Machado de Assis já no início do século XX (1905). |
CONTOS DE MACHADO DE ASSIS, 1864 (5)
COMENTÁRIOS
Estou lendo um estudo complexo e profundo sobre os
leitores de Machado de Assis. É um livro de autoria de Hélio de Seixas Guimarães,
lançado pela Edusp em 2004.
O estudo do jovem Hélio Guimarães é um mundo. Das poucas
páginas que li, fiquei pensando em todos os romances, contos e crônicas que já
li de Machado e percebi o quanto é verdadeiro o que o autor do estudo nos fala
sobre a importância e o papel central do leitor(a) empírico (real), o provável
e o ficcional na obra machadiana.
Também é interessante o diálogo entre narradores e
narratários na obra do mestre.
Este conto não tem a figura do leitor como sujeito
questionado diretamente pelo narrador. É um conto de discurso direto
tradicional.
A tragédia contada é bastante exagerada para meus padrões
do século XXI e para um leitor não religioso. Mas pensemos nos leitores
contemporâneos a Machado e daquele Brasil de 1864 e está feita a ambientação da
estória.
Bom, os negritos e sublinhados no texto são marcas feitas por mim.
É isso!
VIRGINIUS
– Machado de Assis
Publicado originalmente em Jornal das
Famílias 1864
I
Não me correu
tranquilo o S. João de 185... Duas semanas antes do dia em que a Igreja celebra
o evangelista, recebi pelo correio o seguinte bilhete, sem assinatura e de letra
desconhecida:
O dr. *** é convidado a ir à vila de... tomar conta de um processo. O
objeto é digno do talento e das habilitações do advogado. Despesas e honorários
ser-lhe-ão satisfeitos antecipadamente, mal puser pé no estribo. O réu está na
cadeia da mesma vila e chama-se Julião. Note que o dr. é convidado a ir
defender o réu.
Li e reli este
bilhete; voltei-o em todos os sentidos; comparei a letra com todas as letras
dos meus amigos e conhecidos... Nada pude descobrir.
Entretanto,
picava-me a curiosidade. Luzia-me um romance através daquele misterioso e
anônimo bilhete. Tomei uma resolução definitiva. Ultimei uns negócios, dei de
mão outros, e oito dias depois de receber o bilhete tinha à porta um cavalo e
um camarada para seguir viagem. No momento em que me dispunha a sair, entrou-me
em casa um sujeito desconhecido, e entregou-me um rolo de papel contendo uma
avultada soma, importância aproximada das despesas e dos honorários. Recusei
apesar das instâncias, montei a cavalo e parti.
Só depois de ter
feito algumas léguas é que me lembrei de que justamente na vila a que eu ia
morava um amigo meu, antigo companheiro da Academia, que se votara, oito anos
antes, ao culto da deusa Ceres como se diz em linguagem poética.
Poucos dias depois
apeava eu à porta do referido amigo. Depois de entregar o cavalo aos cuidados
do camarada, entrei para abraçar o meu antigo companheiro de estudos, que me
recebeu alvoroçado e admirado. Depois da primeira expansão, apresentou-me ele à
sua família, composta de mulher e uma filhinha, esta retrato daquela, e aquela
retrato dos anjos.
Quanto ao fim da
minha viagem, só lho expliquei depois que me levou para a sala mais quente da
casa, onde foi ter comigo uma chávena de excelente café. O tempo estava frio;
lembro que estávamos em junho. Envolvi-me no meu capote, e a cada gota de café
que tomava fazia uma revelação.
— A que vens?
a que vens? perguntava-me ele.
— Vais
sabê-lo. Creio que há um romance para deslindar. Há quinze dias recebi no meu
escritório, na corte, um bilhete anônimo em que se me convidava com instância a
vir a esta vila para tomar conta de uma defesa. Não pude conhecer a letra; era
desigual e trêmula, como escrita por mão cansada...
— Tens o
bilhete contigo?
— Tenho.
Tirei do bolso o
misterioso bilhete e entreguei-o aberto ao meu amigo. Ele, depois de lê-lo,
disse:
— É a letra
de Pai de todos.
— Quem é Pai
de todos?
