Refeição Cultural
Osasco, 8 de setembro de 2023. Sexta-feira (19h40)
MEU PAI
Neste momento no qual escrevo, não sei onde meu pai está. Durante o dia, estaria na estrada. Ontem, meu pai saiu de casa e foi parar em Goiás, onde viu dois irmãos. Hoje, seus planos eram ir para o Mato Grosso, para a cidade onde reside um cunhado e família.
Se fosse possível um diálogo com meu pai, eu gostaria de procurar com ele onde ou quando foi que as relações com a família se tornaram tão difíceis. Os tempos são tempos nos quais o diálogo está se tornando algo quase impossível entre as pessoas. Em geral, na maioria dos casos, as pessoas não estão mais abertas ao diálogo. Só se for para o outro dizer amém.
Ao longo da vida, e dos autores que tive a oportunidade de ler, aprendi que não é possível sabermos a dor dos outros. A dor de alguém é algo indescritível e de uma intensidade que só a pessoa que sofre sabe o que está passando. Só essa questão já é suficiente para nos fazer respeitar a dor dos outros. Eu sei que meu pai padece de dores há anos. Dores físicas e sobretudo dores da alma. E isso talvez tenha feito meu pai ir se tornando a pessoa que é hoje.
Ao acordar nesta manhã, e ver uma mensagem no celular para ligar para os meus familiares para saber notícias, talvez notícias de meu pai, acabei inventando algum preparo para receber notícias ruins, preparo que não existe. Fui primeiro enfiar a cabeça embaixo do chuveiro por alguns minutos. Depois liguei e felizmente eram só atualizações sobre o dia de ontem.
Enquanto meu corpo sentia a água morna do chuveiro cair sobre mim, uma das coisas que pensei foi a respeito de algum tipo de morte idealizada, menos sofrida. Ninguém gosta de pensar sobre aquele dia que todos enfrentarão, o dia de nossa morte. No entanto, se houvesse algum tipo de previsão ou planejamento para esse dia de nosso fim, evidente que seria melhor partir sem sofrer, num lugar confortável, com alguém que nos ama por perto, sem dores, frio, sozinho etc.
E fiquei muito triste ao pensar até como hipótese em alguém que amamos partir sofrendo sozinho. Acho um risco um homem com mais de oitenta anos dirigindo sozinho o dia todo pelas estradas brasileiras. Meu pai é um cara teimoso, não ouve mais ninguém. Isso dificulta muito as relações e a forma de cuidar dele. O sentimento de impotência que tenho sentido em relação a não conseguir dar sequer opiniões talvez racionais às pessoas é algo que aperta o coração da gente.
Quando pensei no dia de nosso fim, da morte que chegará para todos nós, foi por saber que pessoas se colocam em situações desnecessárias de risco, às vezes. E, às vezes, as pessoas morrem por isso. E aprendi que a vida é uma oportunidade.
Não desejo uma má morte nem para meus desafetos nem para os inimigos de nossa classe trabalhadora. Se eu fosse Light Yagami (Kira), do clássico anime Death Note, daria um destino final sem dor e rápido para todas as pessoas marcadas para morrer.
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SOMOS FRUTOS DO MEIO SOCIAL NO QUAL VIVEMOS
Tenho refletido sobre a vida e sobre o nosso mundo, algo que fiz menos do que gostaria ao longo da vida, durante o período de lutas sindicais meu foco era cem por cento a luta de classes, era um soldado das causas que representava e encarava isso como uma guerra, uma batalha de vida ou morte. Sou assim. Quando me entrego a uma causa, me entrego de corpo e alma.
Hoje, compreendo muito melhor diversas etapas de minha vida, atos e fatos ocorridos em meu percurso existencial e ao meu redor. Ao longo dos anos de estudo sobre o Brasil e sobre o povo brasileiro fui vendo como um filme minha gente dentro dos acontecimentos do tempo e da história. Fui compreendendo a minha origem, a de minha família, a do povo brasileiro.
Meus pais, seus pais e irmãos, e depois as dezenas de primos e primas, e nossos filhos, somos todos tipos comuns do povo brasileiro. Brasileiros. Somos frutos desta terra e isso não é qualquer coisa. Somos brancos e mestiços de origem nas classes subalternas do país, gente que se virou como milhões de iguais para sobreviver e conseguir seu lugar ao sol.
