CONTOS DE MACHADO DE ASSIS, 1864 (4)
COMENTÁRIOS
Além de não
ter mais tempo para leitura de literatura, ando tão cansado que quando tento
ler acabo cochilando com o livro aberto. Isso tem me deixado bastante
deprimido.
A leitura
de contos pode ser uma alternativa para conseguir ler um pouco. Também é uma
forma de buscar conhecer o repertório gigante de nosso mestre do Cosme Velho.
Como nos
demais contos, há alguns negritos e sublinhados feitos por mim por achar as partes
interessantes.
Nas obras
de Machado, observem sempre os nomes das personagens: não são de forma alguma
casuais. Têm relação com as características das personagens ou carregam a carga
do passado grego, romano, clássico etc.
CONTEXTO DA
OBRA
Machado tem
em seus narradores o hábito de dialogar com o leitor e a leitora. Estava lendo
nos estudos sobre a época em que ele escrevia e fiquei sabendo que na virada do
século XIX para o XX, apenas 18% da população brasileira era alfabetizada e,
desta parcela, somente 2% tinha habilidade para leitura e compreensão de livros.
Daí é fácil
entender o quanto o escritor tinha a intenção (e o dever) de formar e
conscientizar seus leitores para estes serem formadores de opinião.
O conto está
no livro Contos Fluminenses – Obras completas da coleção da Editora
Globo, 1997.
Brigue: foi numa embarcação como essa, de duas velas, que partiu o pobre Simão para o degredo. |
FREI
SIMÃO
Publicado originalmente em Jornal das Famílias 1864
I
Frei Simão era um
frade da ordem dos Beneditinos. Tinha, quando morreu, cinquenta anos em
aparência, mas na realidade trinta e oito. A causa desta velhice prematura
derivava da que o levou ao claustro na idade de trinta anos, e, tanto quanto se
pode saber por uns fragmentos de memórias que ele deixou, a causa era justa.
Era frei Simão de caráter taciturno e
desconfiado. Passava dias inteiros na sua cela, de onde apenas saía na hora do
refeitório e dos ofícios divinos. Não contava amizade alguma no convento,
porque não era possível entreter com ele os preliminares que fundam e
consolidam as afeições.
Em um convento, onde a comunhão das
almas deve ser mais pronta e mais profunda, frei Simão parecia fugir à regra
geral. Um dos noviços pôs-lhe alcunha de urso, que lhe ficou, mas
só entre os noviços, bem entendido. Os frades professos, esses, apesar do
desgosto que o gênio solitário de frei Simão lhes inspirava, sentiam por ele
certo respeito e veneração.
Um dia anuncia-se que frei Simão
adoecera gravemente. Chamaram-se os socorros e prestaram ao enfermo todos os
cuidados necessários. A moléstia era mortal; depois de cinco dias frei Simão
expirou.
Durante estes cinco dias de moléstia,
a cela de frei Simão esteve cheia de frades. Frei Simão não disse uma palavra
durante esses cinco dias; só no último, quando se aproximava o minuto fatal,
sentou-se no leito, fez chamar para mais perto o abade, e disse-lhe ao ouvido
com voz sufocada e em tom estranho:
— Morro odiando a humanidade!
O abade recuou até a parede ao ouvir
estas palavras, e no tom em que foram ditas. Quanto a frei Simão, caiu sobre o
travesseiro e passou à eternidade.
Depois de feitas ao irmão finado as
honras que se lhe deviam, a comunidade perguntou ao seu chefe que palavras
ouvira tão sinistras que o assustaram. O abade referiu-as, persignando-se. Mas
os frades não viram nessas palavras senão um segredo do passado, sem dúvida
importante, mas não tal que pudesse lançar o terror no espírito do abade. Este
explicou-lhes a ideia que tivera quando ouviu as palavras de frei Simão, no tom
em que foram ditas, e acompanhadas do olhar com que o fulminou: acreditara que
frei Simão estivesse doido; mais ainda, que tivesse entrado já doido para a
ordem. Os hábitos da solidão e taciturnidade a que se votara o frade pareciam
sintomas de uma alienação mental de caráter brando e pacífico; mas durante oito
anos parecia impossível aos frades que frei Simão não tivesse um dia revelado
de modo positivo a sua loucura; objetaram isso ao abade; mas este persistia na
sua crença.
Entretanto procedeu-se ao inventário
dos objetos que pertenciam ao finado, e entre eles achou-se um rolo de papéis
convenientemente enlaçados, com este rótulo: Memórias que há de
escrever frei Simão de Santa Águeda, frade beneditino.