— É um
fazendeiro destas paragens, o velho Pio. O povo dá-lhe o nome de Pai de
todos, porque o velho Pio o é na verdade.
— Bem dizia eu
que há romance no fundo!... Que faz esse velho para que lhe dêem semelhante
título?
— Pouca coisa.
Pio é, por assim dizer, a justiça e a caridade fundidas em uma só pessoa. Só as
grandes causas vão ter às autoridades judiciárias, policiais ou municipais; mas
tudo o que não sai de certa ordem é decidido na fazenda de Pio, cuja sentença
todos acatam e cumprem. Seja ela contra Pedro ou contra Paulo, Paulo e Pedro
submetem-se, como se fora uma decisão divina. Quando dois contendores saem da
fazenda de Pio, saem amigos. É caso de consciência aderir ao julgamento
de Pai de todos.
— Isso é como
juiz. O que é ele como homem caridoso?
— A fazenda de
Pio é o asilo dos órfãos e dos pobres. Ali se encontra o que é necessário à
vida: leite e instrução às crianças, pão e sossego aos adultos. Muitos
lavradores nestas seis léguas cresceram e tiveram princípio de vida na fazenda
de Pio. É a um tempo Salomão e S. Vicente de Paulo.
Engoli a última
gota de café, e fitei no meu amigo olhos incrédulos.
— Isto é
verdade? perguntei.
— Pois
duvidas?
— É que me dói
sair tantas léguas da corte, onde esta história encontraria incrédulos, para
vir achar neste recanto do mundo aquilo que devia ser comum em toda a parte.
— Põe de parte
essas reflexões filosóficas. Pio não é um mito: é uma criatura de carne e osso;
vive como vivemos; tem dois olhos, como tu e eu...
— Então esta
carta é dele?
— A letra é.
— A fazenda
fica perto?
O meu amigo
levou-me à janela.
— Fica daqui a
um quarto de légua, disse. Olha, é por detrás daquele morro.
Nisto passava por
baixo da janela um preto montado em uma mula, sobre cujas ancas saltavam duas
canastras. O meu amigo debruçou-se e perguntou ao negro:
— Teu senhor
está em casa?
— Está, sim,
sr.; mas vai sair.
O negro foi
caminho, e nós saímos da janela.
— É escravo de
Pio?
— Escravo é o
nome que se dá; mas Pio não tem escravos, tem amigos. Olham-no todos como se
fora um Deus. É que em parte alguma houve nunca mais brando e cordial
tratamento a homens escravizados. Nenhum dos instrumentos de ignomínia que por
aí se aplicam para corrigi-los existem na fazenda de Pio. Culpa capital ninguém
comete entre os negros da fazenda; a alguma falta venial que haja, Pio aplica
apenas uma repreensão tão cordial e tão amiga, que acaba por fazer chorar o
delinquente. Ouve mais: Pio estabeleceu entre os seus escravos uma espécie de
concurso que permite a um certo número libertar-se todos os anos. Acreditarás
tu que lhes é indiferente viver livres ou escravos na fazenda, e que esse
estímulo não decide nenhum deles, sendo que, por natural impulso, todos se
portam dignos de elogios?
O meu amigo
continuou a desfiar as virtudes do fazendeiro. Meu espírito apreendia-se cada
vez mais de que eu ia entrar em um romance. Finalmente o meu amigo dispunha-se
a contar-me a história do crime em cujo conhecimento devia eu entrar daí a
poucas horas. Detive-o.
— Não,
disse-lhe, deixa-me saber de tudo por boca do próprio réu. Depois compararei
com o que me contarás.
— É melhor.
Julião é inocente...
— Inocente?
— Quase.
Minha curiosidade
estava excitada ao último ponto. Os autos não me tinham tirado o gosto pelas
novelas, e eu achava-me feliz por encontrar no meio da prosa judiciária, de que
andava cercado, um assunto digno da pena de um escritor.
— Onde é a
cadeia? perguntei.
— É perto,
respondeu-me; mas agora é quase noite; melhor é que descanses; amanhã é tempo.
