Refeição Cultural
"Se havia, em tese, a oportunidade democrática de acesso à palavra para todos os participantes da assembleia, eram poucos os que efetivamente dela se apropriaram. Nas representações dos trabalhadores o discurso era prerrogativa dos que sabiam falar bem, dos que tinham 'coisas certas para dizer'. Era o reconhecimento do discurso competente, 'no qual os interlocutores já foram previamente reconhecidos como tendo o direito de falar e ouvir, no qual os lugares e as circunstâncias já foram predeterminadas para que seja permitido falar e ouvir e, enfim, no qual o conteúdo e a forma já foram autorizados segundo os cânones da esfera de sua própria competência' (Chauí, 1982:2)." (p. 129)
A leitura do livro Operários Sem Patrão: gestão cooperativa e dilemas da democracia (2001), de Lorena Holzmann, me trouxe lembranças de minha jornada de sindicalista e me fez refletir sobre as chances de sucesso nos projetos alternativos à hegemonia do capitalismo como forma atual de produção e distribuição material e intelectual das necessidades humanas.
A edição do livro que li não é minha, é de um amigo de meu filho. Acabei lendo este estudo - que tem por base uma tese de doutorado - por ter surgido a oportunidade nesta semana ao recebermos a visita do jovem Mateus em casa. O livro nos é apresentado pelo saudoso Paul Singer.
Pertencimento - uma das ideias conceituais que pensei ao ler a história dos trabalhadores das antigas Indústrias Wallig - depois "Cooperativas Wallig" - foi a questão do pertencimento, a importância de ter um sentimento de pertencer a algo quando se engaja numa luta qualquer, principalmente uma luta coletiva.
Trabalhei com essa ideia-força ao longo de minha vida de organização e representação da classe trabalhadora: pertencimento.
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RESUMO DO CASO ANALISADO NO LIVRO
"Este estudo primoroso de Lorena Holzmann tem por base tese de doutoramento, aprovada na Universidade de São Paulo, em 1992. O seu objeto é a Indústria Wallig, que chegou a se celebrizar como fabricante do fogão a gás mais prestigioso do Brasil, e foi atingida pela grande recessão de 1981-83. Mas, o seu fechamento enquanto empresa capitalista não foi aceito pelos operários, seu sindicato e a própria opinião pública do Rio Grande do Sul. Os trabalhadores formaram duas cooperativas - uma fundição e uma mecânica - e após muita luta conseguiram alugar as instalações da massa falida para prosseguir as operações da antiga empresa." (Paul Singer, na apresentação do livro)
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CAIXAS DE ASSISTÊNCIA DE TRABALHADORES SÃO MODELOS DE COOPERATISMO
Pensei muito na minha experiência como gestor eleito (2014-2018) de uma associação, uma Caixa de Assistência, da qual quase a totalidade da comunidade envolvida com ela não tem noção alguma do que a Cassi é: uma autogestão em saúde. E a parte que tem noção disso faz de tudo para apagar a característica central do que essa associação é: um modelo assistencial baseado no cooperativismo e na solidariedade.
Ao ser gestor do modelo de saúde da Cassi, pesquisei a história da associação, o trânsito dela na comunidade ao longo de décadas, desde os anos quarenta até o momento no qual era gestor. Por incrível que pareça, o banco patrocinador, que tem acesso integral ao corpo de associados e poderia educar e orientar os participantes a aderirem ao sistema de atenção primária, fez em uma década de implantação do modelo de Estratégia de Saúde da Família (ESF) um vídeo institucional sobre o que era e como funcionava a ESF. Um vídeo. Enquanto isso, o foco da comunicação era a venda de planos de saúde, ao invés de focar na essência da Cassi: o Plano de Associados. Por quatro anos, viajamos pelo Brasil para falar da ESF. O modelo ganhou credibilidade e aderência como essência de nosso modelo cooperativo e solidário de assistência à saúde.
