lhe apareceu nenhum que lhe
tirasse o pouco de vaidade.
O poeta deixou
Cecília e foi para casa. Daí seguiu para uma praia, subiu a uma pequena
eminência e atirou-se ao mar. Dai a três dias encontrou-se-lhe o cadáver, e os
jornais deram do fato uma notícia lacrimosa. Entretanto encontrou-se entre os
papéis do poeta a seguinte carta:
*** A Cecília D...
Morro por ti. É ainda uma felicidade que eu procuro em falta da outra
que eu procurei, implorei e não alcancei.
Não me quiseste amar; não sei se o teu coração estaria cativo, mas dizem
que não. Dizem que és insensível e indiferente.
Não quis crê-lo e fui por mim próprio averiguá-lo. Coitado de mim! o que
vi bastou para dar-me a certeza de que não estava reservado para mim semelhante
fortuna.
Não te pergunto que curiosidade te levou a voltares a cabeça e
transformares-te, como a mulher de Lot, em estátua insensível e fria. Se alguma
coisa há nisto que eu não compreendo, não quero sabê-lo agora que deixo o fardo
da vida, e vou, por caminho escuro, procurar o termo feliz da minha viagem.
Deus te abençoe e te faça feliz. Não te desejo mal. Se te fujo e se fugi
ao mundo é por fraqueza, não é por ódio; ver-te, sem ser amado, é morrer todos
os dias. Morro uma só vez e rapidamente.
Adeus...
Esta carta causou a
Cecília muita impressão. Chorou até. Mas era piedade e não amor. A maior
consolação que ela mesma deu a si foi o pacto secreto e misterioso. É culpa
minha? perguntava ela. E respondendo negativamente a si mesma achava nisso a
legitimidade da sua indiferença.
Todavia, esta
ocorrência trouxe-lhe ao espírito uma reflexão.
O anjo
prometera-lhe, em troca da isenção para o amor, uma tranquilidade durante a
vida que só poderia ser excedida pela paz eterna da bem-aventurança.
Ora, que encontrava
ela? O vácuo moral, as impressões desagradáveis, uma sombra de remorso, eis os
lucros que tivera.
Os que foram fracos
como o poeta recorreram aos meios extremos ou deixaram-se dominar pela dor. Os
menos fracos ou menos sinceros no amor alimentaram contra Cecília um despeito
que deu em resultado levantar-se uma opinião ofensiva à moça.
Mais de um
procurava na sombra o motivo da indiferença de Cecília. Era a segunda vez que
se atiravam a essas investigações. Mas o resultado delas era sempre nulo, visto
que a realidade era que Cecília não amava ninguém.
E os anos
corriam...
Cecília chegou aos
trinta e três anos. Já não era a idade de Julieta, mas era uma idade ainda poética;
poética neste sentido — que a mulher, em chegando a ela, tendo já perdido
as ilusões dos primeiros tempos, adquire outras mais sólidas, fundadas na
observação.
Para a mulher dessa
idade o amor já não é uma aspiração do desconhecido, uma tendência mal
exprimida; é uma paixão vigorosa, um sentimento mais eloquente; ela já não
procura a esmo um coração que responda ao seu; escolhe entre os que encontra um
que possa compreendê-la, capaz de amar como ela, próprio para fazer essa doce
viagem às regiões divinas do amor verdadeiro, exclusivo, sincero, absoluto.
Nessa idade era
ainda bela. E pretendida. Mas a beleza continuou a ser um tesouro que a
indiferença avarenta guardava para os vermes da terra.
Um dia, longe dos
primeiros, muito longe, a primeira ruga desenhou-se no rosto de Cecília e
alvejou um primeiro cabelo. Mais tarde, segunda ruga, segundo cabelo, e
outras e outros, até que a velhice de Cecília declarou-se completa.
Mas há velhice e
velhice. Há velhice feia e velhice bonita. Cecília era da segunda espécie,
porque através dos sinais evidentes que o tempo deixara nela, sentia-se que
fora uma criatura formosa, e, embora de outra natureza, Cecília inspirava ainda
a ternura, o entusiasmo, o respeito.
Os fios de prata
que lhe serviam de cabelos emolduravam-lhe o rosto rugado, mas ainda suave. A
mão, que tão linda era outrora, não tinha a magreza repugnante, mas era ainda
bela e digna de uma princesa... velha.
