Questão
de vaidade – Machado de Assis
CONTOS DE MACHADO DE ASSIS, 1864 (8)
(faço rápidas observações ao final, mas o
conto é extremamente caracterizado pelo estilo romântico)
Publicado originalmente em Jornal
das Famílias 1864
I
Suponha
o leitor que somos conhecidos velhos.
Estamos ambos entre as quatro paredes de uma sala; o leitor, sentado em uma cadeira
com as pernas sobre a mesa, à moda americana, eu, a fio comprido em uma rede do
Pará, que se balouça voluptuosamente, à moda brasileira, ambos enchendo o ar de
leves e caprichosas fumaças, à moda de toda gente.
Imagine mais que é noite. A janela aberta deixa entrar as brisas
aromáticas do jardim, por entre cujos arbustos se descobre a lua surgindo em um
límpido horizonte.
Sobre a mesa ferve em aparelho próprio uma
pouca de água para fazer uma
tintura de chá. Não sei se o leitor
adora como eu a deliciosa folha da Índia. Se não, pode mandar vir café e fazer
com a mesma água a bebida de sua predileção.
Não se obriga, nem se constrange ninguém nestas práticas
imaginadas. Se estivéssemos na vida real, eu começaria por querer até privar-me
do chá, e por sua parte o leitor dispensava o café, para ser do meu agrado.
Felizmente não é assim.
Ora, como é noite, e como não hajam cuidados para nós, temos
ambos percorrido toda a planície do passado, apanhando a folha do arbusto que
secou ou a ruína do edifício que abateu.
Do passado vamos ao presente, e as nossas mais íntimas
confidências se trocam com aquela abundância de coração própria dos moços, dos
namorados e dos poetas.
Finalmente, nem o futuro nos escapa. Com o mágico pincel da
imaginação traçamos e colorimos os quadros mais grandiosos, aos quais damos as
cores de nossas esperanças e da nossa confiança.
Suponha o leitor que
temos feito tudo isto e que nos apercebemos de que, ao terminar a nossa viagem
pelo tempo, é já meia-noite. Seriam horas de dormir se tivéssemos sono, mas
cada qual de nós, avivado o espírito pela conversação, mais e mais deseja estar
acordado.
Então, o leitor, que é perspicaz e apto para sofrer uma
narrativa de princípio a fim, descobre que eu também me entrego aos contos e
novelas, e pede que lhe forje alguma coisa do gênero.
E eu para ir mais ao encontro dos desejos do leitor imaginoso, não
lhe forjo nada, alinhavo alguns episódios de uma história que sei, história
verdadeira, cheia de interesse e de vida. E
para melhor convencer o meu leitor vou tirar de uma gaveta algumas cartas em
papel amarelado, e antes de começar a narrativa, leio-as, para orientá-lo no
que lhe contar.
O leitor arranja as suas pernas, muda de charuto, e tira da
algibeira um lenço para o caso de ser preciso derramar algumas lágrimas. E,
feito isto, ouve as minhas cartas e a minha narrativa.
Suponha o leitor tudo isto e tome as páginas que vai ler como
uma conversa à noite, sem pretensão, nem desejo de publicidade.
II
EDUARDO
AO SEU AMIGO PEDRO ELÓI
Meu amigo,
Acendo duas velas para escrever-te. É como se eu confiasse
diante de um altar as minhas penas e as minhas felicidades. Tens sido para mim
o santo milagroso por excelência; nada desejo que por influxo teu não seja
cumprido. E mais ainda: nas minhas atribulações é a tua palavra que me
sustenta, como a voz da verdade e da justiça. Não te admires, pois, da
precaução que tomei de iluminar este papel como o faria à pedra de um altar.
Ora, ainda assim não é tanto ao santo, como ao filósofo, que eu
me dirijo desta vez. Talvez amanhã te vá pedir consolações, mas agora o que
desejo é a solução de um fenômeno moral.
Sabes do meu amor por Maria Luísa, a interessante viuvinha que
eu encontrei há dois meses e a quem parece que inspirei algum amor. Pouco falta
para que este amor seja coroado de um feliz sucesso, substituindo eu o finado
marido, que, seja dito neste papel, parece que era suficientemente prosaico.
Quando te comuniquei esta paixão mandaste-me bons conselhos de
prudência que eu li com a maior veneração. Dizias que me não fosse enganar e
tomar por amor aquilo que não passava de capricho. Acrescentavas que a tua
dúvida nascia dos termos de minha carta.
Pesei as tuas palavras e gravei-as na memória. O resultado foi
que estavas em puro engano. Eu amava deveras Maria Luísa.
Mas vamos ao fenômeno. Antes de entrar em outros pormenores,
insisto em dizer que amava e amo a viúva. Já te disse qual a força deste amor e
o que me havia inspirado. Não quero fazer repetições inúteis, mas insisto nesta
observação.
Ouve agora o que me acaba de acontecer há oito dias:
Tinha eu ido passar uma noite em S. Domingos em casa de dois
amigos. No dia seguinte, seriam cinco horas, acordei sobressaltado com os
preparativos que se faziam em casa para ir aos banhos de mar. Os meus hóspedes
ficaram pesarosos de me terem acordado tão cedo; mas eu, que já de longa data
tenho a minha aurora às onze horas da manhã, não fiquei descontente de poder
fazer exceção à regra.
Vesti-me, como eles, e fui com eles à praia das Flechas, lugar
usual dos banhos.
Diversas barracas se levantavam na praia, contra a qual se
quebrava o mar agitado.
Algumas moças já
andavam à flor das águas, enfronhadas nas suas camisolas do costume. Outras iam saindo, de quando em quando, do interior das
barracas e tomando o caminho do mar.
Um ou outro grito, soltado no meio do susto produzido por uma
vaga mais alta ou mais violenta, unia-se ao sussurro do mar.
Os maridos, pais e irmãos, que não tomavam banho, ou
conversavam, ou liam, ou olhavam o ar, enquanto as graças humanas brincavam com
o elemento a que Shakespeare as
comparou.
Armou-se a nossa barraca e prepararam-se os meus companheiros
para o banho. Eu de mim, confesso, preferia ver as damas banharem-se e rir do
susto que elas tivessem. Demais, apesar de estarmos no verão, fazia nesse dia
um tal frio que me arredava da água cinqüenta léguas.
Os meus companheiros apresentavam-me o exemplo das damas que tão
destemidamente afrontavam o tempo e o mar. Mas
eu, depois de citar Shakespeare no que tocava à identidade das mulheres e do
mar, citei-me a mim próprio, acrescentando que a maioria das senhoras que se
banhavam o faziam por moda ou por bom-tom.
Enfim, consegui não ir
à água. Enquanto os outros se
banhavam fui sentar-me em uma pedra que ali estava perto. Estive contemplando
as banhistas alguns minutos. Mas, como sempre acontece, os meus olhos, depois
de correr todo o grupo voltavam aos primeiros, e assim via eu duas ou três
vezes as mesmas caras, graciosas ou assustadiças, arrecearem-se ou brincarem
com a água revolta.
Ora, uma dessas
figuras, a terceira vez que passou sob o meu olhar, deteve-o alguns minutos. Estávamos a certa distância que me não permitia distinguir-lhe
as feições, mas havia na temeridade, na graça, no recato com que ela se
banhava, uma tal diferença das outras, que eu não pude deixar de examiná-la com
mais interesse.
Não podendo distinguir-lhe, como disse, as feições, esperei que
ela estivesse em terra para procurar admirá-la ou correr-me de uma ilusão.
Nisto estava, quando a
moça, que parecia nada temer e arredava-se da praia mais do que era
conveniente, foi engolida por uma vaga. Só flutuavam à flor d’água os longos e
negros cabelos.
Houve um grito, um só, mas de todos quantos se achavam na praia
e presenciavam o fato.
Alguns dos banhistas dirigiam-se para o lugar do desastre. Mas
estavam um pouco longe. Eu vi que a demora era fatal. Correndo pela praia,
atirei fora o paletó e lancei-me à água.
Não te conto todas as peripécias desta cena. Na praia, a família
da pobre moça ajoelhara-se involuntariamente e todos pareciam depender de mim.
Ao cabo de algum tempo
e de alguns esforços salvei a moça.
Avalia como fui recebido pela família. Afagavam-na com abraços e
beijos.
Voltando a si do desmaio que tivera, a moça foi conduzida para
casa dentro de um carro.
O que motivara a catástrofe não foi a violência com que a onda
se arremessara, foi ter a pobre moça desmaiado. Uma vez desmaiada, caiu e não
soube mais de si.
O pai da moça obrigou-me a ir à casa dele. Não tive remédio.
Avisei os meus companheiros e parti.
Trataram-me muito bem. Pediram-me que voltasse lá algumas vezes.
A moça não tirou as minhas mãos de entre as suas nem os seus olhos dos meus,
dizendo-me que a mim devia a vida e que eu era o seu salvador.
Voltei lá algumas vezes. Trataram-me sempre muito bem. Mas que pensas tu que me aconteceu? Aquela
franca alegria, aquela gratidão tão claramente manifestada pela moça, tudo isso
fez-me apaixonado!
Mas o fenômeno?
perguntas tu. O fenômeno é que, se amo a esta, não esqueci a viúva como antes:
o fenômeno é que amo as duas do mesmo modo, com o mesmo ardor. Explica-me isto.
Estou de tal modo, que não posso pensar em uma só, hei de pensar
em ambas; sei o que sofro, encolerizo-me comigo mesmo.
Que será isto? Escreve-me depressa, dá-me a luz e o bálsamo de
que necessita o teu amigo
Eduardo T.B.
A resposta desta carta, escrita dois dias depois, é assim
concebida:
PEDRO
ELÓI AO SEU AMIGO EDUARDO
Meu amigo,
Recebi a tua carta, e desde o dia em que a li até hoje não tenho
feito mais do que pensar no teu fenômeno.
Não é que eu esteja convencido, como tu, de que é
verdadeiramente um fenômeno. Pelo contrário, vejo que o que sentes é uma coisa
muito natural.
Insistes em dizer que amas a viúva. Eu insisto em dizer que não
a amas. E a prova está nesta dualidade de amor, falsa e impossível, verdadeiro
erro de um espírito enfermo e de um coração indiscreto.
Queres tu saber o que existe na verdade? Existe um simples
desejo, uma aspiração toda sensual, comum nos rapazes da tua idade e de tua
educação, mas imprópria de quem quer que compreenda a elevação e castidade dos
sentimentos.
Pensas que cortas toda a dificuldade pronunciando a palavra
fenômeno? Repara, meu Eduardo, onde vai dar a ampliação deste sofisma. Deste
modo, todos os vícios se legitimam, todos os desvios se aceitam.
É engraçada a história do banho e do desmaio no mar.
Afigura-se-te que depois deste episódio romanesco só se pode sentir amor, e
concluis que estás apaixonado. E como uma insaciável volúpia reúne em teu
pensamento as duas mulheres em questão, concluis que estás apaixonado por ambas.
Ora, sério. Admites em
toda a sua pureza moral a reunião de dois amores? Pois o amor, isto é, a mais
completa fusão de duas almas, pode ter por objeto dois objetos?
Reflete, entra em ti
mesmo, envergonha-te do erro em que estás. Vê bem que não amas nem a viúva, nem
a donzela. Amas a uma só criatura, és tu mesmo. É o amor dos sentimentos que se
pode dividir, que se divide, que se prostitui, que se desvaira.
Se queres uma explicação aí a tens; se queres um conselho, não
perturbes a constância dessas duas mulheres, a menos que não queiras a todo o
transe ser ator principal em um drama perigoso.
Adeus. Desculpa a franqueza: é a minha. Cá fico para explicar-te
quantos fenômenos te apareçam e varrer-te da cabeça quantas ideias más o vento
da maldade aí depuser. Adeus!
III
Eduardo leu esta carta com
avidez, e releu-a para compreendê-la melhor, visto ser a primeira leitura
demasiado rápida.
Quinze minutos gastou nesta operação, e outros quinze em meditar
as palavras do amigo Pedro Elói. No fim de meia hora, fechou a carta e
guardou-a na gaveta da secretária. Não estava convencido, estava abalado.
— Ora, por fim de
contas, pensava ele, Pedro Elói não é um papa; pode enganar-se. É talvez certo
que se engane. Sou eu uma criança ou um ignorante? Não sinto eu o contrário do
que ele me escreve?
Fazendo estas reflexões e outras no mesmo sentido, Eduardo
vestiu-se e saiu.
Esquecia-me dizer que
Eduardo residia no Rio de Janeiro e Pedro Elói em Petrópolis.