Após nossa saída, o que vejo é uma Cassi que se apresenta como uma empresa capitalista do mercado de saúde, vendendo inúmeros planos ruins de saúde que não têm a menor relação com o que a Cassi deveria fazer - cuidar da saúde de seus associados - e a ESF foi deixada de lado, e a "empresa" aposta no mercado para tudo. É uma lástima. Essa autogestão com um modelo fantástico de cooperativismo na área da saúde dos trabalhadores terá muitas dificuldades de seguir existindo. Um sistema cooperativo se referenciar na indústria capitalista da saúde é arriscar sua existência.
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CONFRONTO ENTRE CAPITAL E TRABALHO (O DINHEIRO SEMPRE DIVIDE AS PESSOAS)
A distribuição das "sobras" no primeiro ano das cooperativas me lembrou as discussões sobre a PLR dos bancários (Participação nos Lucros e Resultados)
"(...) Desse modo, a ideia inicial de que o empreendimento era de todos, foi se diluindo, solapada pela diferença de interesses que se tornaram manifestas no interior das Cooperativas." (p. 90)
No estudo de Lorena Holzmann, ela tomou conhecimento do quanto a unidade inicial dos cooperados se diluiu assim que entrou em pauta a primeira distribuição das sobras (resultados positivos) das cooperativas.
É justo distribuir de forma desigual os lucros ou sobras?
A justiça ou injustiça dos critérios dividiu os associados para sempre. A PLR da categoria bancária enfrentou o mesmo debate de critérios desde a sua instituição em 1995 nos acordos da categoria: distribuição linear ou distribuição desigual de acordo com salários e funções dos trabalhadores na hierarquia do banco (ou da cooperativa)?
É justo dar cotas maiores do resultado para aqueles que já ganham mais na pirâmide salarial da empresa? Afinal de contas, o esforço para conseguir o resultado positivo não foi de todos? A folha de pagamentos já remunera mais ou menos ao longo do ano de acordo com as habilidades e responsabilidades de cada trabalhador.
Isso aconteceu nas duas cooperativas oriundas das Indústrias Wallig. Uma forma de distribuição se opunha a outra. Cada associado tinha cotas diferentes na cooperativa. Os antigos tinham mais, os novatos quase nada. Aí depois de todo mundo ralar para conseguir o resultado positivo, os caras de cima, da administração, definiram que as sobras seriam distribuídas de acordo com as cotas de cada um... o povo do chão da fábrica viu centavos e os de cima ficaram com todo o resultado... (é foda!)
Participei desses debates por mais de uma década na categoria bancária. Os bancários criaram um critério misto ao longo de quase três décadas. Isso na regra geral, porque os bancos deram um jeito de premiar os de cima ou "mais chegados" com programas individuais não contratados com os sindicatos.
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FÉRIAS ERAM FÉRIAS MESMO
"O sistema de descanso anual implantado era considerado pela direção das Cooperativas como superior ao direito a férias disposto na CLT, pois seu objetivo 'salutar de recuperação e composição de forças' não poderia ser mercantilizado, impedindo o trabalhador de trocar por dinheiro o 'recurso sanitário de restauração de seu desgaste físico e mental', como foi declarado por um entrevistado." (p. 103)
Achei interessante essa questão de forçar que as férias fossem cumpridas em descanso mesmo pelos trabalhadores. (ou seja, que as férias fossem compridas...)
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PARTICIPAÇÃO SOCIAL
"O 'fim da síndrome de participação' e a autonomização do Conselho fez com que emergisse entre alguns associados a certeza de que tinha havido a apropriação das instâncias decisórias por um pequeno número de associados. Isso teria ocorrido mesmo com a renovação obrigatória de parcelas de cada um dos Conselhos (o de Administração e o Fiscal), já que houvera, no primeiro deles, um processo de cooptação, pelos interesses de associados do setor administrativo..." (p. 135)
Será que essa questão acima não se tornou a realidade em nossas organizações de classe hoje?