Mas o coração? Esse
atravessara do mesmo modo os tempos e os sucessos sem nada deixar de si. A
isenção foi sempre completa. Lutava embora contra não sei que repugnância do
vácuo, não sei que horror da solidão, mas nessa luta a vontade ou a fatalidade
vencia sempre, triunfava de tudo, e Cecília pôde chegar à adiantada idade em
que a achamos sem nada perder.
O anel, o fatídico
anel, foi o talismã que nunca a abandonou. A favor desse talismã, que era a
assinatura do contrato celebrado com o anjo das donzelas, ela pôde ver de perto
o sol sem se queimar.
Tinham-lhe morrido
os pais. Cecília vivia em casa de uma irmã viúva. Vivia dos bens que recebera
em herança.
Que fazia agora? Os
pretendentes desertaram, os outros envelheceram também, mas iam ainda por lá
alguns deles. Não para requestá-la de certo, mas para passar as horas ou em
conversa grave e pausada sobre coisas sérias, ou à mesa de algum jogo inocente
e próprio de velhos.
Não poucas vezes
era assunto de conversação geral a habilidade com que Cecília conseguira
atravessar os anos da primeira e da segunda mocidade sem empenhar o coração em
nenhum laço de amor. Cecília respondia a todos que tivera um segredo poderoso
do qual não podia fazer comunicação alguma.
E nestas ocasiões
olhava amorosamente para o anel que trazia no dedo ornado de uma bela e grande
esmeralda.
Mas ninguém
reparava nisto.
Cecília gastava
horas e horas da noite em evocar a visão dos quinze anos. Quisera achar
conforto e confirmação às suas crenças, quisera ver e ouvir ainda a figura
mágica e a voz celeste do anjo das donzelas.
Parecia-lhe,
sobretudo, que o longo sacrifício que consumara merecia, antes da realização,
uma repetição das promessas anteriores.
Entre os que frequentavam
a casa de Cecília alguns velhos havia dos que, na mocidade, tinham feito roda a
Cecília e tomado mais ou menos seriamente as expressões de cordialidade da
moça.
Assim que, agora
que se encontravam nas últimas estações da vida, mais de uma vez a conversa
tinha por objeto a isenção de Cecília e as infelicidades dos adoradores.
Cada um referia os
seus episódios mais curiosos, as dores que sentira, as decepções que sofrera,
as esperanças que Cecília esfolhara com impassibilidade cruel.
Cecília ria ouvindo
essas confissões, e acompanhava os seus adoradores de outrora no terreno das
facécias que as revelações mais ou menos inspiravam.
— Ah! dizia
um, eu é que sofri como poucos.
— Sim?
perguntava Cecília.
— É verdade.
— Conte lá.
— Olhe,
lembra-se daquela partida em casa do Avelar?
— Foi há tanto
tempo!
— Pois eu me
lembro perfeitamente.
— Que houve?
— Houve isto.
Todos se prepararam
para ouvir a narração prometida.
— Houve isto,
continuou o ex-adorador. Estávamos no baile. Eu, nesse tempo, era um verdadeiro
pintalegrete. Envergava a melhor casaca, esticava a melhor calça, derramava os
melhores cheiros. Mais de uma dama suspirava em segredo por mim, e às vezes nem
mesmo em segredo...
— Ah!
— É verdade.
Mas qual é a lei geral da humanidade? É não aceitar aquilo que se lhe dá, para
ir buscar aquilo que não poderá obter. Foi o que fiz.
Le bonheur, c’est la boule
Que cet enfant poursuit tout le temps qu’elle roule.
Et que, dès qu’ele arrête, il repousse du pied.*
Que cet enfant poursuit tout le temps qu’elle roule.
Et que, dès qu’ele arrête, il repousse du pied.*
— Bravo!
— Vamos à
história!
— Estávamos no
baile. Já duas senhoras tinham-se retirado para o camarim a fim de evitar algum
desmaio. Por quê? Que fazia eu? Eu derramava aos pés de D. Cecília uma torrente
de madrigais, dizia-lhe do melhor modo possível que a beleza dela tinha-me
inspirado um amor profundo e decisivo. Ela não prestava aos meus discursos
senão uma atenção indiferente. Isto desesperava. Insistia, repetia, pedia-lhe
quase o coração. Ela nada. Enfim ofereci-lhe o braço. Percorremos algumas
salas. D. Cecília estava divina de graça, de beleza, e etc... de indiferença.