Atendi a este
conselho. Entrou nova porção de café. Tomamo-lo entre recordações do passado, que muitas eram. Juntos vimos
florescer as primeiras ilusões, e juntos vimos dissiparem-se as últimas. Havia
de que encher, não uma, mas cem noites. Aquela passou-se rápida, e mais ainda
depois que a família toda veio tomar parte em nossa íntima confabulação. Por
uma exceção, de que fui causa, a hora de recolher foi a meia-noite.
— Como é doce
ter um amigo! dizia eu pensando no Conde de Maistre, e retirando-me para o
quarto que me foi destinado.
II
No dia seguinte,
ainda vinha rompendo a manhã, já eu me achava de pé. Entrou no meu quarto um
escravo com um grande copo de leite tirado minutos antes. Em poucos goles o
devorei. Perguntei pelo amigo; disse-me o escravo que já se achava de pé.
Mandei-o chamar.
— Será cedo
para ir à cadeia? perguntei mal o vi assomar à porta do quarto.
— Muito cedo.
Que pressa tamanha! É melhor aproveitarmos a manhã, que está fresca, e irmos
dar um passeio. Passaremos pela fazenda de Pio.
Não me desagradou a
proposta. Acabei de vestir-me e saímos ambos. Duas mulas nos esperavam à
cancela, espertas e desejosas de trotar. Montamos e partimos.
Três horas depois,
já quando o sol dissipara as nuvens de neblina que cobriam os morros como
grandes lençóis, estávamos de volta, tendo eu visto a bela casa e as
esplêndidas plantações da fazenda do velho Pio. Foi este o assunto do almoço.
Enfim, dado ao
corpo o preciso descanso, e alcançada a necessária licença, dirigi-me à cadeia
para falar ao réu Julião.
Sentado em uma sala
onde a luz entrava escassamente, esperei que chegasse o misterioso delinquente.
Não se demorou muito. No fim de um quarto de hora estava diante de mim. Dois
soldados ficaram à porta.
Mandei sentar o
preso, e, antes de entrar em interrogatório, empreguei uns cinco minutos em
examiná-lo.
Era um homem
trigueiro, de mediana estatura, magro, débil de forças físicas, mas com uma
cabeça e um olhar indicativos de muita energia moral e alentado ânimo.
Tinha um ar de
inocência, mas não da inocência abatida e receosa; parecia antes que se
glorificava com a prisão, e afrontava a justiça humana, não com a impavidez do
malfeitor, mas com a daquele que confia na justiça divina.
Passei a
interrogá-lo, começando pela declaração de que eu ia para defendê-lo. Disse-lhe
que nada ocultasse dos acontecimentos que o levaram à prisão; e ele, com uma
rara placidez de ânimo, contou-me toda a história do seu crime.
Julião fora um
daqueles a quem a alma caridosa de Pio dera sustento e trabalho. Suas boas
qualidades, a gratidão, o amor, o respeito com que falava e adorava o protetor,
não ficaram sem uma paga valiosa. Pio, no fim de certo tempo, deu a Julião um
sítio que ficava pouco distante da fazenda. Para lá fora morar Julião com uma
filha menor, cuja mãe morrera em consequência dos acontecimentos que levaram
Julião a recorrer à proteção do fazendeiro.
Tinha a pequena
sete anos. Era, dizia Julião, a mulatinha mais formosa daquelas dez léguas em
redor. Elisa, era o nome da pequena, completava a trindade do culto de Julião,
ao lado de Pio e da memória da mãe finada.
Laborioso por
necessidade e por gosto, Julião bem depressa viu frutificar o seu trabalho.
Ainda assim não descansava. Queria, quando morresse, deixar um pecúlio à filha.
Morrer sem deixá-la amparada era o sombrio receio que o perseguia. Podia acaso
contar com a vida do fazendeiro esmoler?
Este tinha um
filho, mais velho três anos que Elisa. Era um bom menino, educado sob a
vigilância de seu pai, que desde os tenros anos inspirava-lhe aqueles
sentimentos a que devia a sua imensa popularidade.
Carlos e Elisa
viviam quase sempre juntos, naquela comunhão da infância que não conhece
desigualdades nem condições. Estimavam-se deveras, a ponto de sentirem
profundamente quando foi necessário a Carlos ir cursar as primeiras aulas.