Este rolo de papéis foi um grande
achado para a comunidade curiosa. Iam finalmente penetrar alguma coisa no véu
misterioso que envolvia o passado de frei Simão, e talvez confirmar as
suspeitas do abade. O rolo foi aberto e lido para todos.
Eram, pela maior parte, fragmentos
incompletos, apontamentos truncados e notas insuficientes; mas de tudo junto
pôde-se colher que realmente frei Simão estivera louco durante certo tempo.
O autor desta narrativa despreza
aquela parte das Memórias que não tiver absolutamente
importância; mas procura aproveitar a que for menos inútil ou menos obscura.
II
As notas de frei
Simão nada dizem do lugar do seu nascimento nem do nome de seus pais. O que se
pôde saber dos seus princípios é que, tendo concluído os estudos preparatórios,
não pôde seguir a carreira das letras, como desejava, e foi obrigado a entrar
como guarda-livros na casa comercial de seu pai.
Morava então em casa de seu pai uma
prima de Simão, órfã de pai e mãe, que haviam por morte deixado ao pai de Simão
o cuidado de a educarem e manterem. Parece que os cabedais deste deram para
isto. Quanto ao pai da prima órfã, tendo sido rico, perdera tudo ao jogo e nos
azares do comércio, ficando reduzido à última miséria.
A órfã chamava-se Helena; era bela,
meiga e extremamente boa. Simão, que se educara com ela, e juntamente vivia
debaixo do mesmo teto, não pôde resistir às elevadas qualidades e à beleza de
sua prima. Amaram-se. Em seus sonhos de futuro contavam ambos o casamento,
coisa que parece mais natural do mundo para corações amantes.
Não tardou muito que os pais de Simão
descobrissem o amor dos dois. Ora é preciso dizer, apesar de não haver
declaração formal disto nos apontamentos do frade, é preciso dizer que os
referidos pais eram de um egoísmo descomunal. Davam de boa vontade o pão da
subsistência a Helena; mas lá casar o filho com a pobre órfã é que não podiam
consentir. Tinham posto a mira em uma herdeira rica, e dispunham de si para si
que o rapaz se casaria com ela.
Uma tarde, como estivesse o rapaz a
adiantar a escrituração do livro-mestre, entrou no escritório o pai com ar
grave e risonho ao mesmo tempo, e disse ao filho que largasse o trabalho e o
ouvisse. O rapaz obedeceu. O pai falou assim:
— Vais partir para a província
de ***. Preciso mandar umas cartas ao meu correspondente Amaral, e como sejam
elas de grande importância, não quero confiá-las ao nosso desleixado correio. Queres
ir no vapor ou preferes o nosso brigue?
Esta pergunta era feita com grande
tino.
Obrigado a responder-lhe, o velho
comerciante não dera lugar a que seu filho apresentasse objeções.
O rapaz enfiou, abaixou os olhos e
respondeu:
— Vou onde meu pai quiser.
O pai agradeceu mentalmente a
submissão do filho, que lhe poupava o dinheiro da passagem no vapor, e foi
muito contente dar parte à mulher de que o rapaz não fizera objeção alguma.
Nessa noite os dois amantes tiveram
ocasião de encontrar-se sós na sala de jantar.
Simão contou a Helena o que se
passara. Choraram ambos algumas lágrimas furtivas, e ficaram na esperança de
que a viagem fosse de um mês, quando muito.
À mesa do chá, o pai de Simão
conversou sobre a viagem do rapaz, que devia ser de poucos dias. Isto reanimou
as esperanças dos dois amantes. O resto da noite passou-se em conselhos da
parte do velho ao filho sobre a maneira de portar-se na casa do correspondente.
Às dez horas, como de costume, todos se recolheram aos aposentos.
Os dias passaram-se depressa.
Finalmente raiou aquele em que devia partir o brigue. Helena saiu de seu quarto
com os olhos vermelhos de chorar. Interrogada bruscamente pela tia, disse que
era uma inflamação adquirida pelo muito que lera na noite anterior. A tia
prescreveu-lhe abstenção da leitura e banhos de água de malvas.
Quanto ao tio, tendo chamado Simão,
entregou-lhe uma carta para o correspondente, e abraçou-o. A mala e um criado
estavam prontos. A despedida foi triste. Os dois pais sempre choraram alguma coisa, a rapariga muito.
Quanto a Simão, levava os olhos secos
e ardentes. Era refratário às lágrimas; por isso mesmo padecia mais.