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A DIFICULDADE DE SE ATINGIR A SONHADA IGUALDADE
"As inúmeras linhas de segmentação da coletividade, opondo seus integrantes a partir do tipo de atividade que exerciam (trabalho na produção x trabalho na administração), antiguidade (fundadores x novatos), propriedade do capital (grandes cotistas x pequenos cotistas) determinaram uma complexa teia de interesses divergentes que, mal equacionados, levaram ao aprofundamento da desigualdade." (p. 148)
Interessante: a leitura desse estudo de caso foi como ver um filme a partir de minhas memórias ainda frescas de décadas de organização da classe trabalhadora, as dificuldades reais e materiais de se alcançar a unidade e a solidariedade de classe etc. Vi um filme de memórias através do livro!
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ALGUMAS REFLEXÕES
Durante a leitura desse estudo de caso de uma indústria que faliu e da luta de seus trabalhadores para mantê-la por causa de seus empregos, pensei um pouco sobre essa nossa caminhada humana em busca de sobrevivência e de realização.
Fiquei me lembrando das experiências humanas em busca de organizações sociais baseadas em cooperativismo e solidariedade, que tendem a ser mais justas e com melhores oportunidades a todas as pessoas.
Me lembrei de exemplos enormes como o caso da antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), experiência da classe trabalhadora que durou décadas (1917-1991) e que mudou o cenário político mundial.
Me lembrei de organizações de trabalhadores como as nossas caixas de assistência e previdência dos trabalhadores do Banco do Brasil: a Cassi e a Previ.
Me lembrei de cooperativismo como aquele que fez o apartamento onde moro, que custou aos associados um valor muito menor do que o valor que seria comprá-lo pelos modelos hegemônicos do capital.
E me lembrei de algumas realidades atuais, me lembrei da China e de Cuba, dois casos alternativos ao modelo hegemônico de organização social no mundo do século atual, o modelo de produção e distribuição de riquezas identificado com os conceitos de capitalismo, neoliberalismo e imperialismo.
Não vou desenvolver uma argumentação ou reflexão sobre isso. Isso não é mais meu papel. Já foi.
A China me impressiona. Cuba e os cubanos têm minha solidariedade fraterna. A lembrança sobre a autogestão em saúde dos funcionários do BB me traz uma certa dor porque gosto dela e lamento ela ser uma oportunidade desperdiçada. A Previ é uma segurança que sua comunidade deve estar alerta, pois a cobiça no patrimônio dela enlouquece até seus associados.
É isso. O livro de Lorena Holzmann foi o 24º livro que li neste ano. Todo dia quando percebo que estou aqui no mundo, penso sobre o que posso fazer para aprender algo novo, e tento, só tento, ficar atento para não fazer mal a ninguém. (gostaria de contribuir para tornar o mundo um lugar melhor, mas hoje não estou fazendo isso)
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Ah, sobre o que disse no primeiro parágrafo do texto, sobre chances de projetos alternativos ao modo capitalista de organizar as sociedades humanas, modelo baseado na religião do dinheiro, na ganância, no egoísmo e no cada um por si, confesso meu pessimismo da razão, apesar de me esforçar para crer no otimismo da ação criadora do ser humano.
A questão é: quantos jovens estão neste momento focados nas mudanças coletivas inclusivas, solidárias e sustentáveis e não só em seus prazeres pessoais? Ou focados em superar suas dores e angústias pessoais, algo muito real num mundo sem perspectivas? Quantos? Tenho a impressão de que poucos, um número insuficiente para mudar a tendência escatológica dos tempos.
Estamos sós, todos nós, estamos sós, uma solidão do tamanho da ideia de García Márquez no clássico "Cem anos de solidão". E qualquer saída para a humanidade será uma saída coletiva. Coletiva. Mas estamos sós...
São as minhas impressões. Espero estar errado. Quando era político, acertava mais minhas impressões. Agora, atomizado, espero estar errado em minhas impressões.
William
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Bibliografia:
HOLZMANN, Lorena. Operários Sem Patrão: gestão cooperativa e dilemas da democracia. São Carlos: EdUFSCar, 2001.
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