Trouxe o tempo as
divisões, e anos depois, quando Carlos apeou à porta da fazenda com uma carta
de bacharel na algibeira, uma esponja se passara sobre a vida anterior. Elisa,
já mulher, podia avaliar os nobres esforços de seu pai, e concentrara todos os
afetos de sua alma no mais respeitoso amor filial. Carlos era homem. Conhecia
as condições da vida social, e desde os primeiros gestos mostrou que abismo
separava o filho do protetor da filha do protegido.
O dia da volta de
Carlos foi dia de festa na fazenda do velho Pio. Julião tomou parte na alegria
geral, como toda a gente, pobre ou remediada, dos arredores. E a alegria não
foi menos pura em nenhum: todos sentiam que a presença do filho do fazendeiro era
a felicidade comum.
Passaram-se os
dias. Pio não se animava a separar-se de seu filho para que este seguisse uma
carreira política, administrativa ou judiciária. Entretanto, notava-lhe muitas
diferenças em comparação com o rapaz que, anos antes, lhe saíra de casa. Nem ideias,
nem sentimentos, nem hábitos eram os mesmos. Cuidou que fosse um resto da vida
escolástica, e esperou que a diferença da atmosfera que voltava a respirar e o
espetáculo da vida simples e chã da fazenda o restabelecessem.
O que o magoava
sobretudo é que o filho bacharel não buscasse os livros, onde pudesse,
procurando novos conhecimentos, entreter uma necessidade indispensável para o
gênero de vida que ia encetar. Carlos não tinha mais que uma ocupação e uma
distração: a caça. Levava dias e dias a correr o mato em busca de animais para
matar, e nisso fazia consistir todos os cuidados, todos os pensamentos, todos
os estudos.
Ao meio-dia era
certo vê-lo chegar ao sítio de Julião, e aí descansar um bocado, conversando
sobranceiro com a filha do infatigável lavrador. Este chegava, trocava algumas
palavras de respeitosa estima com o filho de Pio, oferecia-lhe parte do seu
modesto jantar, que o moço não aceitava, e discorria, durante a refeição, sobre
os objetos relativos à caça.
Passavam as coisas
assim sem alteração de natureza alguma.
Um dia, ao entrar
em casa para jantar, Julião notou que sua filha parecia triste. Reparou, e
viu-lhe os olhos vermelhos de lágrimas. Perguntou o que era. Elisa respondeu
que lhe doía a cabeça; mas durante o jantar, que foi silencioso, Julião
observou que sua filha enxugava furtivamente algumas lágrimas. Nada disse; mas,
terminado o jantar, chamou-a para junto de si, e com palavras brandas e amigas
exigiu-lhe que dissesse o que tinha. Depois de muita relutância, Elisa falou:
— Meu pai, o
que eu tenho é simples. O sr. Carlos, em quem comecei a notar mais amizade que
ao princípio, declarou-me hoje que gostava de mim, que eu devia ser dele, que
só ele me poderia dar tudo quanto eu desejasse, e muitas outras coisas que eu
nem pude ouvir, tal foi o espanto com que ouvi as suas primeiras palavras.
Declarei-lhe que não pensasse coisas tais. Insistiu; repeli-o... Então, tomando
um ar carrancudo, saiu, dizendo-me:
— Hás de ser
minha!
Julião estava
atônito. Inquiriu sua filha sobre todas as particularidades da conversa
referida. Não lhe restava dúvida acerca dos maus intentos de Carlos. Mas como
de um tão bom pai pudera sair tão mau filho? perguntava ele. E esse próprio
filho não era bom antes de ir para fora? Como exprobrar-lhe a sua má ação? E
poderia fazê-lo? Como evitar a ameaça? Fugir do lugar em que morava o pai não
era mostrar-se ingrato? Todas estas reflexões passaram pelo espírito de Julião.
Via o abismo a cuja borda estava, e não sabia como escapar-lhe.
Finalmente, depois
de animar e tranquilizar sua filha, Julião saiu, de plano feito, na direção da
fazenda, em busca de Carlos.
Este, rodeado por
alguns escravos, fazia limpar várias espingardas de caça. Julião, depois de
cumprimentá-lo alegremente, disse que lhe queria falar em particular. Carlos
estremeceu; mas não podia deixar de ceder.