Eduardo era um dos
moços mais elegantes da sociedade fluminense. Era ao mesmo tempo um roué de primeira força. Faltava-lhe o
calção, o sapato e os mil enfeites do tempo de Luís XV. Durante os primeiros anos das
suas correrias amatórias foi sempre remisso aos sentimentos de ordem elevada.
Era vaidoso como um tolo e tolo como um vaidoso. Acreditava todas as mulheres
mortas por ele, e algumas tiveram a desgraça de o confirmarem nessa ideia.
Um dia, levantou-se da cama com a crença original de estar
apaixonado. Tinha conversado na véspera com a viúva Maria Luísa, e no dia
seguinte, como tivesse sonhado com ela, julgou-se influenciado pelo deus do
amor.
Feita a descoberta, correu a todos os amigos para dar-lhes conta
da novidade. Receberam-no a gargalhadas. Foi esse o aguilhão maior para o
espírito do nosso namorado. Declarou-se irremissivelmente apaixonado e jurou
por Júpiter, como faria Alcibíades, que havia de casar com
Maria Luísa.
Depois de muitos dias de uma corte continuada e crescente,
conseguiu Eduardo fazer-se amado. Mas fez-se deveras. Maria Luísa entregou-se
toda àquele amor que a procurava na viuvez e achou da parte de sua velha mãe o
beneplácito necessário.
Estavam as coisas neste pé, quando se deu o episódio dos banhos
de S. Domingos. Já havia dois dias que Eduardo não via Maria Luísa, e nos dez
dias que se seguiram ao referido episódio apenas lá foi uma vez.
Saindo à rua, lembrou-se Eduardo de que devia visitar a viúva,
não se dispensando de visitar a donzela. A primeira residia na corte, devia ter
a preferência. Eduardo encaminhou-se para a Rua do Lavradio, onde morava Maria
Luísa.
No Rocio, encontrou dois amigos.
— Por onde andas
tu? perguntou um deles.
— Eu sei!
— Ora, este
simulado Antony não nos anda a
fazer crer que se apaixonou pela tal viúva? acrescentou o outro amigo. É supor
que comemos araras. Aquilo naturalmente é alguma destas uniões morganáticas que
costumas contrair. Adeus, sê feliz !
— Zombem! zombem!
exclamou Eduardo. O que fariam se soubessem de outras coisas! Há um fenômeno.
— Há dois, acudiu
o primeiro que falara; é a paciência de cada um de nós em ouvir-te essas
patranhas. Vai, vai!
Eduardo despediu-se
dos amigos e foi a caminho. Estava contente de si.
Produzia o efeito que desejava. Era em não ser acreditado que estava a
originalidade. Não é que ele estivesse absolutamente fingindo. À força de dizer
que amava, convenceu-se disso. Mas a convicção não era o amor.
Maria Luísa estava em casa com sua mãe. Estavam ambas na sala.
Maria Luísa tocava e cantava ao piano. Ao subir os degraus do primeiro lanço da
escada, chegaram aos ouvidos de Eduardo as palavras daquela ária deliciosa da Favorita: Ó mio Fernando...
A vaidade do rapaz era mais forte que o amor. Subindo as escadas
dizia ele mentalmente: — Aquele mio Fernando quer dizer mio Edoardo.
Não quis bater palmas. A porta estava entreaberta. Adiantou a
cabeça e deu com os olhos na viúva e na velha. A primeira não podia vê-lo. À
velha, que logo o viu, fez Eduardo um sinal para que se calasse. Quando Maria Luísa
terminou a ária, Eduardo bateu palmas e deu um bravo. Ela voltou-se e correu a
recebê-lo.
Maria Luísa era
realmente digna de um grande amor, mas da parte de outro homem que não fosse
Eduardo. Amava-se nela tudo, até o amor que se lhe entornava dos olhos como
bálsamo de um vaso demasiado cheio. Adivinhava-se que o primeiro marido não
conhecera nunca o tesouro que possuíra e tomara aquela mulher pela razão que
fez Abraão tomar a escrava Ágar.
Era
de estatura mediana. O rosto, antes cheio que magro, tinha
a expressão dessas almas enérgicas e violentas que não transigem nem se
sujeitam senão com a condição de se lhes dar em troca a felicidade e o bem. Os
olhos eram castanhos como os cabelos. Tinha o nariz ligeiramente aquilino. A
boca era das mais corretas e graciosas.
Quanto ao resto do corpo, adivinhavam-se, através de um vestido de seda cor de
pérola, as formas mais perfeitas que jamais sonhara Praxíteles.
Se Eduardo não estivesse tão atento a ver o efeito que produzia,
poderia enxergar, quando Maria Luísa se levantou do piano, o mais delicado pé
depois do (de) Cendrilon, meio
escondido em um sapatinho raso de cetim.
Concebe-se que Maria
Luísa, tal como a esbocei, inspirasse a Eduardo, não o amor, em que só ele
acreditava, mas os desejos de que falava Pedro Elói. Para os espíritos
medíocres é fácil confundir uma e outra coisa. Diante de Maria Luísa, Eduardo
perguntava a si mesmo se não era realmente amor o que sentia pela viúva. Já
sabemos qual era a resposta que ele mesmo dava a esta íntima interrogação.
A mãe de Maria Luísa era desses tipos de velhice respeitável e
afável a um tempo com quem, sem perder a devida veneração, pode-se usar da mais
franca familiaridade.
A recepção de Eduardo foi a melhor possível. A velha
cumprimentou-o como se fora seu filho. Maria Luísa, com uma alegria a que se
misturava certa dose de censura, disse-lhe:
— Graças a Deus!
Estivemos ansiosas por vê-lo. Mamãe dizia que já se havia esquecido de nós; mas
eu, não querendo acreditar isso, acreditei a verdade: melhores distrações que a
nossa companhia o detiveram decerto.
— Não há tal,
disse Eduardo aceitando a cadeira que a mãe de Maria Luísa lhe oferecia, e
sentando-se defronte desta. Estive meio adoentado. Quis sair, apesar de tudo,
mas o médico proibiu-me expressamente.
Uma mentira desta natureza e neste sentido, mesmo que se
conheça, é ouvida com agrado. A humanidade é feita deste modo. Dispensa a
verdade, uma vez que lhe preguem uma mentira lisonjeira.
Em honra de Maria Luísa, devo dizer que ela aceitou as palavras
de Eduardo como se foram textos evangélicos.
Eduardo, tendo feito passar a invenção da moléstia, indagou da
saúde e do bem estar das duas senhoras. A conversa demorou-se meia hora sobre
assuntos indiferentes ao nosso. Finalmente, como viessem chamar a mãe de Maria
Luísa, esta pôde ficar uns quinze minutos a sós com Eduardo.
Houve um instante de silêncio. Da parte de Maria Luisa, era
natural enleio. Da parte de Eduardo, não era natural, mas era enleio; provinha
da paixão que ele acreditava em si.
A bela viúva rompeu o silêncio.
— Sabe que
lamentei a sua falta?
— Chorou?
— Não acredita,
mas chorei.
— Devo crer
tamanha felicidade?
— Por que não?
— Não posso.
Quando me lembro, em meus sonhos de ambição, que a Providência podia dar-me a
mais invejável das felicidades, ocorre-me sempre que era preciso merecê-la; e
eu não mereço, desta a que aludo, nem a décima parte.
Trocou-se entre ambos um olhar. Maria Luísa levantou-se. Eduardo
seguiu-a com os olhos. Ela foi a uma jarra e tirou duas pequenas rosas brancas.
Quer uma? perguntou a Eduardo, encaminhando-se para ele.
Eduardo estendeu a mão para aceitar a flor. Tocaram-se os dedos,
e nesse contacto Maria Luísa estremeceu. Eduardo segurou a mão da viúva e
levou-a à boca. Maria Luísa, abandonando a mão a Eduardo, inclinou a cabeça e
deixou-se possuir da felicidade que aquele beijo, dado tão ardentemente, lhe
fazia entrar no coração.
Depois, passado o primeiro enlevo, a viúva retirou a mão, foi
para o piano, e começou a cantar com mais viva expressão a ária da Favorita.
Eduardo levantou-se e foi encostar-se ao piano.
Tinham ambos os olhos confundidos, e nesse enlevo cantou Maria
Luísa e Eduardo ouviu.
Às últimas notas, entrou na sala a dona da casa.
— É uma singular
predileção a tua por esta ária, minha filha.
— É realmente
deliciosa, disse Eduardo.
— De poucas coisas
gosto tanto como disto, acrescentou Maria Luísa.
Eduardo, depois de algumas palavras mais, declarou que ia sair.
— É verdade, tenho
uma visita para fazer.
— Não janta
conosco?
— Desculpe, não
posso.
— Ao menos, virá
tomar chá, não?
— Venho.
— Com certeza?
— Com certeza.
— Olhe, não falte,
acrescentou a velha, olhando com certa inteligência para a filha.
— Não falto.
Eduardo apertou a mão à velha e a Maria Luísa. Esta tinha os
olhos rasos de lágrimas de felicidade, de saudade, de amor, de tudo. Eduardo
olhou para ela a última vez e disse, procurando a expressão mais terna de sua
voz:
— Até logo!
— Até logo!
respondeu a moça.
Eduardo saiu.
Maria Luísa foi à janela vê-lo ainda. Depois, voltando para
dentro, deitou-se aos braços de sua mãe.
— Amas, não, minha
filha?
— Oh! muito!
muito!
— Pois eu creio
que ele também te ama. Juro-te que hão de ser felizes. Ele é só. Tu podias ter
obstáculo em mim, mas eu só desejo a tua felicidade.
IV
Deixando a casa de Maria
Luísa, Eduardo tomou um tílburi e mandou tocar para a ponte das barcas de S.
Domingos. Dentro de dez minutos estava lá.
Apeou, pagou o tílburi e entrou na estação. Ali esperou a
primeira barca que devia partir e que era a das duas e meia horas. Entre
os passageiros que esperavam houve um que mereceu desde logo a atenção e os
cumprimentos de Eduardo.
Era um homem de quarenta e cinco anos, baixo, meio gordo,
fisionomia insinuante, destas que, mesmo sérias, trazem impresso inconstante sorriso.
Eduardo dirigiu-se para ele e cumprimentou-o afetuosamente,
dizendo:
— O sr. Almeida
dá-me um grande prazer. Não contava desde já o prazer de cumprimentá-lo.
— Por quê?
perguntou o indivíduo, dando a Eduardo lugar ao pé de si.
— Porque só daqui
a três quartos de hora contava estar em sua casa.
— Ah! tanto
melhor! tanto melhor!
— Toda a família
está boa?
— Tudo vai indo,
obrigado. Há quantos dias não vai lá?
— Creio que há
dois.
— Ainda ontem Sara
falou em seu nome. Ontem não, creio que foi hoje de manhã.
— Deveras?
perguntou Eduardo sem dissimular a alegria que lhe dava esta notícia.
Neste momento, chegava a barca, os dois tomaram passagem, daí a
três quartos de hora estavam à porta da chácara de Almeida.
Sara, a filha deste, o objeto do segundo amor de Eduardo, veio
recebê-los à porta. Mais atrás vieram o filho e o irmão de Almeida. Eduardo foi
recebido por todos com verdadeiro regozijo.
Em duas palavras apresento a família de Almeida ao leitor.
Almeida, na época em que se passam estes acontecimentos, vivia
do que ganhara durante uma vida laboriosa de longos anos. Não vivia com
parcimônia, mas também não era pródigo. Tinha a ciência da economia doméstica,
mediante a qual sabia despender utilmente, sem faltas nem sobras.
Era viúvo. No fim de oito anos de casado, morrera-lhe a mulher,
deixando dois filhos, um rapaz e uma menina.
A menina era mais velha que o rapaz; contava este seis e aquela
sete anos, quando morreu a mulher de Almeida.
Almeida completou por si a educação tão zelosamente começada por
sua mulher. Sara cresceu sob os melhores auspícios. Aumentou em beleza e
conservou até à idade de dezessete anos a inocência e a graça da infância. Era
um bom coração em toda a pureza da palavra. Nenhuma nuvem negra perturbara o
céu sempre claro do seu espírito.
Quanto à beleza
física, imagine o leitor o que podia fazer contraste com a beleza da viúva
Maria Luísa. Esta, como disse já, acusava em suas feições uma alma dada à
violência das paixões, uma rara energia moral. Sara não era assim! Parecia uma
criatura do outro mundo, caída por engano no mundo dos Eduardos. Era um
alfenim, uma delicadeza que não parecia natural. Delgada e um tanto alta,
olhos negros, cabelos alourados, porte
senhoril sem altivez, elegante sem artifício, graciosa sem afetação: tal era
Sara.