Se fosse a indiferença somente bem estava, mas houve mais...
— Houve mais?
— Houve. Houve
desengano. Eu disse-lhe que a amava perdidamente; ela respondeu-me
positivamente que não me podia amar. Quase caí. Não lhe disse mais nada e
voltamos para a sala.
— Não me
lembro disso, observou Cecília.
— Lembro-me eu
que fui a vítima. O algoz...
— À ordem! à
ordem! reclamaram os ouvintes.
O narrador
continuou:
— Deixei D.
Cecília na sala e saí. Fui para o jardim. Desesperado, cuidei que o ar e a
solidão me aplacassem o ânimo. Vi através da rama de uns arbustos um ponto de
luz. Era um charuto ao que me parecia, e com o charuto um homem. A noite estava
escuríssima. Caminhei para o lugar em que me parecia estar o homem e o charuto.
Pedi fogo e vi que o charuto me entrava nas mãos. Acendi um charuto e agradeci.
A minha voz foi conhecida pelo meu interlocutor e eu próprio reconheci na voz
que me falava um rapaz que eu conhecera aos salões.
— Abrevie a
história!
— Apoiado!
— É simples.
Contei ao meu interlocutor os motivos da minha presença, e estava calmo,
esperando algumas palavras de consolação, quando me senti agarrado. Procurei
defender-me e lutamos durante alguns minutos, ao som de uma polca que se
executava no interior da casa. Todos compreendem o caso. O meu adversário era
pretendente ao coração de D. Cecília; estava, como eu, desconsolado. Lutamos,
como disse. Nunca mais nos falamos.
— Nunca mais?
— Nunca mais.
— Não me
lembro de nada, nem me constou nada neste sentido, disse Cecília.
— Eu nunca
disse nada a ninguém.
Fora escrever dois
volumes repetir os episódios trágicos, ou cômicos, ou patéticos, que os
ex-adoradores de Cecília traziam para a conversação.
Em uma dessas
práticas íntimas, singelas, trouxe um criado uma carta para Cecília. Era de
Tibúrcio.
Quem era Tibúrcio?
Era o primo de Cecília que partira da corte na noite em que Cecília fizera o
contrato misterioso para independência do coração.
Tibúrcio partira
moço e voltou velho. Nunca dera sinal de si. Não se sabia onde andava nem que
fazia.
Tibúrcio escrevia
de S. Paulo. Dizia que dentro de oito dias estaria na corte. E daí a oito dias
chegou.
A carta dizia:
Minha prima. — Dentro de oito dias lá estarei. Vai aparecer-lhe um
velho. Há que tempo de lá saí!
Andei seca e meca. Ganhei, perdi, tornei a ganhar, e a experiência me
serviu, porque o que ganhei conservo agora e não tenho ideia, nem ânimo de
perdê-lo outra vez.
Que é feito de nossa família? Eu de nada sei. Não procurei ninguém, não
escrevi; acho que fizeram bem em me não escreverem. Com ingrato, ingrato e
meio. Mas eu hei de provar que não fui ingrato.
Adeus. Esta lhe há de ser entregue por C..., meu amigo, que parte
para essa corte. Adeus. — Tibúrcio.
Tibúrcio acompanhou
a carta com intervalo de alguns dias. Era um velho bonito, folgazão, opulento
de carnes e de dinheiro.
Nem Tibúrcio
reconhecia Cecília, nem Cecília reconheceu Tibúrcio. Tão mudados estavam!
Vieram as longas
narrativas do que se houvera passado durante o longo espaço de tempo que se não
viram.
É necessário dizer
que Tibúrcio, quando partira da corte, amava Cecília, sem que para amá-la se
fundasse em nenhum sentimento recíproco.
Cecília foi ao
princípio indiferente... por indiferença. Mais tarde é que veio o pacto
angélico.
Tibúrcio ouviu, com
grande admiração, da boca de Cecília a notícia de que ela nunca se houvera
casado.
