sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

Narrativas curtas - Ano Novo







Ano Novo

Ela gostava da natureza. Nunca pôde falar muito sobre isso em casa porque a questão era tratada como bobagem, coisa de mulherzinha ou de gente sentimental. Gostava de flores e de pássaros.

A manhã estava silenciosa. Manhã de ressacas, primeiro dia do ano.

Levantou-se e perambulou pela casa enorme. Ainda se lembrava das falas, gritos, urros, das frases machistas e sexistas ao redor da mesa do réveillon. À medida que bebiam, mais falavam mal de mulheres. Como pode ninguém fazer nada contra isso!, pensou.

Acordou cansada, com um desânimo em relação ao futuro, ao futuro dela, uma menina no centro do poder, sem poder algum de decidir sua vida. Queria uma vida diferente. Estava cansada de ser julgada por causa de seus familiares, pelo meio onde vivia.

Às vezes, pensava besteira, pensava loucuras. Já estivera a ponto de fazer bobagem ao ver algumas das armas em cima de criados-mudos, mesa de jantar, mesinha da sala, ao lado de copos e garrafas. Ela cresceu vendo o manuseio daquilo como se fossem facas de cozinha no café da manhã.

Um novo ano começava. Nada de novo começava. A vida seguia para ela como no dia anterior. Marcada e julgada dentro e fora de casa por aquilo que ela era: uma menina dentro daquela família. A chacota de todo mundo.

O pior de tudo é que nem se achava bela, recatada e do lar. Era mulher. Mulherzinha. Era somente o fruto de uma fraquejada, como ela e amigas passaram a ser chamadas pelas costas ou nas horas de discussões ruins.

Queria mudanças em sua vida. Estava cansada de tudo aquilo. Mas tudo que via pela frente no ano novo era a repetição dos anos velhos, nada sinalizava mudanças em sua vida.

Na varanda da casa, via os pássaros cantando naquela manhã de sol. Seus passos rumo ao quintal espantaram os pássaros, que pousavam naquela grama sempre atentos aos ataques, pois ali não gostavam da natureza. Quando não era algo jogado neles, era tiro que deixava um deles morto no chão.

A menina viu a arma esquecida ao lado da churrasqueira, entre garrafas de uísque e copos.

Entrou silenciosamente em casa. Avançou pelos corredores e foi para o banheiro social.

Antes de entrar no banheiro e fechar a porta, tomou um susto ao ouvir seu pai perguntando o que ela estava fazendo. Seu coração quase saiu pela boca. Ficou branca de susto, boca seca.

Numa fração de segundos, levantou a mão com a arma e disse que estava cheia de tudo aquilo, cansada. Só queria ser uma garota como outra qualquer, poder andar pelas ruas e sair com as amigas sem ser a referência daquilo que foi dito sobre elas, mulherzinhas, frutos de fraquejada.

Queria namorar sem ser a chacota dos amigos do garoto que estivesse namorando com ela. Estava cansada de tudo aquilo.

No primeiro instante, o pai foi o que era sempre, rude, grosso, autoritário. Mandou que ela largasse aquilo.

Ela seguia dizendo que estava cansada de tudo, que só queria uma vida normal. Chorava com raiva reprimida.

O pai mudou o tom e tentou persuadi-la a largar a arma porque aquilo era perigoso nas mãos de criança.

Será que o pai quis dizer que aquilo era perigoso na mão de mulher? De mulherzinha?

O pai seguiu falando mais baixo, mas mais ríspido, andando no sentido dela. - Filha, me dá a arma!, falou.

Ela não sabia o que fazer. As coisas não seriam mais como antes, após esse momento. Seriam piores que os dias anteriores, que já eram ruins. Cansaço... estava cansada de tudo aquilo.

3 tiros acordaram todo mundo na casa. Foi a maior gritaria. Correria geral.

O primeiro que chegou ao corredor foi o irmão. Depois a mulher.

O homem estava estirado no chão.

3 tiros no peito.

Nada seria como antes.


Fim


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