Se a compararmos à viúva, teremos, conforme a respectiva
presença, a disposição do gênio de cada uma. Maria Luísa amava como as
italianas: era ardente, apaixonada, violenta. Sara amava como as alemãs: era
meiga, resignada, sentimental.
Estas duas mulheres diversas na índole, no gênio, talvez no
coração, ligavam-se em um ponto: no amor por Eduardo, em quem viam, cada uma
pelo prisma do seu espírito, o ideal sonhado em suas doces aspirações.
Disse acima que, após Sara, tinham ido receber Eduardo um irmão
e um filho de Almeida. Não têm estas duas figuras máxima importância na nossa
história, mas devo designá-las como partes integrantes da família de uma das
heroínas.
O tio de Sara tinha por nome Silvério. Era um aposentado da
atividade. Em moço, e até certa idade madura, fora incansável trabalhador.
Agora, descansava à sombra da fortuna e da amizade fraterna do pai de Sara.
Tinha sido solicitador de causas, e deste emprego, exercido por
longos anos, trouxera até à velhice um espírito chicaneiro e discutidor. Era,
além disso, uma inteligência acanhadíssima, frívola, tola, rasteira. Dava-se à
apreciação de quantas anedotas e dictérios ouvia ou lia. Fazia a autópsia das
nescedades escritas em jornais com o mesmo espírito com que outrora redigia um
embargo ou uma assinação de dez dias.
Era aturado, estimado mesmo, em virtude de sua velhice, de seu
grau de parentesco e de algumas virtudes que tinha.
Um espírito daquela
natureza não podia fugir às seduções do jogo do xadrez, do qual dizia, creio eu
a divina Staël, que para jogo era
demasiado sério, e para negócio demasiado frívolo. Cito de memória.
Era, com efeito, um
grande jogador de xadrez o tio Silvério.
Por desgraça, Eduardo não o era menos, de modo que mal se anunciou a visita
deste, correu Silvério para a porta com os braços abertos.
O filho de Almeida era um rapaz de dezesseis anos. Estudava
direito em S. Paulo. Durante os acontecimentos que estou narrando estava ele em
férias no Rio de Janeiro.
A família Almeida recebeu Eduardo, como disse, com o mais
cordial acolhimento.
Parecia um filho que chegava de longa viagem.
E para aquela gente, que estremecia tanto a formosa Sara, não
era um filho aquele que a salvara da morte?
Enquanto Eduardo e Almeida descansavam do pequeno caminho que
tinham feito, tratou-se dos preparativos do jantar. Sara ia e vinha com uma
graça encantadora. Dizia duas palavras a Eduardo, uma ao tio Silvério, duas a
seu pai, sempre com aquele recato e modéstia, que tanto agradam, quando são
verdadeiros, e tanto enjoam, quando são artificiais.
Na sala, sobre a mesa, estava um livro aberto. Eduardo procurou
ler o que era; levantou-se e foi saciar a curiosidade. Era Paulo
e Virgínia. Um lenço marcado com
a firma de Sara, atirado sobre as folhas abertas, para marcar a página,
indicava quem estivera lendo a obra-prima de Saint-Pierre.
Eduardo pegou no livro e no lenço e foi sentar-se junto de uma
janela. Sua vaidade impava de contente. Tinha
diante de si um coração virgem, completamente virgem; um coração que ainda
podia ler Paulo e Virgínia.
Amar, conquistar, possuir esta menina, era surpreender a flor no botão; era
ensinar o catecismo do amor, soletrar o credo do coração, a uma ignorante, a
uma pura, a uma ingênua. Que mais podia ambicionar o caprichoso namorado?
Se alguma das pessoas da família tivesse olhar mais perspicaz
poderia decerto descobrir no olhar e no sorriso com que Eduardo folheou o
volume toda a satisfação de sua alma egoísta.
Pedro Elói, esse com certeza adivinharia tudo e diria tudo
quanto pensasse. De longe, Eduardo podia desdenhar os conselhos prudentes do
amigo, a quem chamava filósofo e santo milagroso; mas de perto, não seria
assim. Pedro Elói tinha, de fato, certo ascendente sobre Eduardo, ao qual seria
de maior proveito se lhes fosse possível conviver.
Depois de alguma espera, Sara mandou anunciar que o jantar se
achava na mesa, e foi ela mesma buscar Eduardo, o pai e o tio.
— Que está lendo
aí? perguntou ela a Eduardo, entrando na sala.
— Ah! perdão!
respondeu este. Foi uma ousadia de que me arrependo; mas este livro aberto por
suas mãos, lido por seus olhos, devia ter adquirido uma virtude nova, e eu quis
aspirar-lha antes que outro o fizesse. Perdoa-me?
Almeida sorriu-se ouvindo estas palavras de Eduardo; Sara
tomou-lhe o livro docemente, tocando com os seus dedos nos dele, e lançando-lhe
um olhar da mais franca e pura satisfação; Silvério contentou-se em tomar uma
pitada, dizendo:
— E contudo este
moço joga bem o xadrez!
A palavra xadrez fez estremecer Eduardo. Era o sinal de
um perigo iminente. Todavia, como fino cavalheiro que era, ofereceu o braço a
Sara, e seguiu acompanhado de todos para a mesa do jantar.
Até aquela hora um só minuto não pudera falar a sós com Sara.
Durante o jantar, era impossível. O jantar foi demorado, mais que de costume.
Aproximou-se a noite. Finalmente, levantaram-se todos e foram dar um passeio
pelo jardim.
Aí, graças à circunstância de dar o braço a Sara, pôde Eduardo
falar-lhe mais livremente, apressando ou demorando o passo, conforme as
necessidades.
— Soube que tem
pensado em mim, disse Eduardo a Sara, caminhando ao longo de uma cerca de
roseiras. É verdade?
— Não sei,
respondeu a moça.
— Vejo que é uma
confirmação.
Quem foi o indiscreto?
— Foi seu pai, mas
é verdade?
— É sim: creio que
não faz mal.
— Mal? Oh! nenhum!
Fez a minha felicidade.
— Só em pensar?
— Pensar é
interessar-se, interessar-se é... sabe o que é?
— Não sei,
respondeu Sara corando.
Eduardo queria que a confissão viesse da moça. Esta, para
disfarçar a sua perturbação, voltou-se e falou ao pai acerca de algumas
necessidades do jardim.
Daí a cinco minutos a conversação entre Eduardo e Sara
continuou.
— Sara...
A moça estremeceu ouvindo este modo de falar.
Depois, erguendo os olhos para Eduardo, pareceu dizer-lhe
naturalmente: continue!
— Sara, continuou
Eduardo, não posso, não quero, não devo ocultar-lhe por mais tempo o
sentimento, que a sua beleza me inspirou. Amo-a muito, muito. Desde que eu tive
a ventura de salvá-la das ondas, senti que tinha achado o objeto dos meus
sonhos. O ideal da minha imaginação. Para ser completamente feliz, basta que o
seu coração responda aos sentimentos do meu; basta, para dizer-me desgraçado, a
sua recusa ou a sua indiferença. Diga, Sara, ama-me também?
A moça estava embriagada ouvindo esta linguagem. Houve um
silêncio em que ela se deleitava com a música das palavras de Eduardo.
Este repetiu a pergunta.
— Sim, respondeu a
moça, sim!
As duas mãos se procuraram. Pararam um instante; tinham os olhos
embebidos. Assim se passou algum tempo, até que Silvério os foi chamar.
— Então, que é
isso? É o jogo do sério?
Os dois voltaram à vida.
Caindo a noite, regressaram todos para a casa. Eduardo ia
despedir-se, quando lhe surgiu, armado de um tabuleiro de xadrez, o tio
Silvério. Não havia meio de recusar, não já porque o exigisse a delicadeza, mas
ainda porque Silvério era dos tais que, em pedindo qualquer coisa, punha a
gente num suplício.
Eduardo viu-se obrigado a aceitar a partida de xadrez.
Para a filha de Almeida era isto uma grande felicidade. A
conversa do jardim decidira-lhe o coração. O que podia haver de incerto naquela
natureza fraca, indecisa, naquele espírito simples e ingênuo, desaparecia
diante dos sentimentos que as palavras de Eduardo despertaram. Até então, a
moça sentia alguma coisa que a arrastava para aquele homem, mas nem o dizia,
nem mesmo interrogava a si própria a razão do novo estado.
Agora, tinha-se-lhe clareado o horizonte. Era amor, que sentia,
e amor daqueles que só as almas elevadas são capazes de sentir. O admirável
instinto de mulher dera-lhe o resto do que não pudera interpretar das palavras
de Eduardo.
Quando Eduardo declarou aceitar a partida de xadrez a moça
sentiu que o coração lhe palpitava com mais força. Ela própria foi dispor o
necessário para o jogo, não sem levantar muitas vezes os olhos para Eduardo,
cujo olhar, pregado nela, exercia uma como (que)
fascinação.
Adivinha-se o resto. Entre a paixão do jogo, dominante em
Silvério, e os olhares instantes de Sara, viu Eduardo correr as horas sem
arredar pé. O jogo deu-se por terminado à meia-noite. Apenas tinham jogado duas
partidas, em que Silvério ganhou sempre. Isto, porque ele não estava
apaixonado, e Eduardo, se não o estava, acreditava estar, o que não deixa de
produzir algum efeito, como a moléstia imaginária fazia Órgon conservar-se na cama.
Silvério apertou afetuosamente a mão de Eduardo, prometendo-lhe
ficar pronto para dar-lhe a desforra.
À despedida, Sara, em quem já dominava mais o amor que a
ingenuidade infantil, colheu no jardim uma flor das roseiras, ao pé das quais
tivera a conversa com Eduardo, e ofereceu-a.
Eduardo aceitou, sorrindo a um remoque paternal do velho
Almeida, que ainda não calculava o estado do coração de sua filha.
Mas como fosse saindo sem nada dizer, Sara fê-lo parar, e
disse-lhe em voz alta, visto não poder ser de outro modo:
— Eu cuidava que me devia retribuir a
dádiva com outra... com essa flor que traz aí no peito.
Eduardo olhou a casa
do paletó, viu a rosa que lhe fora dada por Maria Luísa. Tirou a flor e
deu-lha.
Depois saiu.
Na rua ocorreu-lhe a lembrança que tinha prometido ir tomar chá
com Maria Luísa. Lembrara-se dela algumas vezes em casa de Almeida, mas a
promessa do chá varrera-se-lhe inteiramente da memória.
V
Nas cenas que até aqui tenho
esboçado, tentei mostrar a leviandade e a vaidade de um homem que fazia jogo
com as paixões e os sentimentos ingênuos de duas criaturas. Não há
inverossimilhança nos fatos, todos concordarão, mas também não há
inverossimilhança nos sentimentos de Eduardo, atendendo-se a que era um
espírito para o qual nada havia fora do culto da própria personalidade.
Acreditando-se sinceramente apaixonado e não podendo distinguir
a natureza do amor e a natureza dos desejos, Eduardo servia de algum modo
aquele culto, armava à incredulidade; mas o assombro da novidade, os
comentários, a fé que começaria a entrar nos espíritos e que se robusteceria
quando ele pudesse passar do estado de solteiro para o de casado, tudo isto
eram os aguilhões com o que o seu amor-próprio se sentia brioso e compelido a
prosseguir na conquista.
Sara veio complicar as coisas no que dizia respeito ao casamento
de Eduardo; e por esse lado afastou-o do alvo a que pretendia chegar; mas se o
afastou, não foi senão para dar lugar a nova e maior extravagância, essa do
amor por duas mulheres, a donzela e a viúva, na mesma intensidade e no mesmo
grau.
Perguntará o leitor como é que um homem de tão bom senso como
Pedro Elói parecia tão amigo de Eduardo. A
resposta está contida nas duas cartas que eu já li. Pedro Elói, com um olhar de
filósofo, via que não era impossível trazer Eduardo ao bom caminho. Os defeitos morais podem levar a consequências
grandes, mas com a austeridade da lição e da prática são suscetíveis de
desaparecer e tornar-se melhor o espírito em que eles existem. Pedro Elói
tentava isto de longa data; e, como vemos, era um santo e um filósofo. Tinha
conseguido tudo quanto desejara? A este respeito o procedimento de Eduardo
desmente a submissão afetada da carta. Que alguma coisa tivesse feito,
acredita-se, mas não fez tudo, nem muito. Vejamos agora como continuaram os
dois episódios amorosos que Eduardo entretinha com tanto cuidado.
Em casa de Maria Luísa, no dia seguinte, foi Eduardo mal
recebido. A viúva mostrava uma frieza e uma indiferença que não eram mais do
que os véus com que se cobriam o despeito contido e a dor sufocada.
