O amigo do filho do prefeito
Estavam comemorando a posse do pai, agora prefeito de uma grande cidade. A turma já tinha tomado todas e o dono do restaurante já havia dito que precisava fechar por causa do horário e do decreto da pandemia, publicado pela gestão anterior e ainda em vigor.
A algazarra era enorme. Eles incomodaram muito os outros clientes do restaurante, caçoando daqueles que usavam máscara, inclusive os atendentes, e um deles até chegou a arrumar confusão, mexendo com a filha de um dos clientes. Quando o dono do estabelecimento interveio, o rapaz falou umas merdas a ele e disse que estava com o filho do prefeito.
Perto dali, uma blitz escolhia aleatoriamente alguns carros e motos para verificar documentos e irregularidades nos veículos. Winson estava sem paciência naquele dia, seu superior o havia humilhado quando chegou atrasado naquela noite. Sua esposa não estava bem, tinha febre e estava com dores de cabeça e ele não conseguiu folga pra ficar com ela. Queria ter levado ela no postinho de saúde para tentar fazer um exame.
O filho do novo prefeito e seus amigos tinham decidido ir para uma festa clandestina que estava rolando num casarão alugado em outro bairro. O pessoal que convidou eles disse que a casa estava lotada e tinha muita gente doidona lá, que era só chegar chegando, escolher a pessoa com quem ficar e sair pro abraço ou pro amasso.
A rua onde ocorria a blitz dava acesso a uma avenida que ligava aquela região nobre da cidade a um bairro de classe média, onde estava o casarão da festa. O cabo Winson estava com três soldados naquele ponto e não via a hora de terminar o seu turno para ir embora.
Como a rua era estreita, a blitz diminuiu a velocidade do fluxo de veículos. Enquanto um dos soldados verificava a documentação do veículo parado, os outros mantinham a atenção na passagem dos carros e motos.
O amigo do filho do prefeito estava excitado com toda a farra já feita, as bebidas já ingeridas e com a festa que os aguardava. Naquela noite, o céu era o limite. Ele colocou a mão pra fora do carro e começou a bater na porta e reclamar daquele trânsito inesperado. Todos no carro o seguiram nas reclamações e gritos.
Ao passarem pela blitz, um dos soldados mandou eles encostarem logo adiante. Os caras dentro do carro ficaram indignados por serem parados.
O soldado se aproximou e pediu os documentos do carro e do motorista. Antes que o rapaz no volante respondesse ao soldado, o amigo do filho do prefeito já estava aos gritos dizendo que ali era autoridade, que o filho do prefeito não tinha que ser parado em blitz.
Outro soldado, com a mão do coldre de sua arma, se aproximou ao ouvir a discussão e pediu que todos descessem do carro.
O primeiro soldado, o que pediu os documentos ao motorista, também assumiu uma postura mais ríspida e mandou que os rapazes fossem para a parede próxima do carro.
O amigo do filho do prefeito estava muito exaltado, vociferava, veias saltadas, repetia que ali tinha autoridade e que não admitia serem tratados daquele jeito por reles soldados. Exigiu que queria falar com quem estava no comando.
Tudo havia se passado relativamente rápido, coisa de minutos.
Um dos soldados ainda foi prestativo e disse que iria chamar seu superior imediato, o cabo Winson, já que o terceiro sargento não estava no momento.
- Aquele preto é o superior?, disse o amigo do filho do prefeito. - Vocês tão de brincadeira!, completou.
O cabo Winson já vinha se aproximando daquela discussão envolvendo os dois soldados e os rapazes do veículo.
Não deu tempo pra mais nada, o amigo do filho do prefeito estava armado, ele estava alucinado, descontrolado. Ao colocar a mão no coldre de sua pistola, um dos soldados sacou sua arma e mirou nele. O filho do prefeito rapidamente pediu calma e avançou para conter o amigo.
Não deu tempo.
O outro policial sacou e atirou ao ver a reação dos rapazes em maior número, estando um deles armado. Um dos jovens caiu bruscamente no chão.
O cabo Winson e os dois soldados conseguiram dominar a situação e foi dada voz de prisão aos rapazes e os soldados pediram por rádio que viesse uma ambulância porque havia gente ferida a bala no local.
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O prefeito custou a dormir naquela noite. O dia da posse havia sido tumultuado. Não foi uma cerimônia de paz e cordialidade. O clima beligerante que dominou a campanha estava instalado no salão.
A oposição seguia dizendo que a eleição havia sido fraudada, baseada em fake news, e influenciada por fanáticos da igreja parceira do novo prefeito.
Algumas falas permitidas durante a posse só fizeram piorar o clima do evento.
Um membro da oposição repetiu sua posição contrária a armar a população civil. Alegava que quanto mais civis estivessem armados, mais tiros e mortes desnecessárias ocorreriam na cidade. A oposição entendia que somente as autoridades policiais deveriam portar armas na comunidade. Apesar de sua posição não armamentista, a lei era nacional e não local.
Os tempos eram outros. Fazer arminha com os dedos era a nova onda. Armas em nome da segurança pessoal. Armas em nome dos direitos individuais. Armas em nome de Deus, da família e da propriedade privada. Armas em nome da liberdade total do cidadão de bem. Era a onda. E o povo estava com o novo prefeito e com a bancada majoritária que havia sido eleita para o mandato que se iniciava.
Assim que conseguiu pegar no sono, o telefone do prefeito tocou na cabeceira de sua cama. Chamou duas vezes por longo tempo até que ele acordasse, pois havia tomado um calmante para dormir.
Atendeu o telefone e do outro lado, alguém falava de uma blitz, de rapazes alcoolizados, de reação.
O prefeito não entendeu nada. Sentou-se na cama e mandou que a pessoa se identificasse e falasse claramente o que estava acontecendo.
O cabo Winson se identificou e informou que houve um incidente envolvendo um grupo de rapazes ao serem parados numa blitz naquela noite e que, infelizmente, um dos rapazes havia sido baleado.
Com o coração a mil, o prefeito perguntou quem havia sido baleado, se estava tudo bem com o filho dele e com seu amigo de infância, que haviam saído juntos para comemorarem.
O cabo Winson informou que seu filho havia falecido após os rapazes reagirem armados a uma blitz da polícia naquela noite.
O prefeito deixou o telefone cair... ele mal havia tomado posse, tinha quatro anos pela frente...
Nada seria como antes.
Fim
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