Qualquer branco ou mestiço de minha família poderia tranquilamente ser personagem do clássico conto machadiano "Pai contra mãe", todos nós poderíamos ser Candido Neves ou Clara...
Aliás, minha gente poderia ser qualquer dos tipos construídos por nossos grandes escritores na tentativa de entender o Brasil e o povo brasileiro: digo os personagens que não eram os senhores donos de tudo. Seríamos os agregados, os não proprietários, os que foram sobrevivendo de bico por aí. (hoje, alguns dos que se ajeitaram na vida foram pescados pela balela da meritocracia)
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CEM ANOS DE SOLIDÃO
O que sei é que ao longo de nossas vidas, enfrentamos momentos duros juntos, meus pais e eu, meu pai e minha mãe. As memórias que guardamos são formadas das mais diversas formas, algumas sem a menor explicação ou coerência lógica. A vida vai nos deixando na memória lembranças boas e ruins do nosso viver.
Tenho boas e más lembranças da minha relação com meus pais, com os familiares mais próximos, com pessoas que marcaram a minha vida para sempre.
Fico tão triste ao ver no que nos transformamos nos últimos anos, pessoas intolerantes, egocêntricas e rápidas em romper relações de toda uma vida por não aceitarmos conviver com a diversidade de ideias e visões de mundo. Vivemos uma solidão do tamanho dos "cem anos de solidão", do García Márquez.
Me lembro de uma imagem de um livro de Inglês na qual uma mulher olhava a esmo, sozinha numa mesinha ao redor de diversas mesas cheias de gente. O título para a imagem era "alone in the crowd". Nunca me esqueci disso. Me parece que aquela imagem e aquele conceito encaixaram-se na minha vida.
Quem não se sente sozinho muitas vezes ou algumas vezes, mesmo cercado de pessoas, que atire a primeira pedra. Ao olhar a vida para trás, vou avaliando algumas vezes nas quais me lembro de ter sentido uma solidão do tamanho do mundo. Felizmente, fui vivendo e cheguei até aqui, superando até os momentos nos quais não queria mais nada. Não tenho receio em dizer sempre que sou um homem de sorte.
Me lembro de ter discutido com meu pai quando fui embora da casa de meus pais aos dezessete anos. Tenho quase certeza de que o responsável por tudo naquela época fui eu, eu era a fúria.
Me lembro de quando cumprimentei meu pai com um beijo após ter me tornado aluno de uma graduação de Educação Física em Mogi das Cruzes. Assim que vi um jovem servindo o exército cumprimentar o nosso professor na porta da sala de aula achei aquilo impactante. A cena me fez dar um beijo no meu pai. Já tinha uns dez anos que eu havia ido embora de casa.
Me lembro dos perrengues que passamos juntos, meu pai e eu, quando meu pai precisava de assistência médica e não tinha. Uma vez, em São Paulo, fomos atrás de uma internação para meu pai tratar dos rins e tivemos até que ir à imprensa para denunciar que meu pai não conseguia ser atendido com dores insuportáveis nos rins.
Me lembro que passei anos tendo plano de saúde por ser funcionário de banco público sem querer usar o plano porque eu não achava justo ter atendimento e meus pais não terem. Uma vez, fiquei tão mal em casa que achei que iria morrer e só consegui me levantar da cama uns três dias depois. Nunca soube o que tive. Não usei o plano de saúde.
Me lembro dos meus pais correndo pra cima e pra baixo pra buscar atendimento médico para meus sobrinhos pequenos. Meus pais são humildes e pessoas simples, mas como a maioria dos pais, viram bichos quando estão sendo injustiçados por não conseguirem o que deveriam ter como direito: atendimento médico.
Me lembro de muita coisa. Tenho fuçado muito em minhas memórias...
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Espero que meu pai chegue aonde esteja indo. Espero que ele esteja bem.
Já são quase dez horas da noite e ainda não temos notícias do pai andando por aí pelas estradas brasileiras.
William
Post Scriptum: por volta de meia-noite, consegui a informação de que meu pai chegou ao destino pretendido, à casa de meus tios. Para aumentar a tristeza do dia, soube que meu tio, que tem enfrentado uma doença grave, teve uma piora em sua condição nos últimos dias. Estamos na torcida por sua melhora.
Post Scriptum II: o texto anterior sobre minhas "Lembranças" pode ser lido aqui.
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