A promessa não cumprida ligava-se a outras faltas de Eduardo, e
para um coração amante, sobretudo para um coração como o de Maria Luísa, não
eram essas faltas facilmente desculpáveis.
Maria Luísa sentia naquilo um desdém, um sintoma de resfriamento
do amor, e pressentia não sei que más novas para o futuro.
Eduardo explicou-se como pôde. Alegou a doença de um amigo,
acrescentando que pouco lhe importaria perder o amigo por amor dela, mas que,
instado por dois outros em tom imperativo, tivera de ceder-lhes.
Maria Luísa acreditou
ou fingiu acreditar na desculpa. De um ou outro modo, é certo que ainda
derramou algumas lágrimas. Não sei que haja alguém que possa resistir às
lágrimas de uma mulher. Falo das lágrimas sinceras. É o que há mais poderoso
para desarmar a cólera ou comover o egoísmo. É como que um protesto de
fraqueza; e resistir-lhe não é de alma nobre, nem de consciência elevada.
As lágrimas tiveram efeito, mas um efeito excepcional; faltavam
a Eduardo as qualidades delicadas para apreciar o valor de uma lágrima sincera.
Era o amor-próprio que se comprazia em ver chorar aqueles olhos e comover-se
aquela alma. Seguiram-se protestos descarados, velhos respeitos, sem sentimento
nem valor.
Dizia Maria Luísa, enxugando os olhos:
— Vejo que me não
ama; vejo que me não compreende. Ah! se me compreendesse e amasse...
A isto respondeu Eduardo:
— O quê?... Não a
amo? Eu?! Não diga isso! mais que a vida... etc.
O leitor conhece o resto.
Enfim, a tempestade serenou. Despertou um sorriso nos lábios de
Maria Luísa, como um sinal de aliança. Eduardo mostrou-se satisfeito com o
desenlace e disse:
— Vê? A dor de a
ver em lágrimas retinha as minhas próprias. A alegria é mais expansiva; agora,
que a vejo alegre e me perdoa, sou eu quem chora!
Este rasgo tinha suas dificuldades; a maior era que chorar sem
lágrimas não convencia, e Eduardo tinha os olhos secos como os do leitor, que
ainda não teve, nesta história, motivo de chorar. Por isso, tirou da algibeira um lenço e levou aos olhos,
conservando-se algum tempo nessa posição.
Foi despertado por um pequeno grito de exclamação de Maria
Luísa. Tirou, ou antes, foi-lhe tirado o lenço da mão. Maria Luísa, depois de
olhar para o lenço, fitou os olhos em Eduardo, e perguntou-lhe:
— Quem é esta
Sara?
Eduardo estremeceu, olhou para o lenço, depois para Maria Luísa,
depois para o teto.
— É uma prima.
— Nunca me falou
nela, disse Maria Luísa.
— Isso que prova?
É de uma prima. Fui ontem visitá-la e trouxe este lenço. Está com ciúmes?
— Não, respondeu a
viúva.
E entregou-lhe o lenço.
Como o leitor adivinha,
era o lenço de Sara, que marcava a página de Paulo
e Virgínia.
Houve um silêncio entre ambos.
Maria Luísa refletia: — É
bem possível que o lenço seja da prima; por que não? Realmente, sou exigente
demais. Ele não parece mentir. Por que havia de mentir?
Depois levantou-se e disse sorrindo a Eduardo:
— Vou tocar
piano!:
Eduardo levantou-se e foi sentar-se ao pé do piano. Ela começou
a preludiar e depois a cantar aquela canção francesa tão conhecida e que
parecia adequada à situação.
J’ai peur de croire em toi.
Pourtant, malgré moi-même,
Ah! je le sens, je t’aime,
Toi, toi,
Toi, le seul bien pour moi!
J’ai peur, car dans mon coeur
Mon amère souffrance,
Toujours dans ton absence,
Vient flétrir mon bonheur!
Etc. etc.*
Pourtant, malgré moi-même,
Ah! je le sens, je t’aime,
Toi, toi,
Toi, le seul bien pour moi!
J’ai peur, car dans mon coeur
Mon amère souffrance,
Toujours dans ton absence,
Vient flétrir mon bonheur!
Etc. etc.*
Deixo ao leitor calcular quanta paixão a bela viúva empregou na
execução do canto. O próprio Eduardo pareceu um tanto convencido.
Enfim, o dia passou-se sem maior novidade no céu de amor de
Maria Luísa. Dissipadas as primeiras dúvidas, Maria Luísa sentia-se feliz como
dantes. Eduardo estava contente de si.
VI
Três meses decorreram depois
dos fatos que acabo de contar. Durante esse tempo, houve a reprodução das
mesmas visitas, alternadamente a Maria Luísa e a Sara.
Nem uma nem outra suspeitou nunca a felicidade de Eduardo. O
episódio do lenço foi esquecido pela viúva, em cujo coração o amor crescia
tanto como no de Sara, sem que entretanto o espírito de Eduardo se apercebesse
de que uma tal bigamia moral podia levar a sérias consequências.
Duas vezes, no espaço dos três meses, Maria Luísa, em conversa
com Eduardo, procurou encetar o assunto do casamento. O silêncio de Eduardo
parecia-lhe timidez e a coitadinha cuidava adiantar alguma coisa, iniciando uma
conversação a esse respeito.
Enganara-se. Eduardo, mal pressentia que o espírito de Maria
Luísa se voltava para a igreja, mudava de assunto com tão rara habilidade que a
própria moça não percebia a trama.
Das apreensões às incertezas, das incertezas ao desânimo, Maria
Luísa não podia atinar, nem com a natureza do amor de Eduardo, nem com os fins
de sua paixão.
Quanto a Sara, sentia-se feliz e nada ousava indagar nem saber.
Aquele amor eram as primícias do seu coração; Julgava-se uma Virgínia e pensava
ter encontrado o seu Paulo! A pobre menina não tinha nem o tato nem o contacto
do mundo; o tato para conhecer o espírito de Eduardo, o contacto para saber da
opinião, que faziam dele. Vivia isolada, no meio de sua família, julgando o
resto do mundo pela vida que levava e pelos afagos sinceros que recebia.
No fim do tempo de que
acima falei, em uma quinta-feira, preparava-se Eduardo para um baile que dava o
conselheiro C... Não sei por que motivo ou por que pretexto, Sara devia ir, e
Eduardo, cuja fome de amor por Maria Luísa já era conhecida, queria, coram populo, mostrar a nova
paixão ou, antes, a paixão concorrente da menina Sara.
Preparava-se, disse eu, mas não era bem isso, visto que eram
apenas dez horas da manhã. Preparava-se para saborear as delícias que a
admiração e a inveja lhe haviam de fornecer.
— Não há dúvida,
pensava ele, sou amado por aquelas duas mulheres. Ambas me querem; adoram-me
ambas. Mas por que motivo, eu, a quem tantas fortunas coube em sorte, estarei
tão orgulhoso com o amor destas mulheres? É que as amo. Não há dúvida, amo-as;
estremeço-as do mesmo modo. Diga lá o filósofo o que quiser, este duplo amor
não é impossível; tanto não é, que existe. Oh! se existe...
Eduardo fazia estas reflexões contemplando os novelos de fumaça
de um charuto havana. Tinha almoçado bem e fazia o quilo com aquele descanso
dos homens que não têm cuidado no que há de ser a refeição seguinte. Estava em
uma completa embriaguez dos sentidos.
Naquelas e em outras reflexões estava, quando o criado lhe
trouxe uma carta que o correio acabava de entregar.
Abriu-a e leu-a rapidamente. Era de Pedro Elói. Dizia o filósofo
de Petrópolis:
Meu caro Eduardo,
Resolvi mandar-te novas minhas, já que não me mandas as tuas.
Esperei o que podia esperar. De duas uma: ou esqueceste o velho amigo, ou
continuas embriagado nessa fatal paixão dos sentidos, dupla, segundo dizes e eu
acredito.
Em qualquer caso, interessa-me escrever-te.
Ah! Quem me dera ter-te agora no meu chalet, preso, atado,
amordaçado, vendado, inofensivo, para descanso da humanidade e para a
felicidade do meu coração!
Estou certo que os meus conselhos, o meu exemplo e até o meu
olhar bastariam para dar-te aquela regra de conduta, própria dos homens que
aspiram e têm o direito de aspirar.
Mas, enfim, deixemos lamúrias e falemos, conciso e preciso, do
que importa saber.
Vou apostar que as tuas duas paixões estão extintas, como já
estão extintas as fogueiras que arderam no último São João. Há de ser assim. É
da natureza desses assomos sensuais irem tão súbito como aparecem.
Se não é assim, deixa que te considere o mais infeliz dos
homens. Dirás que não é assim que te parece. Com efeito, aos espíritos jovens,
mais ou menos gastos, o futuro é nada, o presente é tudo. Não lhes falem do que
pode ser consequência dos atos de hoje. O que desejam é a satisfação dos
prazeres, a realização dos caprichos, sem cuidar no desenlace das coisas, nem
na lógica forçada do crime.
Escrevi a palavra crime, e não foi por engano. É preciso
dizer-te a verdade nua e crua. Ocultá-la, é ser de algum modo cúmplice nos teus
atos, e eu não quero para mim semelhante papel.
Dizes que amas a essas duas mulheres. Acreditem ou não
acreditem, é certo que lhes fazes compreender a tua paixão. Supõe que elas te
acreditem, e, por tuas maneiras e graças, consegues convencê-las, e mais,
fazeres-te amado.
O que resulta daqui? Resulta não uma iludida, mas duas; porque,
não amando nenhuma, e tendo a tua paixão mui estreito limite, ambas se acham
despojadas das ilusões do futuro e da fé que as alimentava.
Que acontecerá? Qual será a consequência desse desencanto? Sabes
tu a profundeza das duas almas, a quem iludes? Sabes de que serão capazes?
Pressentes o fogo em que vai queimando as mãos?
Falo-te uma linguagem em vez de outra; mas é a única que podes
ouvir agora. A que eu devera falar era a linguagem do dever; em vez de
indicar-te as consequências dos teus atos, eu devera dizer simplesmente que os
teus atos eram criminosos diante da moral eterna. Mas far-me-ia ouvir?
Se, em vez dos magníficos cabelos pretos que me adornam a
cabeça, e dos olhos vivíssimos com que neste momento olho para este papel, eu
tivesse honradas cãs e olhos moribundos, sei o que dirias ao ler esta carta.
Sou moço, como tu; sou apto. como tu, para as paixões; mas há uma diferença: eu
as domino, porque as paixões não são invencíveis, e só uma moral interesseira e
egoísta pode dá-las como tais. Tenho, portanto, além do meu conselho, o meu
exemplo.
Olha, por que não vens passar uns dias comigo? Eu te prometo que
começarei a cura do modo mais suave.
Se não vieres, sou eu que vou, mas conforme a tua resposta. E
repara bem: comigo é inútil o disfarce. Falta-te o talento de iludir a homens
experimentados. Se mentires, eu cá sei como te hei de ler.
Em qualquer caso, escreve-me: terei ao menos o prazer de ver
letras de um amigo.
Ah! se compreendesses bem o valor desta palavra!
Adeus. Sê prudente. O Espírito Santo te ilumine.
Pedro Elói.
O tom decisivo, a linguagem nua desta carta não convenceram
Eduardo. Não direi que o não abalassem. Custou-lhe engolir algumas expressões
duras de Pedro Elói. Mas o que era aquilo senão o que ele próprio pedira?
Eduardo pensou na resposta. Devia negar ou dizer a verdade? A
prevenção de Pedro Elói quanto à veracidade dos fatos indicara claramente que
era inútil a mentira. Não havia senão isto: ou dizer a verdade ou não escrever.
Eduardo refletiu alguns minutos; resolveu escrever dizendo a verdade, porém
mais tarde.
Deitou a carta na secretária, e ia sair quando lhe foi anunciada
a visita de Silvério.
Mandou entrar e daí a pouco o valente jogador de xadrez aparecia
à porta, com ar risonho e gesto afetuoso.
Era a primeira vez que Silvério visitava Eduardo. Por isso,
levou longos minutos a examinar e admirar a casa e a mobília, não se escondendo
para dizer o que achava de mais gosto ou de mais delicado.
— Isto é
propriamente uma casa de solteiro, dizia ele; mas, ainda casando, não sei que
haja muita mudança a fazer. Basta substituir estes quadros...
— Que quadros?
perguntou Eduardo.
— Estes, respondeu
Silvério apontando para umas gravuras que pendiam na parede, representando
cópias de várias estátuas célebres.