O brigue partiu. Simão, enquanto pôde
ver terra, não se retirou de cima; quando finalmente se fecharam de todo as paredes
do cárcere que anda, na frase pitoresca de Ribeyrolles, Simão desceu ao seu
camarote, triste e com o coração apertado. Havia como um pressentimento que lhe
dizia interiormente ser impossível tornar a ver sua prima. Parecia que ia para
um degredo.
Chegando ao lugar do seu destino,
procurou Simão o correspondente de seu pai e entregou-lhe a carta. O sr. Amaral
leu a carta, fitou o rapaz e, depois de algum silêncio, disse-lhe, volvendo a
carta:
— Bem, agora é preciso esperar
que eu cumpra esta ordem de seu pai. Entretanto venha morar para a minha casa.
— Quando poderei voltar?
perguntou Simão.
— Em poucos dias, salvo se as
coisas se complicarem.
Este salvo, posto na boca
de Amaral como incidente, era a oração principal. A carta do pai de Simão
versava assim:
Meu caro Amaral,
Motivos ponderosos me obrigam a mandar meu filho desta cidade. Retenha-o por lá como puder. O pretexto da viagem é ter eu necessidade de ultimar alguns negócios com você, o que dirá ao pequeno, fazendo-lhe sempre crer que a demora é pouca ou nenhuma. Você, que teve na sua adolescência a triste ideia de engendrar romances, vá inventando circunstâncias e ocorrências imprevistas, de modo que o rapaz não me torne cá antes de segunda ordem. Sou, como sempre, etc.
III
Passaram-se dias e
dias, e nada de chegar o momento de voltar à casa paterna. O ex-romancista era
na verdade fértil, e não se cansava de inventar pretextos que deixavam
convencido o rapaz.
Entretanto, como o espírito dos
amantes não é menos engenhoso que o dos romancistas, Simão e Helena acharam
meio de se escreverem, e deste modo podiam consolar-se da ausência, com
presença das letras e do papel. Bem diz Heloísa
que a arte de escrever foi inventada por alguma amante separada do seu amante.
Nestas cartas juravam-se os dois sua eterna fidelidade.
No fim de dois meses de espera
baldada e de ativa correspondência, a tia de Helena surpreendeu uma carta de
Simão. Era a vigésima, creio eu. Houve grande temporal em casa. O tio, que
estava no escritório, saiu precipitadamente e tomou conhecimento do negócio. O
resultado foi proscrever de casa tinta, penas e papel, e instituir vigilância
rigorosa sobre a infeliz rapariga.
Começaram pois a escassear as cartas
ao pobre deportado. Inquiriu a causa disto em cartas choradas e compridas; mas
como o rigor fiscal da casa de seu pai adquiria proporções descomunais,
acontecia que todas as cartas de Simão iam parar às mãos do velho, que, depois
de apreciar o estilo amoroso de seu filho, fazia queimar as ardentes epístolas.
Passaram-se dias e meses. Carta de
Helena, nenhuma. O correspondente ia esgotando a veia inventadora, e já não sabia como reter finalmente o rapaz.
Chega uma carta a Simão. Era letra do
pai. Só diferençava das outras que recebia do velho em ser esta mais longa,
muito mais longa. O rapaz abriu a carta, e leu trêmulo e pálido. Contava nesta
carta o honrado comerciante que a Helena, a boa rapariga que ele destinava a
ser sua filha casando-se com Simão, a boa Helena tinha morrido. O velho copiara
algum dos últimos necrológios que vira nos jornais, e ajuntara algumas
consolações de casa. A última consolação foi dizer-lhe que embarcasse e fosse
ter com ele.
O período final da carta dizia:
Assim como assim,
não se realizam os meus negócios; não te pude casar com Helena, visto que Deus
a levou. Mas volta, filho, vem; poderás consolar-te casando com outra, a filha
do conselheiro ***. Está moça feita e é um bom partido. Não te desalentes; lembra-te
de mim.
O pai de Simão não conhecia bem o
amor do filho, nem era grande águia para avaliá-lo, ainda que o conhecesse.
Dores tais não se consolam com uma carta nem com um casamento. Era melhor
mandá-lo chamar, e depois preparar-lhe a notícia; mas dada assim friamente em
uma carta, era expor o rapaz a uma morte certa.
Ficou Simão vivo em corpo e morto
moralmente, tão morto que por sua própria ideia foi dali procurar uma
sepultura. Era melhor dar aqui alguns dos papéis escritos por Simão
relativamente ao que sofreu depois da carta; mas há muitas falhas, e eu não
quero corrigir a exposição ingênua e sincera do frade.