E de sua parte
declarou que também se conservara solteiro, adiantando logo a razão disso, que
era não poder levar família para as trabalhosas empresas a que se entregava.
Mas a respeito de
Cecília admirou-se muito. Não a deixara formosa e requestada? Não via ainda que
essa beleza tarde desapareceu?
— Não quis,
respondia Cecília.
— Mas por
quê?...
— Não sei...
não quis.
E, como sempre,
Cecília olhava amorosamente para o anel. Os olhos de Tibúrcio acompanharam os
de Cecília e pousaram na esmeralda que ela trazia no dedo.
— Ah! disse
ele.
E a conversa passou
a outros assuntos.
Insistiram todos em
que Tibúrcio referisse as suas viagens, as suas aventuras, os seus perigos, as
suas fortunas.
— Fora preciso
um ano, disse Tibúrcio.
Com efeito,
Tibúrcio tinha vivido uma vida acidentada. Lutas, perigos, sustos, fortunas,
alternativas de todo o gênero, tudo matizava o fundo do quadro da existência de
Tibúrcio.
Tibúrcio adquirira
parte de sua fortuna em algumas explorações de minas de ouro e de brilhantes.
Durante os dias que
se seguiram ao da chegada dele em casa de Cecília, a família, os restos da
família, e os convivas habituais, divertiram-se muito ouvindo as narrações de
Tibúrcio sobre os acidentes das explorações mineiras.
Quando se esgotou
esse capítulo, Tibúrcio referiu que uma vez fora agarrado pelos bugres perto do
rio Araguaia. Quando caiu nas mãos daqueles bárbaros perdeu até a última gota
de sangue. Viu a morte diante dos olhos. Já os bugres se preparavam para
almoçar aquele bife, quando uma partida de soldados que andava à caça de um
criminoso descobriu o fato e chegou a tempo de salvar Tibúrcio dos estômagos
indígenas.
Outros perigos
correra o primo de Cecília, como o de naufragar em torrentes de rios,
encontrar-se com onças, e outros deste gênero.
O auditório
habitual de Tibúrcio divertia-se muito com estas narrações, e ele por sua parte
sabia referir os tais episódios dando-lhes as cores próprias de comover e
interessar.
Tibúrcio resolvera
ir morar com as duas parentas, e ali se instalou imediatamente.
Todas as noites
havia uma reunião de amigos para tomar chá, conversar e jogar.
Uma noite de chuva,
em mês de junho, debalde se esperaram os convivas. A chuva e o frio não consentiram
que os respeitáveis anciões deixassem os
conchegos do lar, nem mesmo com a sedução das boas horas que se passava em casa
de Cecília.
Foram, pois, os
três parentes obrigados a se privarem naquela noite da companhia dos amigos.
Tomaram chá cedo e
estavam fazendo horas à mesa até que viesse a hora habitual de se recolherem.
Travou-se a
seguinte conversação:
— Ora, prima,
disse Tibúrcio, ainda não lhe contei os tormentos que sofri relativamente ao
coração...
— Ah!
— É verdade.
Lembrei-me muito de você.
— Deveras?
— É verdade.
Não se lembra que eu mais de uma vez lhe confessei o amor que alimentava?
— Lembro-me,
sim.
— Pois saí da
corte com as mais dolorosas impressões. Via que ia para longe e perdia de vista
a mulher que eu ainda nem conhecia de coração. Padeci muito.
— Falar nisso
agora não sei que me parece.
— Parece o que
é, a verdade. Quis matar-me...
— Que tolice!
— Foi o que eu
pensei...
— Morria e eu
ficava.
— Mas o que me
agrada é ver que se eu não esqueci, também você não esqueceu.
— Não, de
certo.
— Mas, de
certo modo?
— Que modo?
— Gentes!
disse a prima viúva. Vocês parecem namorados!
— Mas de que
modo? como apaixonada?
— Sim.
— Que loucura!
— Pelo menos
tenho uma prova.
— Vamos ver a
prova, disse a viúva.
— A prova não
está comigo.
— Está comigo?
perguntou Cecília.
— É verdade.
— Onde?
— Aí, no dedo.
Cecília olhou para
o anel.
— No dedo!
disse ela sem compreender a que podia o primo aludir.
— Esse anel,
disse o primo.