— Não me dirá por
quê, sr. Silvério? perguntou Eduardo, atirando-se a uma cadeira de junco.
— Não são
próprias, respondeu modestamente o antigo solicitador.
— Mas sabe o que
representam estes quadros?
— Pois não estou
vendo?
Eduardo contentou-se em sorrir.
— Substituídos os
quadros, creio que não há mais nada, continuou Silvério. Ah!... sim, ainda há.
É retirar esta caixa de fumo, estes cachimbos, estes charutos, enfim, tudo
quanto diz respeito ao vício de fumar.
— Isto é, se eu casar
devo renunciar às obras-primas da arte e às obras-primas da indústria.
— Eu lhe digo.
Sara não gosta de fumo...
— Sara! disse
Eduardo, levantando-se da cadeira.
— Ah! pronunciei o
nome... Não precisa vexar-se, maganão; já sabemos das suas artes... Fez-se
amado!... Oh! e muito! Pois é assim! Ela não gosta de fumo, não gosta nada,
mesmo nada, nada!
Eduardo estava espantado com as palavras de Silvério. Não
atinava ainda com o fim daquilo. Viria sondá-lo? Viria repreendê-lo? Na dúvida,
sentou-se vagarosamente na mesma cadeira e esperou que o ex-solicitador
continuasse.
Silvério puxou outra cadeira e sentou-se defronte de Eduardo.
— Pois, meu caro
Eduardo, é como lhe digo. Estão sabidas as suas travessuras. Sei que se amam
com fervor e creio que só um receio pueril e inexplicável tem retardado, de sua
parte, um pedido que só pode ser aceito com o maior alvoroço.
Eduardo, ouvindo estas palavras, calculou o pior; calculou que
Silvério era comissário do pai de Sara. Em tal caso, cumpria-lhe responder de
modo que nada sacrificasse. Ia falar, mas Silvério continuou:
— Não cuide, disse
ele, que venho aqui por inspiração de terceiro. Venho por minha própria
resolução. Mal soube do fato, corri a procurá-lo.
— E como soube?
perguntou Eduardo.
— Muito simples,
por boca de Sara.
— Ah! ela
contou...
— Contou tudo a
mim e ao pai. Oh! é um anjo aquela menina. Se visse a simplicidade com que ela
referiu os episódios do namoro, a franqueza com que exprimiu no que tocava à
paixão de que estava dominada, finalmente a sinceridade com que acreditava no
seu amor! Era de fazer verter lágrimas... Oh! é um anjo... Ora diga-me: ter uma
sobrinha assim não é uma ventura? E ter, além disso, um sobrinho como o senhor,
não é uma bem-aventurança? Que belos dias não passaremos! Ela reclinada em seu
ombro, e nós dois, em face um do outro, lutando palmo a palmo, peão a peão, uma
daquelas partidas que de um simples paisano se faz um general consumado!
Eduardo sorriu-se a estas palavras de Silvério. Depois,
procurando dar à sua voz alguma comoção, respondeu:
— É verdade que eu amo sua sobrinha. Era
impossível vê-la sem amá-la. Contudo, foi-me difícil declarar-lhe a minha
paixão. Poderia parecer a exigência de uma paga de um serviço que eu fiz como
faria a outra qualquer pessoa.
— Oh!...
interrompeu Silvério.
Eduardo continuou:
— Amo-a, sim, e
toda a minha ventura seria poder chamá-la minha mulher.
— Mas isso é o que
há de mais fácil.
— Sei. Se até
agora não tenho dado um passo para isto, é porque espero que se ultimem certos
negócios...
— Mas que negócios?
— Certos
negócios... Não está longe, posso afiançar-lhe, e nem eu deixaria passar uma
hora, apenas, sem munir-me do competente consentimento dela, e do pai. Creio
que já tenho o seu.
— Tem o de todos,
disse Silvério em voz de Estentor.
— Muito bem! Vejo
que a minha felicidade é completa!
— Pois, senhor,
não sei que negócios sejam esses, mas creio que se não dependesse disso a
decisão, já há muito estaria a menina pedida e concluído o casamento.
— Ah! com certeza!
— Não sabe que
mulher leva...
— Sei.
— É um serafim em
alma e corpo.
Aqui começou uma ode à beleza e à candura de Sara, perfeitamente
dividida em estrofes, antístrofes e epodos. Meia hora depois, Silvério saía de
casa de Eduardo, depois de abraçá-lo e instar com ele para que não deixasse passar
a ocasião de uma fortuna.
E mal saía o ex-solicitador, entrava um moleque de Maria Luísa
com uma cartinha para Eduardo. Dizia a cartinha:
Eduardo, — vou ao
baile do conselheiro C... Disseste-me que estavas convidado. Não faltes...
Tua,
Maria Luísa
Eduardo ficou alguns momentos sem pensar coisa alguma. Depois,
relendo o bilhete, pôde refletir sobre o caso. As duas mulheres iam achar-se em
presença. Poderiam não saber nada uma da outra, mas era possível que um nada
lhes derramasse a luz no espírito. Como evitá-lo?
Eduardo pensou em não ir ao baile; mas, além do resultado que
isso trazia, ocorreu-lhe que sua presença era até necessária, visto ser já
conhecido o seu amor por Maria Luísa e por Sara.
Não comparecer ao baile era fazer supor que a afeição por aquelas
duas mulheres, descendo à condição dos afetos comuns, tinha acabado como acabam
os afetos comuns.
E depois, se alguma coisa pudesse acontecer, não era melhor que
ele lá estivesse para desfazer uma impressão má ou desmentir uma suspeita?
Tais razões e outras mais decidiram Eduardo a afrontar as consequências
de um encontro entre as duas mulheres debaixo do mesmo teto.
Em consequência, preparou-se para ir ao baile.
As nove horas da noite entrava ele nos salões do conselheiro
C..., meio receoso, meio tranquilo, em todo caso orgulhoso com a circunstância
especial de achar-se diante das duas mulheres que se tinham apaixonado por ele.
Depois de fazer os cumprimentos devidos aos donos da casa,
indagou Eduardo se as duas tinham já chegado ao baile. Disseram-lhe que não.
Com efeito, correu toda a casa sem encontrar vestígios de nenhuma pessoa das
duas famílias.
Em uma das viagens que fazia em busca de Sara e Maria Luísa,
Eduardo encontrou os dois amigos que tinham aparecido no Rocio, no
dia em que, acompanhado por mim e pelo leitor,
fizera uma visita à viúva da Rua do Lavradio.
— Oh! tu por aqui!
disse um deles. É a primeira vez que apareces depois de tamanha ausência...
Bem-vindo sejas!... Mas aposto que a viúva está por cá?
— Não, respondeu
secamente Eduardo.
— Não? Então é que
há de vir. Muito bem... Estão mesmo uma corda e uma caçamba.
— Disseram-me no
outro dia, disse o segundo moço, brincando com a corrente do relógio, que
tinhas uma segunda namorada. Não quis crer...
— Por que não
quiseste crer? perguntou Eduardo.
— Ora, porque de
duas uma: ou não amas deveras, e então não terás duas, terás cem; ou amas
deveras, e então amar a duas é absurdo.
— Absurdo! disse
Eduardo.
— Pois não!
— Não achas?
perguntou o primeiro.
— Não acho. É
coisa muito possível.
— Aposto que amas
realmente as duas e deveras?
— Deixemos o
terreno dos fatos. Teoricamente, posso provar...
— Teoricamente,
prova-se muita coisa...
— Por exemplo,
prova-se que estás corrigido, que mudaste de sistema de vida, enfim que és
quase um santo; ora, não há maior falsidade...
— Por quê?
perguntou Eduardo meio sério.
— Porque essa
aparência de vida modesta e honesta, desculpa a dureza do coração. És o mesmo.
Estás mudando o ponto de vista e os meios de ação.
Eduardo sorriu-se e perguntou, pondo a mão no ombro de ambos:
— Dar-se-á caso
que vocês também se tornassem filósofos?
— Filósofos como Epicuro. Somos o que éramos dantes;
somente, somos e dizemos que o somos. Tu és e dizes que não és. Eis toda a
diferença.
— Deveras? disse
Eduardo.
— É certo. Anda
tomar um copo de Xerez. Dizem que o conselheiro oferece desse vinho delicioso
aos seus convidados conhecedores. Olha que é Xerez; é o vinho de Francisco I, o conhecedor de mulheres
como tu, lembras-te? Souvent femme varie...
— Salta gaiato!
disse alegremente Eduardo apartando-se dos dois amigos.
— Anda cá, disse
um deles. Olha!
Apontando com a mão para a escadaria que ficava próxima, chamou
a atenção de Eduardo para duas senhoras que entravam. Eram Maria Luísa e a mãe.
— Ah! disse
Eduardo.
E voltando-se para os amigos:
— Adeus, até logo!
Os dois rapazes afastaram-se rindo. Eduardo foi ao encontro das
duas senhoras.
Maria Luísa estava radiante. Tinha na verdade um porte de
grandeza natural, e quando os seus olhos se voltaram em roda dos que a
cercavam, parecia uma castelã antiga contemplando os cavaleiros preparados para
as justas. Trazia um vestido de seda cor de violeta com enfeites da mesma cor.
Os cabelos, penteados à Stuart, moda então muito em voga, faziam realçar um fio
de pérolas, cujo fecho de brilhantes em forma de estrela ficava-lhe no meio da
cabeça. Trazia na mão um ramalhete de violetas. Quando Maria Luísa entrou no
salão, onde as mais belas toilettes chamavam a atenção dos olhos
masculinos e seus apêndices —as lunetas —, houve uma espécie de rumor
admirativo.
Todas as belezas foram um momento esquecidas por aquela que
entrava vestida com tanta simplicidade e tão bom gosto. Maria Luísa, com aquele
instinto admirável das mulheres, reparou no efeito que produzia e não deixou de
gozar amplamente o prazer que lhe dava a geral admiração.
Os que a não conheciam indagavam do seu nome e os que a
conheciam respondiam aos interpelantes, repetindo-se às vezes o nome de Eduardo
como o senhor e possuidor daquele coração viúvo.
Eduardo, orgulhoso e radiante, olhava para todos do alto de seus
olhos e da sua felicidade, com certo arzinho de quem mofava dos outros: por serem
menos venturosos ou menos lestos.
Enfim, a vida do baile começou. Anunciou-se uma valsa. Eduardo e
Maria Luísa tomaram lugar entre os valsistas. Dentro de poucos minutos, pares
retiravam-se para dar lugar à valsa doida, entusiasta do moço e da viúva.
Conversava eu um dia com um dos meus amigos poetas, que a morte
levou, um talento que todos admiravam, um coração que muitos conheceram.
— Não sei,
dizia-me Casimiro de Abreu, como
se pode inventar a valsa, a melhor de todas as danças, para dançá-la em um salão
diante de cem olhos. A valsa é realmente a mais graciosa, a mais natural, a
mais bela das danças, mas nenhum olho humano deve presenciá-la. Então, os dois
valsantes, que se amam, que vivem um pelo outro, podem embriagar-se na valsa,
viver, não a vida do mundo, mas a vida dos anjos, a vida dos sonhos, a vida do
céu!
— Casimiro,
objetava eu, para dois corações que se amam, a multidão não é isolamento? E
quando um par se atira à sala, aos primeiros compassos de uma valsa, não lhes
desaparece tudo, não ficam eles sós, ermos, confundidos?
Casimiro adorava a valsa. Todos conhecem a bela poesia das Primaveras que traz este título.*
A minha objeção, no caso de Eduardo e Maria Luísa, tinha meia
aplicação ao fato; a viúva corria nos braços de Eduardo, e no meio dos cem
olhos que os acompanhavam, como se estivesse em um deserto. Esqueceu-lhe tudo
por Eduardo. Mas este não. Lembrou-se, e muito, que estava entre gente;
calculava, adivinhava, redigia consigo mesmo os ditos, as observações, os
olhares invejosos de toda aquela multidão.
Foi exatamente no fim da valsa que chegou a família de Almeida.
Os rumores que sucederam à valsa de Eduardo e Maria Luísa foram dobrados com a
presença de Sara.
Com efeito, se Maria Luísa tinha direito a excitar a admiração
geral, não menos tinha a filha de Almeida.
Vestia de um modo simples e elegante. Um vestido de seda
cinzento-pérola ocultava-lhe o corpo flexível e delgado. Os cabelos, penteados
em ondas, não tinham outro enfeite mais que uma rosa branca, presa do lado
esquerdo. No seio, que ondulava pelo cansaço e pela comoção, fulgurava uma
simples cruzinha de ouro, enfeite que Sara usava em todas as solenidades, por
ter-lhe sido dado por sua mãe.