A sepultura que Simão escolheu foi um
convento. Respondeu ao pai que agradecia a filha do conselheiro, mas que
daquele dia em diante pertencia ao serviço de Deus.
O pai ficou maravilhado. Nunca
suspeitou que o filho pudesse vir a ter semelhante resolução. Escreveu às
pressas para ver se o desviava da ideia; mas não pôde conseguir.
Quanto ao correspondente, para quem
tudo se embrulhava cada vez mais, deixou o rapaz seguir para o claustro,
disposto a não figurar em um negócio do qual nada realmente sabia.
IV
Frei Simão de Santa
Águeda foi obrigado a ir à província natal em missão religiosa, tempos depois
dos fatos que acabo de narrar.
Preparou-se e embarcou.
A missão não era na capital, mas no
interior. Entrando na capital, pareceu-lhe dever ir visitar seus pais. Estavam
mudados física e moralmente. Era com certeza a dor e o remorso de terem
precipitado seu filho à resolução que tomou. Tinham vendido a casa comercial e
viviam de suas rendas.
Receberam o filho com alvoroço e
verdadeiro amor. Depois das lágrimas e das consolações, vieram ao fim da viagem
de Simão.
— A que vens tu, meu filho?
— Venho cumprir uma missão do
sacerdócio que abracei. Venho pregar, para que o rebanho do Senhor não se
arrede nunca do bom caminho.
— Aqui na capital?
— Não, no interior. Começo pela
vila de ***.
Os dois velhos estremeceram; mas
Simão nada viu. No dia seguinte partiu Simão, não sem algumas instâncias de
seus pais para que ficasse. Notaram eles que seu filho nem de leve tocara em
Helena. Também eles não quiseram magoá-lo falando em tal assunto.
Daí a dias, na vila de que falara
frei Simão, era um alvoroço para ouvir as prédicas do missionário.
A velha igreja do lugar estava
atopetada de povo.
À hora anunciada, frei Simão subiu ao
púlpito e começou o discurso religioso. Metade do povo saiu aborrecido no meio
do sermão. A razão era simples. Avezado à pintura viva dos caldeirões de Pedro
Botelho e outros pedacinhos de ouro da maioria dos pregadores, o povo não podia
ouvir com prazer a linguagem simples, branda, persuasiva, a que serviam de
modelo as conferências do fundador da nossa religião.
O pregador estava a terminar, quando
entrou apressadamente na igreja um par, marido e mulher: ele, honrado lavrador,
meio remediado com o sítio que possuía e a boa vontade de trabalhar; ela,
senhora estimada por suas virtudes, mas de uma melancolia invencível.
Depois de tomarem água-benta,
colocaram-se ambos em lugar de onde pudessem ver facilmente o pregador.
Ouviu-se então um grito, e todos
correram para a recém-chegada, que acabava de desmaiar. Frei Simão teve de
parar o seu discurso, enquanto se punha termo ao incidente. Mas, por uma aberta
que a turba deixava, pôde ele ver o rosto da desmaiada.
Era Helena.
No manuscrito do frade há uma série de reticências dispostas em oito
linhas. Ele próprio não sabe o que se passou. Mas o que se passou foi que, mal
conhecera Helena, continuou o frade o discurso. Era então outra coisa: era um
discurso sem nexo, sem assunto, um verdadeiro delírio. A consternação foi geral.
V
O delírio de frei
Simão durou alguns dias. Graças aos cuidados, pôde melhorar, e pareceu a todos
que estava bom, menos ao médico, que queria continuar a cura. Mas o frade disse
positivamente que se retirava ao convento, e não houve forças humanas que o detivessem.
O leitor compreende naturalmente que
o casamento de Helena fora obrigado pelos tios.
A pobre senhora não resistiu à
comoção. Dois meses depois morreu, deixando inconsolável o marido, que a amava
com veras.
Frei Simão, recolhido ao convento,
tornou-se mais solitário e taciturno. Restava-lhe ainda um pouco da alienação.
Já conhecemos o acontecimento de sua
morte e a impressão que ela causara ao abade.
A cela de frei Simão de Santa Águeda
esteve muito tempo religiosamente fechada. Só se abriu, algum tempo depois,
para dar entrada a um velho secular, que por esmola alcançou do abade acabar os
seus dias na convivência dos médicos da alma. Era o pai de Simão. A mãe tinha
morrido.
Foi crença, nos últimos anos de vida
deste velho, que ele não estava menos doido que frei Simão de Santa Águeda.
FIM
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