— Este anel?
Que tem este anel?
— Ora, afinal,
disse a prima viúva, vamos saber o que significa este misterioso anel.
Cecília estava
espantada sem compreender.
Tibúrcio continuou:
— Este anel,
sim. É meu. Ou por outra, é seu hoje, mas foi meu, porque o encomendei.
— Mas
explique-se.
— Nas vésperas
de partir da corte quis deixar-lhe uma prova de que o meu amor era verdadeiro e
seria eterno. Encomendei este anel, que o ourives prontificou com o maior
cuidado e zelo. Tinha dois meios de dar-lho: ou introduzir-lho no dedo,
francamente, com a declaração de que era uma lembrança minha que deixara, ou
depositá-lo no seu toucador para que, quando eu já estivesse fora, aquela
lembrança a surpreendesse.
— É romanesco,
disse a viúva.
Cecília nada disse.
Tinha os olhos pregados em Tibúrcio e procurava arrancar-lhe as palavras da
boca.
Tibúrcio
prosseguiu:
— Preferi o
segundo meio por me parecer, como diz a prima, romanesco. Mas, ao executá-lo,
ocorreu-me um terceiro meio. Era o de colocar o anel no seu dedo na hora em que
dormisse, de modo que a surpresa fosse ainda maior.
— Ah! e...
Esta exclamação e
esta conjunção partiram da prima viúva. Cecília tão absorta estava que nada
podia dizer.
— Descansem,
disse Tibúrcio, eu fiz as coisas honestamente. Peitei a mucama para que alta
noite, na ocasião em que a prima dormisse depois da costumada leitura... Ah!
você lia muito romance!
— Adiante!
— Para que
alta noite se aproveitasse do sono em que você estivesse e lhe pusesse o anel.
Assim foi. Vejo agora que conservou o anel. Mas, diga-me, a Teresa nunca lhe
disse nada disto?
— Não, disse
Cecília distraidamente.
— Pois foi
assim. E se quer mais uma prova tire o anel... Nunca o tirou?
— Nunca.
— Pois tire o
anel e veja se não estão gravadas pela parte interior as iniciais do meu nome.
Cecília hesitou
entre a curiosidade de averiguar a asseveração de Tibúrcio e um resto de crença
que tinha nas palavras da visão.
— Tire o anel.
— Mas...
— Tire! Que
receio é esse?
— Esperem, não
tiro por uma razão. Eu não creio no que diz o primo Tibúrcio.
— Por quê?
— Não creio,
mas creio em outra coisa.
— Essa agora!
— É verdade.
E Cecília passou a
referir aos dois parentes todas as circunstâncias da visão, o diálogo que
tivera com ela, a fé em que lhe ficaram as promessas do anjo das donzelas.
— Tal foi,
acrescentou Cecília, a razão por que me não casei. Tinha fé nisto. Quanto a
tirar o anel, disse-me a visão que nunca o fizesse.
Tibúrcio deu uma
gargalhada.
— Ora, prima,
disse ele, pois você quer contestar uma verdade com uma superstição? Ainda acredita
em sonhos!
— Como,
sonhos?
— É evidente.
Isso da visão não passou de um sonho. Coincidiu o sonho com o fato do anel. Mas
você quando acordou no dia seguinte achou-se com um anel no dedo, não devia
fazer outra coisa mais do que averiguar a razão do fenômeno, e não dar crédito
a uma coisa toda de imaginação.
Cecília abanou a
cabeça.
— Pois não
crê? Tire o anel.
Cecília hesitava.
Mas Tibúrcio usou da arma do ridículo, no que foi acompanhado pela prima viúva
de modo que Cecília, com alguma relutância, pálida e trêmula, arrancou o anel
do dedo.
O anel tinha na
parte interna gravadas estas iniciais: T. B.
FIM
COMENTÁRIOS
NARRADOR
E LEITOR: DIÁLOGO EXPLÍCITO NO TEXTO
Este é o primeiro dos contos machadianos em ordem
cronológica de lançamento que apresenta o diálogo com o leitor de forma
explícita. É impressionante a diferença dos outros cinco (estão neste blog
enumerados).
