sexta-feira, 27 de março de 2020

Eleições Cassi em tempos de pandemia




Opinião

"Creio que não seria má ideia telefonar ao ministério a pedir informações sobre como está a decorrer o acto eleitoral aqui e no resto do país, ficaríamos a saber se este corte de energia cívica é geral, ou se somos os únicos a quem os eleitores não vieram iluminar com os seus votos..." (SARAMAGO, Ensaio sobre a lucidez, 2004)


A literatura mundial tem muita matéria disponível para ilustrarmos o cenário que vivemos nesses tempos disruptivos ou quase distópicos. Os "Ensaios" de Saramago são obras que poderiam se encaixar como uma luva no caso brasileiro para explicar no que nos transformamos em tão pouco tempo com as consequências da Lava Jato, a negativa do PSDB em reconhecer o resultado das eleições presidenciais de 2014 e o golpe de Estado em 2016. Vejamos um diálogo de personagens de Saramago:

"- Por que foi que cegámos, Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão, Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cegámos, penso que estamos cegos, Cegos que veem, Cegos que, vendo, não veem." (SARAMAGO, Ensaio sobre a cegueira, 1995)

Uma década antes da visão dantesca de destruição total do país sob a égide de Temer e do clã Bolsonaro e apoiadores babando ódio de tudo e todos, nosso país caminhava para ser a quinta economia do mundo, nossas empresas cresciam e vendiam serviços no mundo todo e o crescimento interno ia muito bem; o país era respeitado pela diplomacia mundial; havia oportunidades para todos e as pessoas eram felizes independente de suas posições pessoais de mundo; o desemprego era baixo e havia ascensão nos direitos em geral; havia liberdade e democracia e melhor distribuição da riqueza produzida no país. Pois é, essa era a realidade há poucos anos.

Mas não vou falar do Brasil agora. Quero falar é sobre o processo eleitoral da nossa querida Caixa de Assistência dos Funcionários do Banco do Brasil, a Cassi, a mais antiga autogestão do país e que até pouco tempo era e poderia continuar sendo a maior autogestão em saúde dos trabalhadores do Brasil. Uma associação que era inclusiva e solidária em seu modelo de custeio mutualista intergeracional, no qual todo associado principal, a matrícula funcional, pagava a mesma porcentagem de seus rendimentos para participar do sistema de saúde com os mesmos direitos de acesso.

Hoje se encerram as eleições para parte da direção da entidade. É a primeira eleição regida pelas regras do novo estatuto social, que foi levado à consulta do corpo social faz poucos meses. Aliás, o resultado da consulta ao corpo social que gerou o novo estatuto está sendo questionado na justiça por divergências de entendimento por parte de segmentos de associados.

Antes do processo eleitoral, o país já vivia o cenário de destruição política, econômica e social que todos sabemos. A própria autogestão também vinha de processos desgastantes de embates entre capital e trabalho - patrocinador e associados -, desgastes oriundos de divergências normais entre os grupos políticos da comunidade BB por causa dos recorrentes desequilíbrios econômico-financeiros da operadora, e não vamos entrar aqui no mérito dos motivos diversos dos déficits dos planos de saúde da autogestão.

Ao olhar o painel de votação no site da Cassi do dia de ontem, 26 de março, uma certeza podemos ter ao analisarmos os números até às 17h: é uma das piores participações sociais em processos eleitorais na história recente da Cassi.

Será que isso é consequência da falta de "energia cívica" como diz a personagem de um dos "Ensaios" de Saramago?

A Cassi tem desafios difíceis pela frente. Os associados e futuros não associados - mas que seguirão sendo da comunidade BB e que deveriam estar associados à Cassi - têm desafios maiores ainda, caso queiram resgatar seus direitos na Caixa de Assistência. E uma das formas de organizar boas lutas por direitos é termos democracia na associação, termos boa participação social (pertencimento) e, consequentemente, boa representatividade dos dirigentes eleitos (estarem empoderados politicamente).

O processo eleitoral da Cassi deveria ter sido interrompido, suspenso, refeito, ou coisa do gênero, assim que o fator externo "pandemia do coronavírus - Covid-19" começou a alterar a normalidade do cotidiano do povo brasileiro, fato que coincidiu com o início da votação a partir da semana passada, dia 16 de março. Algumas decisões precisam de sensibilidade dos líderes dos processos e nem tudo deve estar alheio aos fatores que afetam a vida dos seres humanos, como se na sociedade humana tudo fosse "uma questão técnica".