Graças à vida retirada da família de Sara, ninguém ou muito
pouca gente a conhecia. A dona da casa encarregou-se das necessárias
apresentações.
Foram as duas
proclamadas as rainhas do baile.
Os cavalheiros dividiram-se em partidos, uns preferiam Maria Luísa, em quem
viam a expressão mais completa da mulher; outros davam a palma a Sara, cuja beleza
virginal e angélica inspirava ideias puramente do céu. Para uns, Maria Luísa
era a estátua descida do pedestal; para outros, Sara era um anjo foragido da
habitação divina.
No meio de tão divididas opiniões, Eduardo era o único que as
admitia ambas, e por ambas se bateria se necessário fosse. Eduardo foi procurar
Almeida, de cuja demora indagou com o maior interesse, ouvindo aliás as razões
dadas por aquele com a maior indiferença. Eduardo pôde falar a Sara, fê-lo com
todo o interesse de um amante saudoso. A moça parecia triste. Vinha imaginando
encontrar Eduardo aflito com a sua ausência e achou-o no turbilhão de uma
valsa, tão alegre ou mais que os outros. Mas este ressentimento no coração da
moça era passageiro. Nem ela procurava indagar mais nada. Sabia ela acaso que
Eduardo pudesse valsar com outra com a mesma efusão com que valsaria com ela? A
pobre menina notava o fato, mas não tirava dele nenhum corolário. E depois, as
maneiras de Eduardo convenciam tanto! No fim de dez minutos de conversação, Sara
esquecera tudo, e estava feliz. Como Maria Luísa, na valsa, deixou-se ir na
embriaguez da conversação e só se lembrou de que estava diante do homem que era
escolhido pelo seu coração. Tinha uma singeleza adorável que Eduardo não sabia
admirar, nem como amante, nem como poeta.
Não ocuparei o espírito do leitor com a narração do que se
passou durante a noite do baile, e corro já ao melhor episódio, ao que importa
saber em nossa história. Bem depressa se espalhou que as duas raparigas amavam
Eduardo e que este parecia amá-las do mesmo modo. Aos que o interrogavam
Eduardo respondia com o ar de homem que nega aquilo de que deseja convencer a
todos.
Chegou a passear com ambas, uma em cada braço, conversando
simbolicamente com ambas sem que elas se apercebessem de nada. Enfim, seria uma
hora da noite, já o baile chegara ao ponto culminante, em que as cerimônias,
sem desaparecerem de todo, dão lugar a uma respeitosa intimidade.
Sara e Maria Luísa, ou por simpatia, ou por força da fatalidade,
davam-se já como duas amigas. O conselheiro convidou Sara para cantar alguma
coisa. Sara estava cansada e pediu um quarto de hora. Durante este tempo
retirou-se para o gabinete que servia de toilette
das senhoras. Maria Luísa acompanhou-a.
— Precisava bem de
um momento de descanso, disse Maria Luísa. Como está fatigada, meu Deus!
— A falta de
hábito, respondeu Sara. Vivo sempre metida dentro de casa...
— Pois faz mal...
As flores fizeram-se para o ar livre.
Sara sorriu.
— Diga-me. Isto é
entre moças, pode dizer-se. De quantos rapazes tem visto hoje, nenhum lhe faz
palpitar o coração?
A moça olhou para Maria Luísa e respondeu:
— Oh! sim! Um!
— Ainda bem!
— Por que se
alegrou tanto?
— Por nada...
— Oh!
— Porque, se já
começa a amar, deve compreender-me... Também eu amo e muito!...
— Amar é tão bom,
não é? disse Sara, com uma adorável singeleza.
— Oh! se é!
suspirou Maria Luísa.
Calaram-se ambas. No fim de alguns minutos de contemplação
recíproca, as duas deitavam-se nos braços uma da outra.
— É o mais belo,
mais gentil, de quantos homens estão hoje nesta sala... Oh! eu excetuo o
outro...
Dizendo estas palavras Maria Luísa deu um beijo em Sara.
Sara respondeu.
— Não sei se este
é o mais belo e o mais gentil, sei que o amo. Se o não amasse, devia estimá-lo,
porque me salvou a vida vai para quatro meses...
— Ah! temos
romance?
— Não é romance, é
realidade.
— E casam-se?
— Não sei, mas não
penso nisso. Eu só faço o que ele quiser. Meu amor é um amor que não manda, nem
eu creio que haja outros.
Maria Luísa estava pensativa.
Sara continuou:
— Estará na sala?
— Quem? O meu?
— Sim.
— Está, creio eu.
E Maria Luísa foi à porta. Abriu uma fresta entre as cortinas e
procurou Eduardo com os olhos.
— Lá está ele...
Olhe!
— Onde está?
perguntou Sara.
— Ali encostado ao
piano, do lado de lá, brinca com a luneta. Vê?
Sara, com os olhos colados à fresta, acompanhava a indicação de
Maria Luísa.
Repentinamente deram
as duas um grito.
Sara tinha reconhecido
Eduardo; Maria Luísa viu na mão de Sara um lenço igual, com igual firma, ao que
surpreendera na mão de Eduardo. As duas mulheres olharam-se, mudas, alguns
segundos. Sara levou a mão ao peito. Parecia que se lhe quebrava o coração.
Maria Luísa, com o lenço nos olhos, foi cair sobre o sofá, dizendo:
— Oh! que fatalidade!
Sara, depois de alguns segundos, foi procurar uma cadeira e
sentou-se. Não pôde conter-se; as lágrimas rebentaram-lhe dos olhos. Houve um
grande silêncio entre ambas. Fora batiam palmas ao pianista que acabava de
entusiasmar o auditório tocando um coro de Dom Juan, de Mozart. Maria Luísa foi a primeira que
se levantou e falou a Sara.
— Faz bem em
chorar, disse ela. Era inocente, acreditou no amor dele. Sei quanto sofre pelo
que eu mesma sofro. Foi uma fatalidade. Ambas púnhamos nele a nossa esperança
com a nossa alma, ele enganava as coitadas de nós!
Sara não respondeu. Estava pálida como a morte. Maria Luísa
pensou que fosse desmaiar. Foi buscar água-de-colônia e prestou-lhe os mais
fraternais cuidados.
— Obrigada, não é
nada, passou, disse Sara.
Depois, enxugou os olhos e levantou-se.
Na sala, procurava-se a filha de Almeida para cantar. A dona da
casa dirigiu-se ao gabinete.
— Aí vem gente,
disse Maria Luísa, vêm procurá-la para cantar. Deve ir. Devemos sair juntas,
para que nada desconfiem.
Abriram-se as cortinas e viu-se saírem as duas moças, pálidas
como duas estátuas, com os olhos vermelhos. Sara mal podia ter-se em pé.
Obrigada a cumprir a promessa, Sara cantou. Mas que canto! Não eram notas, eram
palavras d’alma que saíam da menina desiludida e infeliz.
Quando acabou, corriam-lhe as lágrimas.
Ao pé dela, Maria Luísa a acompanhava no sentimento e nas
lágrimas silenciosas.
As duas infelizes saíram da sala no meio de aplausos comovidos.
VII
Passaram-se quinze dias
depois das cenas que acabo de contar.
No dia seguinte ao do baile, Eduardo foi visitar Maria Luísa;
encontrou-a na sala com a mãe. Eduardo, como sempre, entrou com o sorriso nos
lábios. Maria Luísa estava magra e tinha os olhos pisados. Ia perguntar o
motivo daquele abatimento, quando a viúva, dizendo-se incomodada, pediu licença
e retirou-se.
Eduardo esteve meia hora na sala conversando com a mãe de Maria
Luísa, que lhe respondia por monossílabos. Finalmente, despediu-se e saiu.
Estava humilhado.
— Que aconteceria?
perguntava ele. Ontem saíram do baile sem me falarem. Hoje tratam-me deste
modo. Que haverá?
De reflexão em reflexão, de recordação em recordação, Eduardo
pôde atinar com o motivo do desdém que recebera em casa de Maria Luísa.
Lembrou-se de ter visto a viúva e a donzela saírem do toilette, lívidas e abatidas.
Lembrou-se das lágrimas derramadas durante o canto no piano. Descobriu tudo.
— Que diabo!
pensava ele. Como hei de desenlaçar esta meada? Convencê-las é impossível; o
melhor é eludir* a questão. Mas como? Irei a Sara... Mas terei lá a mesma
recepção? Oh! É demais! Não! isso não! Maria Luísa não pode recusar uma carta
minha. É isto. Escrevo-lhe. No papel posso dizer mais facilmente aquilo que
convier; tenho a faculdade de rabiscar, alterar, adoçar, enfeitar, como me
parecer, as palavras... (*evitar,
esquivar)
Eduardo entrou em casa disposto a escrever três cartas. Uma à
mãe da viúva, endereçando-lhe outra para a filha, de cujo amor ela estava
ciente. A terceira carta era a Pedro Elói, contando-lhe a ocorrência e
pedindo-lhe um conselho. Ao mesmo tempo respondia à carta anterior.
O conteúdo das duas primeiras era uma série de frases ocas,
habilmente grupadas, em que Eduardo protestava o mais respeitoso amor por Maria
Luísa; quanto ao episódio do baile e ao amor de Sara, foi o mais sucinto que
pôde, dando uma desastrada explicação ao sentimento alegado pela filha de
Almeida.
Era, dizia ele, um serviço que prestava a uma menina, cujo
coração inexperiente se deixara apaixonar por ele. Não queria desenganá-la;
entretinha, por sua aquiescência, um amor sem alcance.
Mandou as cartas, mas nenhuma resposta obteve nesse dia nem nos
dias seguintes. Desesperou. Passava muitas vezes em frente da casa de Maria
Luísa; mas não via ninguém; as janelas estavam, as mais das vezes, cerradas.
Quanto a Sara, Eduardo com o receio de sofrer a mesma recepção,
não foi lá, esperando uma visita do pai ou do tio Silvério. Embalde esperou.
Era demasiado o desdém para que um coração vaidoso como o de Eduardo se
resignasse. Doía-lhe o desdém,
ardiam-lhe desejos de vingança. A vaidade, que até ali se empavesara com o amor
das duas mulheres, doía-se, agora, ressentia-se, pedia desforra. Ora, a vaidade
quando domina o coração do homem (e na maioria dos homens acontece assim) não
deixa atender a nenhum sentimento mais, a nenhuma razão de justiça.
Era, assim, atado a esta fogueira interior, como Eurico atado ao próprio cadáver, que
Eduardo passava os dias e as horas, sem ver nem procurar ninguém.
Quanto à carta escrita a Pedro Elói, resume-se em pouco. Ei-la:
Meu amigo,
Turba-se o horizonte. Aconteceu o que previas e eu não previa.
As duas sabem hoje do meu amor por ambas. Zangaram-se! Era bom se fosse só
isso. Creio que adoeceram. Tamanho desencanto não as podia conservar no estado
normal.
E isto tudo por um diabo, como eu. Diabo, sim; não digo
brincando; mas um diabo compassivo que ainda as estima e deplora.
Que queres? Sou feito assim. Tenho um coração evangélico; e não
posso ver sofrer, e sobretudo sofrer por minha causa.
Foi o caso. Não sei que fatalidade as levou ambas ao baile do
conselheiro C... Aí, deram-se, comunicaram uma à outra os seus sentimentos e
naturalmente foram além do que deviam ir, descobrindo a coroa. A coroa sou eu.
E demitiram-se os meus ministros...
Falemos sério; penalizam-me estas ocorrências.
São duas mulheres dignas do respeito e do amor que eu lhes
votava. Tenho a culpa de que as adorasse do mesmo modo e no mesmo grau? Se há
culpa nisto, é da natureza.
O que é certo é que não me querem receber e curvam-se a uma dor
que me lisonjeia, mas que me entristece.
Que devo fazer? Como reconciliar estes dois sentimentos e o meu
orgulho? porque enfim eu não quero esquecer, no meio de tais fatalidades, que
recebi do berço um dever de zelar a minha própria dignidade.
Aconselha-me e acredita-me
Teu
Eduardo.
Esta carta, como as outras, não teve resposta.
Vejamos
agora o que se passou nas duas mulheres a quem Eduardo bafejara com o hálito da
desgraça.
Maria Luísa chorou
muito durante o resto da noite do baile. E
quando a manhã rompeu, Maria Luísa estava à janela, chorando ainda em silêncio.
Sentia-se duas vezes viúva; legal e moralmente.
Os sonhos do futuro, as esperanças de sua felicidade sem igual, fora tudo um
castelo de cartas que desabou ao sopro de uma criança.