Machado usa um narrador muito perspicaz. Ele, às vezes,
faz de conta que não sabe de detalhes das coisas:
“Que lê ela neste momento? Não sei”
Ele diz não saber, no entanto, observa a personagem
integralmente:
“Todavia deve ser
interessante o enredo, vivas as paixões, porque a fisionomia traduz de minuto a
minuto as impressões aflitivas ou alegres que a leitura lhe vai produzindo.”
NARRADOR
CRITICA ESTILOS DE ROMANCE E CRENDICE
“Provinha este sentimento de duas
coisas: do espírito supersticioso de Cecília, e da natureza das novelas que lhe
davam para ler”
e
“Cecília aprendeu nesses livros que o
amor era uma paixão invencível e funesta”
O fechamento do conto é maravilhoso! Alinhava a um
só tempo as críticas feitas ao longo do enredo à literatura romanesca e às
crendices.
No caso da personagem, ela simplesmente jogou uma
vida inteira fora movida a uma ilusão ligando sonho com leituras românticas.
TEMPO
DA NARRATIVA: TÉCNICAS DE ACELERAÇÃO
“O que é certo é que corriam os dias,
os meses, os anos, sem que nada mudasse a situação de Cecília”
Para contar uma vida desperdiçada pelos devaneios e
decisões de adolescência, o narrador foi acelerando a intervalos contínuos, a
vida fútil e não realizada da personagem Cecília. Contava um evento e acelerava
cinco anos em poucos minutos no texto, depois outros eventos fúteis, amores
desperdiçados, e mais um tempo de vida se passava (lembremos aqui a visão da época,
onde realização para uma mulher era o casamento e os filhos).
“Tem quinze anos...”
“Quando completou vinte anos...”
“Aos vinte e cinco...”
“E os anos
corriam...
Cecília chegou aos trinta e três anos...”
“até que a velhice
de Cecília declarou-se completa...”
ESCRITOR NARRADOR
Olha que frase interna da estória interessante:
“Este (jovem poeta) do meu conto depôs aos pés da
bela insensível a vida, o futuro, a vontade”
NARRADOR DEMIURGO
Se lá no início do conto pareceu que o narrador nem
sabia o nome do livro que Cecília lia – textos romanescos se tinham aos montes
-, aos poucos, no meio da estória, o leitor empírico (real) percebe que tudo não
passa de técnica literária, voltando à ideia do narrador externo demiurgo.
“Mas que se passava nessa natureza de gelo? Cecília
via a felicidade das amigas, era confidente de todas, aconselhava-as ao sentido
de uma prudente reserva, mas nem procurava nem aceitava os ciúmes que lhe
andavam à mão. Todavia mais de uma vez, à noite, no fundo da alcova, a moça
sentia-se só. O coração solitário parece que se não acostumara de todo ao
isolamento a que o votara a dona.”
SÍNTESE CRÍTICA
Dos primeiros seis contos de Machado, pela minha
leitura cronológica de lançamentos, este é o que apresenta mais qualidade.
O final me surpreendeu e fechou o sentido da crítica
abordada no conto em relação aos romances romanescos e românticos e à crendice
que tanto contaminava e prejudicava a inteligência daquela sociedade da corte
fluminense do século XIX.
É impossível não nos lembrarmos do famoso fidalgo
de La Mancha que de tanto ler esses tipos de leituras romanescas pirou:
“(...) tanto naquelas leituras se enfrascou, que
passava as noites de claro em claro e os dias de escuro em escuro, e assim, do
pouco dormir e do muito ler, se lhe secou o cérebro, de maneira que chegou a
perder o juízo” (Dom Quixote De La Mancha, Abril Cultural, 1981)
Nomes na obra machadiana
E, por último, como já disse em outros contos, na
obra de Machado, os nomes não são inocentes e escolhidos à esmo.
Veja o nome da personagem deste conto.
Cecília, segundo o dicionário de nomes próprios,
vem do nome de família romano Caecilius, proveniente da palavra em latim
caecus, que significa “cega”.
Fala sério! O nome que faz referência à falta de
visão é um nome perfeito para uma personagem que abriu mão do amor e de uma
provável completude (haja vista que, “na alcova, se sentia só”) por tomar uma
decisão na adolescência baseada na coincidência de um sonho com uma
casualidade, muito influenciada pela confusão entre a vida ficcional dos
romances que lia e a vida real.
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