— Que me
queres, Julião? disse depois de se afastar um pouco do grupo.
Julião respondeu:
— Sr. Carlos,
venho pedir-lhe uma coisa, por alma de sua mãe!... Deixe minha filha sossegada.
— Mas que lhe
fiz eu? titubeou Carlos.
— Oh! não
negue, porque eu sei.
— Sabe o quê?
— Sei da sua
conversa de hoje. Mas o que passou, passou. Fico sendo seu amigo, mais ainda,
se me não perseguir a pobre filha que Deus me deu... Promete?
Carlos esteve calado
alguns instantes. Depois:
— Basta,
disse; confesso-te, Julião, que era uma loucura minha de que me arrependo. Vai
tranquilo: respeitarei tua filha como se fosse morta.
Julião, na sua
alegria, quase beijou as mãos de Carlos. Correu à casa e referiu a sua filha a
conversa que tivera com o filho de Pai de todos. Elisa não só por
si como por seu pai, estimou o pacífico desenlace.
Tudo parecia ter
voltado à primeira situação. As visitas de Carlos eram feitas nas horas em que
Julião se achava em casa, e além disso, a presença de uma parenta velha,
convidada por Julião, parecia tornar impossível nova tentativa de parte de
Carlos.
Uma tarde, quinze
dias depois do incidente que narrei acima, voltava Julião da fazenda do velho
Pio. Era já perto da noite. Julião caminhava vagarosamente, pensando no que lhe
faltaria ainda para completar o pecúlio de sua filha. Nessas divagações, não
reparou que anoitecera. Quando deu por si, ainda se achava umas boas braças
distante de casa. Apressou o passo. Quando se achava mais perto, ouviu uns
gritos sufocados. Deitou a correr e penetrou no terreiro que circundava a casa.
Todas as janelas estavam fechadas; mas os gritos continuavam cada vez mais
angustiosos. Um vulto passou-lhe pela frente e dirigiu-se para os fundos.
Julião quis segui-lo; mas os gritos eram muitos, e de sua filha. Com uma força
difícil de crer em corpo tão pouco robusto, conseguiu abrir uma das janelas.
Saltou, e eis o que viu:
A parenta que
convidara a tomar conta da casa estava no chão, atada, amordaçada, exausta. Uma
cadeira quebrada, outras em desordem.
— Minha filha!
exclamou ele.
E atirou-se para o
interior.
Elisa debatia-se
nos braços de Carlos, mas já sem forças nem esperanças de obter misericórdia.
No momento em que
Julião entrava por uma porta, entrava por outra um indivíduo mal conceituado no
lugar, e até conhecido por assalariado nato de todas as violências. Era o vulto
que Julião vira no terreiro. E outros haviam ainda, que apareceram a um sinal
dado pelo primeiro, mal Julião entrou no lugar em que se dava o triste conflito
da inocência com a perversidade.
Julião teve tempo
de arrancar Elisa dos braços de Carlos. Cego de raiva, travou de uma cadeira e
ia atirar-lha, quando os capangas, entrados a este tempo, o detiveram.
Carlos voltara a si
da surpresa que lhe causara a presença de Julião. Recobrando o sangue-frio,
cravou os olhos odientos no desventurado pai, e disse-lhe com voz sumida:
— Hás de
pagar-me!
Depois, voltando-se
para os ajudantes das suas façanhas, bradou:
— Amarrem-no!
Em cinco minutos
foi obedecido. Julião não podia lutar contra cinco.
Carlos e quatro
capangas saíram. Ficou um de vigia.
Uma chuva de
lágrimas rebentou dos olhos de Elisa. Doía-lhe na alma ver seu pai atado
daquele modo. Não era já o perigo a que escapara o que a comovia; era não poder
abraçar seu pai livre e feliz. E por que estaria atado? Que intentava Carlos
fazer? Matá-lo? Estas lúgubres e aterradoras ideias passaram rapidamente pela
cabeça de Elisa. Entre lágrimas comunicou-as a Julião.
Este, calmo, frio,
impávido, tranquilizou o espírito de sua filha, dizendo-lhe que Carlos poderia
ser tudo, menos um assassino.