Era dia claro. Maria Luísa julgou dever curtir a sua dor e
mostrou-se alegre.
Não queria magoar a mãe. Banhou os olhos o mais que pôde e
deixou o quarto. Sua mãe a esperava para almoçar. Vendo-a triste, perguntou-lhe
se estava doente. Respondeu que se sentia fatigada. A mãe não insistiu. Durante
o almoço, a boa velha, para alegrar a filha, e distraí-la dos incômodos que
dizia ter, falou-lhe de Eduardo, das comoções que ambos deviam ter tido na
noite anterior, dos projetos do futuro.
O assunto não era próprio para alegrar Maria Luísa. Respondendo
por monossílabos, e interrompendo a conversa com assuntos diferentes, Maria
Luísa procurava desviar o espírito de sua mãe. Enfim, algumas vezes não podia
deixar de enxugar furtivamente uma lágrima. A velha reparou e perguntou-lhe por
que chorava.
— Por nada,
respondeu a viúva.
— Não é possível.
— Por nada,
afirmo-lhe.
— Não é possível.
Ah! não estás cansada, estás triste; tens alguma coisa que te faz sofrer. Dize
o que é... Não sou tua mãe?
— Minha mãe!
E Maria Luísa escondeu o rosto no seio da velha.
— Vamos lá! disse
esta. O que é?
— Ah! tenho
vergonha...
— Vergonha de quê?
— Eduardo não me
ama!
— Ah! — Não me ama, porque ama a outra.
— Quem?
— Sara, aquela que
cantou ontem, ao pé de mim, e que a todos comoveu. Ambas nos confessamos.
Maria Luísa repetiu tudo quanto acontecera no baile. A pobre mãe
estava comovida, triste, desesperada, ouvindo a narração que Maria Luísa lhe
fazia entre lágrimas de desespero e de dor.
Mas, que podia fazer a mãe da pobre moça? Uma só coisa: dar-lhe
uma consolação maternal e auxiliá-la em esquecer o ingrato. Quando veio a carta
de Eduardo achou ela que devia responder, sobretudo porque nos termos da carta
parecia estar provada a inocência de Eduardo. Maria Luísa foi inflexível; disse
que não se devia dar resposta alguma. Ah! é que naquele coração, ao lado de um
grande amor e de um grande desespero, havia um grande orgulho!
Quanto
a Sara, eis o que passara. Não temos necessidade de ir até à casa de Almeida; o
tio Silvério nos instruirá de tudo.
Um dia, de tarde, justamente quinze dias depois do baile,
Eduardo estava à janela de sua casa quando viu passar o tio de Sara.
Chamou-o e fê-lo subir, apesar dos protestos de ir apressado.
— Ora tinha que
ver! disse Eduardo indo receber Silvério. Não vê que o deixava passar sem dar
dois dedos de conversa!...
— Mas é que tenho
pressa.
— Qual pressa!
Sente-se um pouco. Em descansando, ganha novas forças, e ei-lo que aí vai mais
lesto ao seu destino.
— Vou para casa,
disse Silvério aceitando a cadeira que Eduardo lhe oferecia, e fazendo uma
careta à parte como homem contrariado.
— Toda a família
está boa?
— Está.
— É o que se quer.
Vai então tudo bem?... — Tudo,
não é exato...
— Pois há alguém
doente?
— Há.
— Quem é?
— Minha
sobrinha...
— Deveras?
— É verdade.
— Que doença?
— Eu sei! Adoeceu
no dia seguinte ao do baile; veio um médico e a primeira coisa que fez foi obrigá-la
a conservar-se de cama.
— Depois?
— Depois,
examinou-a e deu não sei que nome, à moléstia, mas afirmou que não era aquela a
principal.
— Então há outra?
— Há.
— Qual é?
— Diz o médico que é uma doença moral.
Lá levaram tempo imenso a consultá-la. Ela nada disse, isto é, não sei; não
sei; não sei; só sei que aquilo é a nossa desgraça, porque, se ela nos morre, é
como se nos fosse a vida, a alegria da casa... Adeus, sr. Eduardo, não posso
demorar.
Eduardo ouvira estas palavras com certa comoção. Quando Silvério
se levantou e se preparava para sair, Eduardo balbuciou algumas palavras. Era
um anjo que o inspirava; ia talvez sanar tudo com uma promessa.
Em um instante viu ele que se constituía o remédio supremo para
a enfermidade moral de Sara. Mas, enfim, o ente gredin, que, como diz A. Karr, todo o homem tem em si, desfez a
obra do ente honesto, Eduardo estendeu a mão a Silvério e pediu que o
recomendasse à família.
Silvério desceu cabisbaixo e triste as escadas da casa de
Eduardo. Quando se viu só, Eduardo refletiu na situação em que se achava. Das
duas mulheres que ele requestara tão seriamente e cujas esperanças honestas
alimentara com tanta perseverança, uma tinha morta a alma, a outra tinha morta
a alma e o corpo. Em seu coração, travou-se uma grande luta, entre o remorso e
a vaidade. O dever dizia-lhe que reparasse o maior mal, se não podia reparar
todos os males, mas um sentimento de amor-próprio, vão, cruel, imoral,
retinha-lhe os sentimentos bons e os impulsos generosos.
Nesta luta, esteve toda a noite. Quis dormir, não pôde; mal
fechava os olhos surgia-lhe o espectro de Sara pedindo contas do coração que
iludira e da vida que estrangulara.
Enfim, sobre a madrugada pôde conciliar o sono. Eram nove horas,
quando se levantou. Quem olhasse para ele, daí a meia hora, reconheceria que o
sentimento do dever triunfara, ao menos momentaneamente.
Eduardo vestiu-se e saiu. Tomou um tílburi e dirigiu-se para a
ponte das barcas.
Destinava-se a S. Domingos. Ia decidido a falar à moça, mesmo à
custa do seu amor-próprio.
A demora do vapor o contrariou. Tardava-lhe ver-se junto do
leito da agonizante para dizer-lhe:
— Vive!
Ora, a agonizante estava realmente agonizante.
Mas quem a visse não suporia que a morte se avizinhava tanto
dela. Tinha o rosto e os olhos serenos. Sorria mesmo ao pai, ao irmão e ao tio,
mas com o sorriso de quem entrevê as glórias eternas e já as compara às glórias
perecíveis desta vida.
O cortinado branco do leito parecia que amparava da luz um ente
que chegava ao mundo e não um ente que se ia dele, desgostoso e desiludido.
Em uma pequena mesa ao pé da cama havia um copo d’água, uma cruz
de ouro, a do baile, e uma rosa branca seca. Esta rosa era a que Eduardo dera a
Sara em troca de outra à porta do jardim. Sara, de tempos em tempos, voltava os
olhos para a flor, ficava muda e entrava a contemplá-la. Nessas ocasiões, o pai
da doente procurava distraí-la com algum outro objeto, temendo que na
contemplação da flor se lhe avivassem as lembranças do amor que a matava.
Foi em uma dessas ocasiões, que Almeida se lembrou de uma
notícia e disse a Sara:
— Minha filha,
vais ter uma visita.
— Quem é?
— Adivinha...
— Não sei, disse
Sara sorrindo.
— D. Maria Luísa.
Este nome fez estremecer Sara. O pai dava-lhe maior sofrimento
procurando tirar-lhe outro menor. Com efeito, a flor lembrava a Sara o tempo
feliz dos seus amores; o nome de Maria Luísa lembrava-lhe a traição de Eduardo.
Reconhecendo o que fizera, Almeida procurou diminuir o efeito.
— Verás como ela
soube resignar-se... Espero que o exemplo te sirva, e que das suas palavras
colhas uma lição e um conforto, e finalmente que vivas... Ouviste? que vivas!
Sara sorriu-se.
Houve um silêncio.
Depois, passando a mão pela cabeça, pediu água.
Deram-lha.
— Estás melhor,
não, Sara? perguntou Almeida. Olha, é preciso, é preciso; fazes anos amanhã.
Quero que presidas à mesa... sim?
— Estou melhor,
estou, meu pai. Mas, diga-me, como sabe da visita de Maria Luísa?
— Passei ontem lá
e subi. Não sabia ainda que estavas doente. Quando lho disse, ficou muito
pesarosa. Depois, disse-me que viria cá fazer-te uma visita.
O resto do dia passou-se sem novidade. Sara não saía daquela
serenidade, mas realmente não era para a vida, era para a morte que caminhava.
Enfim, no dia seguinte, isto é, no dia em que Eduardo resolvera
ir salvar a moça, aparecem, à porta de Almeida, Maria Luísa com sua mãe.
Sara recebeu a sua rival, ou antes a sua co-mártir, como se fora
uma irmã querida, por quem se espera para morrer. Maria Luísa chorou muito; e,
por uma inversão dolorosa dos papéis, era Sara quem consolava a viúva.
— Mas é por ti que
eu choro, meu anjo! dizia Maria Luísa.
— Por mim?
— Sim, por ti, que
não tens coragem, que te quebraste ao primeiro embate da vida...
— Não digas
isso... Eu estou boa... Nada tenho... Sofri, é certo; mas passou... Olha, faço
hoje anos... Hás de jantar comigo... Vou levantar-me logo... Verás... Verás...
Senta-te...
Maria Luísa olhou com olhos rasos de lágrimas para a pobre moça.
— Ainda bem, minha
filha, disse Almeida procurando sorrir, ainda bem que te mostras assim. Isso é
que eu quero. Não te importes com os males da vida; todos sofrem; mas faze como
fazem muitos: fica sobranceira a tudo.
— Dezessete anos!
murmurava a viúva... é a aurora da vida...
As duas conversaram largamente. A mãe de Maria Luísa e o pai de Sara
deixaram o quarto; as duas podiam folgadamente falar do que as tornara
infelizes. Era assim mais fácil a Maria Luísa inspirar a Sara os sentimentos de
coragem e sobranceria a que ela própria devera não ter sucumbido. Chegou mesmo
a aventurar uma ideia de vingança como satisfação do coração ofendido.
Mas aqueles dois corações, que concordavam em um ponto, não se
entendiam naquele.
Sara não era feita para resistir a uma comoção como a que a
prostrara. Ouvia sorrindo Maria Luísa, mas abanava a cabeça a tudo. E quando a
viúva, para decidi-la mais, lembrava-lhe que poderia sucumbir deveras, Sara
respondia que estava perfeitamente boa e não podia inspirar cuidados a ninguém.
Esta resistência aos que a chamavam à vida comovia ainda mais. Só havia um
meio, talvez, de salvar Sara: era a presença e o amor de Eduardo.
Esta ideia passou rápida pelo espírito de Maria Luísa. A nobre
mulher não discutiu consigo nem o ato, nem as consequências, nem o seu coração.
Adotou o pensamento como se fora inspiração do céu.
Maria Luísa amava realmente Eduardo. Desiludida, sofreu muito, e
só deveu ao orgulho e à energia do seu coração não ter, como Sara, sucumbido ao
desespero. Mas os grandes sentimentos do seu coração não eram só o do amor e o
do ciúme. O ato que ia praticar era de uma alma nobre, educada no culto do
dever e do sacrifício. Naquele instante, ela via diante de si uma pobre menina
que sofria, e morria por aquele mesmo que a fizera sofrer. Compreendia bem a
medida desse sofrimento. A viúva procurou sondar o espírito da enferma:
— Ora, dize-me, se
visses Eduardo, o que farias?
— Se o visse? É
impossível.
— Impossível, por
quê?
— É impossível.
— Ora, não digas
isso. Mas se o visses, se ele viesse agora, hoje, e te dissesse: Vive?
— Não vem e não
diz...
— Por quê?
— Por que não me
ama.
— Quem sabe?
— Oh! Nem me ama,
nem te ama.
— Só por isso?
— E também porque
nós o amamos.
— Eu não.
— Não?
— Não.
A moça abanou a cabeça murmurando: inútil.
Maria Luísa procurou meio de escrever a Eduardo; e conseguiu
traçar à pressa, em um quarto de papel, as seguintes palavras:
Quer o perdão que me pede? Sara está às portas da morte; venha,
diga-lhe que a ama, peça-a e case daqui a um mês. Está perdoado.
Maria Luísa.
O portador que levou este bilhete encontrou Eduardo na ponte das
barcas da corte.
Eduardo, ao ler o bilhete da viúva, sentiu-se humilhado.
Enganara duas mulheres; uma morria de pesar, outra pedia-lhe que a salvasse,
sacrificando-se; entre aquelas nobres almas, a alma de Eduardo sentia-se
abatida. Não se deteve mais; tomou a barca, que partiu dali a cinco minutos.