Que representatividade terão os vencedores dessa corrida eleitoral na Cassi com os baixíssimos índices de participação de bases sociais importantíssimas da Caixa de Assistência? Estou usando os superlativos de propósito. A pandemia é superlativa e os 90 mil bancários estão com a cabeça em muitas coisas, como suas saúdes, a de suas famílias, seus medos e ansiedades pela exposição ao vírus etc, menos nas eleições da Cassi. O mesmo se dá com os aposentados: muitos estão sozinhos em quarentena, sem o carinho e companhia dos filhos e netos, ansiosos e com medo. Mil coisas passam por suas cabeças, menos a eleição da Cassi.

Até ontem, a participação dos associados do Rio de Janeiro para a eleição da diretoria e conselho deliberativo era de 30,13%, menos de 1/3 do eleitorado. Pior ainda para a eleição do conselho fiscal, 26,4%. Outros colégios eleitorais gigantes como SP, MG, DF e BA tinham índices de participação entre 33% e 40%. É muito baixo! Sem contar que não sabemos quantos eleitores decidiram votar "branco" ou "nulo", como ocorreu no "Ensaio sobre a lucidez" de Saramago.

Dos 166 mil associados com direito a voto, somente 64 mil votaram até ontem para diretoria e CD, cerca de 38%. Que representatividade política terão os eleitos para falar de igual para igual com o patrocinador nestes tempos difíceis que a Cassi enfrentará para sobreviver em um sistema de saúde brasileiro fragilizado por crise nunca vivida no setor? E pergunto isso, independente de vencer a chapa a, b, c, d, e, f. Quando fomos eleitos em 2014, só a nossa chapa obteve 31,5 mil votos (de 84 mil votos válidos). Em 2016, a chapa vencedora obteve 30,5 mil e em 2018 a chapa vencedora obteve 36,9 mil votos num processo com quase 100 mil votos válidos.

Enfim, acho lamentável a decisão tomada pela Cassi em manter o processo eleitoral em meio ao cenário externo que paralisou o país nas últimas duas semanas (e o mundo nos últimos meses). Entendo que seria mais adequado e mais oportuno que o processo se realizasse em outro momento. Seria melhor para todos, todos os envolvidos na gestão e na utilização de nossa Caixa de Assistência. Precisaremos de muita informação correta e unidade para que a Cassi supere o cenário dramático que virá do setor de saúde brasileiro.

William Mendes
Associado Cassi e Previ


Bibliografia:

SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo, Companhia das Letras, 1995.
SARAMAGO, José. Ensaio sobre a lucidez. São Paulo, Companhia das Letras, 2004.

Site da Cassi, hotsite eleições 2020.

2 comentários:

futebol disse...

Nobre William. Primeiramente, um abraço virtual. Sua lembrança de Saramago, ilumina a cegueira, ou melhor, a compreensão da cegueira dobre quem não quer enxergar. A cegueira também pode estar na soberba, a falta de humildade, na fraternidade. Lembro do grande Telê Santana, que não levou Renato Gaúcho. Fez falta. “Bota ponta”, brincava Jô Soares. Estrategicamente, a esquerda perdeu-se. Perdeu nos detalhes, na desunião e, por que não, na fogueira das vaidades. Não sou Carola, mas gosto muito do sentido filosófico de Eclesiastes : Porque o que sucede aos filhos dos homens, isso mesmo também sucede aos animais, e lhes sucede a mesma coisa; como morre um, assim morre o outro; e todos têm o mesmo fôlego, e a vantagem dos homens sobre os animais não é nenhuma, porque todos são vaidade.

Eclesiastes 3:19

William Mendes disse...

Companheiro, tem sentido o que você reflete no comentário, tem sentido. Aliás, pode ser que as fogueiras de vaidade (ou personalismo estúpido mesmo) façam com que a classe trabalhadora perca muito mais neste momento da história. Nós da comunidade BB estamos meio perdidos com as lideranças que temos nas entidades, estou desesperançoso em relação a isso. Abraços fraternos! (o resultado das eleições Cassi já era o previsto: esquerdas desunidas e divididas; vitória da direita e do patrão)