Seguiram-se alguns
minutos de angustiosa espera. Julião olhava para sua filha e parecia refletir.
Depois de algum tempo, disse:
— Elisa, tens
realmente a tua desonra por uma grande desgraça?
— Oh, meu pai!
exclamou ela.
— Responde: se
te faltasse a pureza que recebeste do céu, considerar-te-ia a mais infeliz de
todas as mulheres?
— Sim, sim,
meu pai!
Julião calou-se.
Elisa chorou ainda.
Depois voltou-se para a sentinela deixada por Carlos e quis implorar-lhe
misericórdia. Foi atalhada por Julião.
— Não peças
nada, disse este. Só há um protetor para os infelizes: é Deus. Há outro depois
dele; mas esse está longe... Ó Pai de todos, que filho te deu o
Senhor!...
Elisa voltou para
junto de seu pai.
— Chega-te
para mais perto, disse este.
Elisa obedeceu.
Julião tinha os
braços atados; mas podia mover, ainda que pouco, as mãos. Procurou afagar
Elisa, tocando-lhe as faces e beijando-lhe a cabeça. Ela inclinou-se e escondeu
o rosto no peito de seu pai.
A sentinela não
dava fé do que se passava. Depois de alguns minutos do abraço de Elisa e
Julião, ouviu-se um grito agudíssimo. A sentinela correu aos dois. Elisa caíra
completamente banhada em sangue.
Julião tinha
procurado a custo apoderar-se de uma faca de caça deixada por Carlos sobre uma
cadeira. Apenas o conseguiu, cravou-a no peito de Elisa. Quando a sentinela
correu para ele, não teve tempo de evitar o segundo golpe, com que Julião tornou
mais profunda e mortal a primeira ferida. Elisa rolou no chão nas últimas
convulsões.
— Assassino!
clamou a sentinela.
— Salvador!...
salvei minha filha da desonra!
— Meu pai!...
murmurava a pobre pequena expirando. Julião, voltando-se para o cadáver, disse,
derramando duas lágrimas, duas só, mas duas lavas rebentadas do vulcão de sua
alma:
— Dize a Deus,
minha filha, que te mandei mais cedo para junto dele para salvar-te da desonra.
Depois fechou os
olhos e esperou.
Não tardou que
entrasse Carlos, acompanhado de uma autoridade policial e vários soldados.
Saindo da casa de
Julião, teve a ideia danada de ir declarar à autoridade que o velho lavrador
tentara contra a vida dele, razão por que teve de lutar, e conseguira deixá-lo
amarrado.
A surpresa de Carlos
e dos policiais foi grande. Não cuidavam encontrar o espetáculo que a seus
olhos se ofereceu. Julião foi preso. Não negou o crime. Somente reservou-se
para contar as circunstâncias dele na ocasião competente.
A velha parenta foi
desatada, desamordaçada e conduzida à fazenda de Pio.
Julião, depois de
contar-me toda a história cujo resumo acabo de fazer, perguntou-me:
— Diga-me, sr.
doutor, pode ser meu advogado? Não sou criminoso?
— Serei seu
advogado. Descanse, estou certo de que os juízes reconhecerão as circunstâncias
atenuantes do delito.
— Oh! não é
isso que me aterroriza. Seja ou não condenado pelos homens, é coisa que nada
monta para mim. Se os juízes não forem pais, não me compreenderão, e então é
natural que sigam os ditames da lei. Não matarás, é dos mandamentos, eu bem
sei...
Não quis magoar a
alma do pobre pai continuando naquele diálogo. Despedi-me dele e disse que
voltaria depois.
Saí da cadeia
alvoroçado. Não era romance, era tragédia o que eu acabava de ouvir. No caminho
as ideias se me clarearam. Meu espírito voltou-se vinte e três séculos atrás, e
pude ver, no seio da sociedade romana, um caso idêntico ao que se dava na vila
de ***.