Logo depois de partir o portador do bilhete, entrou o médico na
casa da doente. Achou-a muito pior, e disse-o francamente à família.
Que fazer? Tudo o que foi preciso, fez-se. Maria Luísa,
ajoelhada diante de um oratório, pedia a Deus duas coisas: que prolongasse a
vida de Sara por algumas horas e apressasse a chegada de Eduardo.
Foi inútil. Sobreveio uma crise à enferma, e após a crise o
médico desesperou.
Entretanto, Sara, com o sorriso nos lábios e o olhar sereno,
dizia alguma palavra em voz já muito fraca, mas com a segurança de quem está
certa de ir para uma morada melhor.
Maria Luísa pedia-lhe que vivesse; dizia-lhe que Eduardo não
tardaria; o pai a um canto não tinha forças para ver, para pedir, nem chorar;
estava atônito.
— Não, dizia ela,
ele não vem. E que venha, sei que não me ama, e sem me amar não o quero.
O médico fez vir o sacerdote.
Quando este chegou, Sara, com os olhos fitos, como que vendo já
abrir-se-lhe o céu, pediu a Maria Luísa que lhe desse a rosa seca que estava
sobre a mesa.
Maria Luísa deu-lha.
— Desejo esta
flor, porque me lembra o amor que eu supunha ter achado; é o homem de ontem que
eu choro! é por ele que morro; o de hoje não é senão a sepultura do de outrora,
que morreu.
Houve um silêncio.
Almeida chegou-se à filha, a fim de prepará-la para a confissão.
Sara estremeceu.
Depois, voltando-se para Almeida, disse:
— Meu pai,
abençoe-me. E tu também minha irmã.
Depois, estava no céu.
VIII
Meia hora depois entrava
Eduardo à porta de Almeida. Viu tudo fechado; correu-lhe um calafrio por todo o
corpo. Será tarde? perguntava ele. Vacilou; entraria ou não? Se entrasse e
achasse tudo perdido? Enfim, fazendo um esforço, Eduardo passou o portão que se
achava perto. Atravessou a alameda das roseiras, onde pela primeira vez falara
de amor à pobre Sara. O remorso começou então a aguilhoá-lo. Aquele silêncio,
aquele ar fúnebre, que a casa e o jardim respiravam, incutiam-lhe certo terror.
Chegou à porta e bateu.
Veio abri-la o pai de Sara.
— Sara? perguntou
ele.
— Sara morreu!
O moço tornou-se lívido. Sentiu uma vertigem; os olhos se lhe
escureceram, ia cair. Segurou-se a uma cadeira.
O pai de Sara olhava fixo para Eduardo. Este não podia
suportar-lhe o olhar, e baixava os olhos. Naquele momento, o pai de Sara era o
remorso vivo.
Depois de um pequeno silêncio, Almeida falou:
— Era inútil tê-la
salvado do mar há quatro meses, para matá-la agora. Se tal devia ser o
desenlace destas coisas, melhor fora que a minha pobre filha tivesse sucumbido
à primeira vez; iria assim para o outro mundo sem conhecer as misérias deste...
— Oh! basta!
interrompeu Eduardo. Sei quanto sou culpado, não aumente a minha angústia com
as suas exprobrações, aliás justas.
O velho sorriu-se tristemente, como quem ouvia duvidoso as
palavras do outro.
Depois:
— Vem dar-me os
pêsames, não é? continuou ele; muito obrigado.
E foi sentar se no sofá, derramando silenciosas lágrimas.
Eduardo esteve alguns momentos contemplando aquela dor muda e
respeitável. Depois, dirigiu os olhos para a porta do quarto mortuário. Ouviu
que partiam de dentro soluços abafados. Dirigiu-se para a porta.
Maria Luísa ajoelhada aos pés da cama, contemplava, chorando, o
cadáver de Sara. A morta parecia sorrir ainda: dissera-se que sonhava um sonho
cor-de-rosa.
Eduardo sentiu rebentarem-lhe dos olhos as lágrimas. Ajoelhou-se
silenciosamente ao pé da porta e olhou para Maria Luísa.
Não lhe viu o rosto, mas conheceu-a.
Durou muitos minutos esta cena muda. Finalmente, Eduardo
levantou-se e dirigiu-se para o leito da finada. Aí, com os olhos rasos de
lágrimas, disse para o cadáver:
— Perdoa-me!
Adeus!
E saiu da casa, louco, desesperado.
IX
Eduardo andou muitas horas
sem saber de si. Acompanhava-o o espectro de Sara. Ouvia-lhe as palavras;
parecia vê-la morrer, esperando embalde por ele.
De um triste jogo, em que a sua vaidade entrara por muito,
resultaram tão funestas consequências. Sua dor era sincera; seu terror
verdadeiro. Até ali, de seus caprichos dom-juanescos só resultaram, quando
muito, desgostos passageiros que o tempo ou outras circunstâncias atenuavam e
faziam desaparecer. Mas no dia em que se deitara a amar deveras, ou antes, no
dia em que desejou amar, as vítimas do seu capricho sucumbiram. Via-se autor de
uma morte; e os espíritos da ordem de Eduardo podem cometer todas as ações
covardes, mas não resistem a um espetáculo destes. Fazer perder-se uma donzela
ou separar um casal, é uma façanha mais ou menos celebrada, mais ou menos
aceita; mas impelir para a sepultura um ente a quem se enganou, eis o que faz
estremecer os audazes. Eduardo, preso de remorso, apreciava toda a extensão do
abismo em que caíra.
Os sentimentos vivos
da dor e do remorso, as ideias tumultuárias e cruéis, encheram por longo tempo
o espírito e o coração de Eduardo. Ora parecia-lhe dever fugir à vida e ir
alcançar a donzela no caminho da eternidade, para pedir-lhe perdão. Ora julgava
que devia ficar neste mundo, para purgar em longo sofrimento o crime que
cometera.
Nesta incerteza, neste suplício moral, andou até que se achou
diante do mar. Sentou-se pensativo em uma pedra. Era quase noite. Muita gente
que o viu supô-lo doido.
Estava ali, havia já alguns longos minutos, quando um homem
parou e procurou descobrir-lhe as feições. Eduardo tinha o rosto fechado nas
mãos. Depois de alguns instantes o homem exclamou:
— Eduardo!
— Que é? disse o
moço, estremecendo.
Voltou e reconheceu o interlocutor;
— Pedro Elói!
Eduardo caiu-lhe nos braços.
Depois de alguns momentos, Pedro Elói perguntou;
— Que há?
— Sara morreu!
— A donzela?
— Sim!
— Desgraçado! É
obra tua!
— Ah! não aumentes
a minha dor e o meu terror; bem sei o que fiz; vejo a enormidade do meu crime.
E o moço derramava sinceras lágrimas.
Pedro Elói continuou:
— Se tivesses
atendido aos meus conselhos, tinhas poupado este desgosto e este remorso. Bem
te dizia eu que não iriam a bons resultados as tuas paixões simuladas. Não
quiseste crer, ou antes a tua vaidade recusou-se a crer. Enfim, vê se eu tinha
razão!
Houve um silêncio entre ambos.
— Está acabado
tudo; agora só resta uma coisa; é seres o carrasco de ti mesmo, como aquele pai do teatro latino. Eia! se alguma
coisa pode agora levantar-te aos olhos do mundo e aos teus é a volta aos
deveres morais. Sirva-te a morte de Sara, tua vítima, como ponto de partida
para a tua regeneração.
E dizendo isto, Pedro Elói arrastou Eduardo.
Pedro Elói, recebendo em Petrópolis a carta de Eduardo, receou
pelos resultados dos acontecimentos narrados nesta carta. Logo que pôde pôs-se
a caminho para ver se ainda podia fazer alguma coisa. Chegando à cidade foi
procurar Eduardo; disseram lhe que partira para S. Domingos.
Como saberia ele a casa de Sara? Ninguém podia dizer-lhe em casa
de Eduardo. Apesar de tudo, tomou o caminho da barca de S. Domingos e
dirigiu-se para lá. Foi quando encontrou Eduardo.
No sétimo dia ao da morte de Sara, Pedro Elói conseguiu levar
Eduardo para Petrópolis. Eduardo não quis deixar de ir orar pela vítima, a um
canto da igreja, na missa do sétimo dia. Todos viram o moço ajoelhado, com o rosto
coberto; foi o primeiro que entrou e o último que saiu.
X
A obra de Pedro Elói teve
feliz resultado. Eduardo converteu-se ao dever, depois de um longo suplício.
Maria Luísa, cuja alma também morrera, refugiou-se no mais
completo isolamento.
Quanto à família de Sara, nunca mais teve um momento das
alegrias puras que a presença da querida menina lhe dava.
Eduardo, inteiramente outro do homem que fora antes, pôde
desligar-se da companhia do amigo Pedro Elói sem perigo para si.
De oito em oito dias fazia uma peregrinação ao cemitério de
Maruí, onde repousavam os restos daquela que o amara até à morte.
Impôs-se esta visita, não só como dever, mas até para ter sempre
à memória a tragédia doméstica em que fora protagonista.
De quando em quando, os dois amigos visitavam-se, mas
comunicavam-se sempre por cartas, em que um mostrava toda a sua satisfação em
ter convertido um homem e o outro a maior saudade do bem que pudera ter e a
esperança de que a sua conversão teria em paga na eternidade a vista eterna da
alma bem-aventurada de Sara.
CONCLUSÃO
Depois
de contar esta história, o leitor e eu tomamos a nossa última gota de chá ou
café, e deitamos ao ar a nossa última fumaça do charuto.
Vem rompendo a aurora e esta vista desfaz as ideias, porventura
melancólicas, que a minha narrativa tenha feito nascer.
FIM
COMENTÁRIOS
Este conto
é daqueles que Machado de Assis precisava fazer para sobreviver e cativar
espaço junto ao público leitor de contos e romances de folhetim como aqueles
escritos por José de Alencar.
O conto é
longo (quase 50 páginas) e o final é daquele jeito que estamos acostumados nos
romances românticos.
Resumindo, uso as palavras do
narrador:
O amigo de Eduardo conseguirá
mudá-lo?
“Perguntará o leitor como é que um homem de
tão bom senso como Pedro Elói parecia tão amigo de Eduardo. A resposta está
contida nas duas cartas que eu já li. Pedro Elói, com um olhar de filósofo, via
que não era impossível trazer Eduardo ao bom caminho. Os defeitos morais podem
levar a consequências grandes, mas com a austeridade da lição e da prática são
suscetíveis de desaparecer e tornar-se melhor o espírito em que eles existem.
Pedro Elói tentava isto de longa data; e, como vemos, era um santo e um
filósofo. Tinha conseguido tudo quanto desejara?”
Depende, né? Vale a lição ter
custado a vida de uma jovem donzela?
“A obra de Pedro Elói teve feliz resultado.
Eduardo converteu-se ao dever, depois de um longo suplício.”
Machado (o narrador) descreve a
jovem primeiro com cabelos negros e depois com cabelos alourados (será que já
era como hoje, onde a cor do cabelo é só um detalhe para combinar com a
roupa?):
Sara
morena:
“Nisto estava, quando a moça, que parecia
nada temer e arredava-se da praia mais do que era conveniente, foi engolida por
uma vaga. Só flutuavam à flor d’água os longos e negros cabelos.”
Sara
alourada:
“Era um alfenim, uma delicadeza que não
parecia natural. Delgada e um tanto alta, olhos negros, cabelos alourados, porte senhoril sem altivez, elegante sem
artifício, graciosa sem afetação: tal era Sara.”
O amor romântico impossível, onde a
soma de duas almas é igual a uma (shakespeare que me desculpe, mas não dá, né!)
“Ora, sério. Admites em toda a sua pureza
moral a reunião de dois amores? Pois o amor, isto é, a mais completa fusão de
duas almas, pode ter por objeto dois objetos?”
“Reflete, entra em ti mesmo, envergonha-te do
erro em que estás. Vê bem que não amas nem a viúva, nem a donzela. Amas a uma
só criatura, és tu mesmo. É o amor dos sentimentos que se pode dividir, que se
divide, que se prostitui, que se desvaira.”
A favor de uma mentira, basta uma
boa lisonja
“A humanidade é feita deste modo. Dispensa a
verdade, uma vez que lhe preguem uma mentira lisonjeira.”
Essa é demais: as mulheres italianas
e as mulheres alemãs!
“Se a compararmos à viúva, teremos, conforme
a respectiva presença, a disposição do gênio de cada uma. Maria Luísa amava
como as italianas: era ardente, apaixonada, violenta. Sara amava como as
alemãs: era meiga, resignada, sentimental.”
Ufa!
Texto longo, mas conhecimento novo!
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