Todos conhecem a
lúgubre tragédia de Virginius. Tito Lívio, Diodoro de Sicília e
outros antigos falam dela circunstanciadamente. Foi essa tragédia a precursora
da queda dos decênviros. Um destes, Ápio Cláudio, apaixonou-se por
Virgínia, filha de Virginius. Como fosse impossível de tomá-la por simples
simpatia, determinou o decênviro empregar um meio violento. O meio foi
escravizá-la. Peitou um sicofanta (caluniador), que apresentou-se aos
tribunais reclamando a entrega de Virgínia, sua escrava. O desventurado pai,
não conseguindo comover nem por seus rogos, nem por suas ameaças, travou de uma
faca de açougue e cravou-a no peito de Virgínia.
Pouco depois caíam
os decênviros e restabelecia-se o consulado.
No caso de Julião
não haviam decênviros para abater nem cônsules para levantar; mas havia a moral
ultrajada e a malvadez triunfante. Infelizmente estão ainda longe, esta da
geral repulsão, aquela do respeito universal.
III
Fazendo todas estas
reflexões, encaminhava-me eu para a casa do amigo em que estava hospedado.
Ocorreu-me uma ideia, a de ir à fazenda de Pio, autor do bilhete que me chamara
da corte, e de quem eu podia saber muita coisa mais.
Não insisto em
observar a circunstância de ser o velho fazendeiro quem se interessava pelo réu
e pagava as despesas da defesa nos tribunais. Já o leitor terá feito essa
observação, realmente honrosa para aquele deus da terra.
O sol, apesar da
estação, queimava suficientemente o viandante. Ir a pé à fazenda quando podia
ir a cavalo, era ganhar fadiga e perder tempo sem proveito. Fui à casa e mandei
aprontar o cavalo. O meu hóspede não estava em casa. Não quis esperá-lo, e sem
mais companhia dirigi-me para a fazenda.
Pio estava em casa.
Mandei-lhe dizer que uma pessoa da corte desejava falar-lhe. Fui recebido
incontinenti.
Achei o velho
fazendeiro em conversa com um velho padre. Pareciam, tanto o secular como o
eclesiástico, dois verdadeiros soldados do Evangelho combinando-se para a mais
extensa prática do bem. Tinham ambos a cabeça branca, o olhar sereno, a postura
grave e o gesto despretensioso. Transluzia-lhes nos olhos a bondade do coração.
Levantaram-se quando apareci e vieram cumprimentar-me.
O fazendeiro era
quem chamava mais a minha atenção, pelo que ouvira dizer dele ao meu amigo e ao
pai de Elisa. Pude observá-lo durante alguns minutos. Era impossível ver aquele
homem e não adivinhar o que ele era. Com uma palavra branda e insinuante disse-me
que diante do capelão não tinha segredos, e que eu dissesse o que tinha para
dizer. E começou por me perguntar quem era eu. Disse-lho; mostrei-lhe o
bilhete, declarando que sabia ser dele, razão por que o procurara.
Depois de algum
silêncio disse-me:
— Já falou ao
Julião?
— Já.
— Conhece
então toda a história?
— Sei do que
ele me contou.
— O que ele
lhe contou é o que se passou. Foi uma triste história que me envelheceu ainda
mais em poucos dias. Reservou-me o céu aquela tortura para o último quartel da
vida. Soube o que fez. É sofrendo que se aprende. Foi melhor. Se meu filho
havia de esperar que eu morresse para praticar atos tais com impunidade, bom
foi que o fizesse antes, seguindo-se assim ao delito o castigo que mereceu.
A palavra castigo impressionou-me.
Não me pude ter e disse-lhe:
— Fala em
castigo. Pois castigou seu filho?
— Pois então?
Quem é o autor da morte de Elisa?
— Oh!... isso
não, disse eu.
— Não foi
autor, foi causa. Mas quem foi o autor da violência à pobre pequena? Foi
decerto meu filho.
— Mas esse
castigo?...
— Descanse,
disse o velho adivinhando a minha indiscreta inquietação. Carlos recebeu um
castigo honroso, ou, por outra, sofre como castigo aquilo que devia receber
como honra. Eu o conheço. Os cômodos da vida que teve, a carta que alcançou
pelo estudo, e certa dose de vaidade que todos nós recebemos do berço, e que o
berço lhe deu a ele em grande dose, tudo isso é que o castiga neste momento,
porque tudo foi desfeito pelo gênero de vida que lhe fiz adotar. Carlos é agora
soldado.
— Soldado!
exclamei eu.
— É verdade.
Objetou-me que era doutor. Disse-lhe que devia lembrar-se de que o era quando
penetrou na casa de Julião. A muito pedido, mandei-o para o Sul, com promessa
jurada, e avisos particulares e reiterados, de que, mal chegasse ali,
assentasse praça em um batalhão de linha. Não é um castigo honroso? Sirva a
sua pátria, e guarde a fazenda e a honra dos seus concidadãos: é o melhor meio
de aprender a guardar a honra própria.
Continuamos em
nossa conversa durante duas horas quase. O velho fazendeiro mostrava-se
magoadíssimo sempre que volvíamos a falar do caso de Julião. Depois que lhe
declarei que tomava conta da causa em defesa do réu, instou comigo para que
nada poupasse a fim de alcançar a diminuição da pena de Julião. Se for preciso,
dizia ele, apreciar com as considerações devidas o ato de meu filho, não se
acanhe: esqueça-se de mim, porque eu também me esqueço de meu filho.
Cumprimentei aquela
virtude romana, despedi-me do padre, e saí, depois de prometer tudo o que me foi
pedido.
IV
— Então,
falaste a Julião? perguntou o meu amigo quando me viu entrar em casa.
— Falei, e
falei também ao Pai de todos... Que história, meu amigo!... Parece
um sonho.
— Não te
disse?... E defendes o réu?
— Com toda a
certeza.
Fui jantar, e passei
o resto da tarde conversando acerca do ato de Julião e das virtudes do
fazendeiro. Poucos dias depois instalou-se o júri onde tinha de comparecer
Julião.
De todas as causas,
era aquela a que mais medo me fazia; não que eu duvidasse das atenuantes do crime,
mas porque receava não estar na altura da causa.
Toda a noite da
véspera foi para mim de verdadeira insônia. Enfim raiou o dia marcado para o
julgamento de Julião. Levantei-me, comi pouco e distraído, e vesti-me.
Entrou-me no quarto o meu amigo.
— Lá te vou
ouvir, disse-me ele abraçando.
Confessei-lhe os
meus receios; mas ele, para animar-me, entreteceu uma grinalda de elogios que
eu mal pude ouvir, no meio das minhas preocupações.
Saímos.
Dispenso os
leitores da narração do que se passou no júri. O crime foi
provado pelo depoimento das testemunhas; nem Julião o negou nunca. Mas apesar
de tudo, da confissão e da prova testemunhal, auditório, jurados, juiz e
promotor, todos tinham pregados no réu olhos de simpatia, admiração e
compaixão.
A acusação limitou-se
a referir o depoimento das testemunhas, e quando, terminando o seu discurso,
teve de pedir a pena para o réu, o promotor mostrava-se envergonhado de estar
trêmulo e comovido.
Tocou-me a vez de
falar. Não sei o que disse. Sei que as mais ruidosas provas de adesão surgiam
no meio do silêncio geral. Quando terminei, dois homens invadiram a sala e
abraçaram-me comovidos: o fazendeiro e o meu amigo.
Julião foi
condenado a dez anos de prisão. Os jurados tinham ouvido a lei, e igualmente,
talvez, o coração.
...................................................................
V
No momento em que
escrevo estas páginas, Julião, tendo já cumprido a sentença, vive na fazenda de
Pio. Pio não quis que ele voltasse ao lugar em que se dera a catástrofe, e
fá-lo residir ao pé de si.
O velho fazendeiro
tinha feito recolher as cinzas de Elisa em uma urna, ao pé da qual vão ambos
orar todas as semanas.
Aqueles dois pais,
que assistiram ao funeral das suas esperanças, acham-se ligados intimamente
pelos laços do infortúnio.
Na fazenda fala-se
sempre de Elisa, mas nunca de Carlos. Pio é o primeiro a não magoar o coração
de Julião com a lembrança daquele que o levou a matar sua filha.
Quanto a Carlos,
vai resgatando como pode o crime com que atentou contra a honra de uma donzela
e contra a felicidade de dois pais.
FIM
Fonte do conto digitalizado: Uol
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