Refeição Cultural
Opinião
Bebida alcoólica é uma droga!
A foto que ilustra o artigo é a foto de um bêbado. Eu bebi muito por anos e anos em minha vida. Das drogas consumidas por humanos, o álcool é a única que experimentei. Fiz várias das merdas que um bêbado faz como, por exemplo, dirigir bêbado e outras loucuras. Por sorte, acabei sobrevivendo às bebedeiras e não fui responsável por nenhum acidente por causa da droga do consumo de álcool. Mas nem todo mundo tem ou teve a sorte que eu tive na vida. Acabei superando a bebedeira sem sequelas graves ou irreversíveis.
Fiquei matutando por meses se valia a pena escrever ou não sobre a questão do álcool e do alcoolismo e, se escrevesse, de que forma poderia abordar esse tema sem ser odiado gratuitamente por qualquer pessoa que lesse minha opinião e que se sentisse incomodada com o meu texto por ser uma consumidora contumaz de bebida alcoólica.
Deu vontade de escrever alguma coisa. Avalio que não exista uma forma de discurso que garanta a eficácia de não provocar as pessoas ao criticar o consumo cada dia maior de álcool, essa droga legalizada no Brasil e uma das bases do consumo supérfluo das sociedades humanas e uma das maiores causas de tragédias pessoais e coletivas da sociedade, além de prática que destrói recursos dos sistemas de saúde.
Já que não sou ninguém pra apontar o dedo a qualquer pessoa, posso ao menos escrever sobre essa prática social e cultural na forma de um depoimento pessoal de como bebia e como decidi não ficar mais bêbado.
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A CULTURA DO ÁLCOOL NO BRASIL É ANTIGA
A sociedade humana tem uma natureza contraditória, talvez desde a sua origem, porque somos animais contraditórios. Falamos uma coisa e fazemos outra, isso é o mais comum.
O ser humano é um animal social e a comunicação é característica central dos homo sapiens. Nossas relações sociais são organizadas através da linguagem e é pela linguagem que contamos casos, criamos estórias e construímos narrativas para tudo. Me lembro que cresci ouvindo narrativas de bebedeiras...
Pela linguagem argumentamos, influenciamos, manipulamos, condenamos e inocentamos as pessoas. Pela linguagem fazemos o que só os humanos podem fazer: educamos. Tenho a impressão de que até pela educação brasileira se ensina a cultura do álcool. Se não pela palavra, pelos atos, pelos exemplos.
Fui criança nos anos setenta e adolescente nos anos oitenta. Cresci num país governado por ditadores (chamados pela grande imprensa da casa-grande de "presidentes" - a linguagem que manipula), meu ambiente de aculturação quando criança e jovem foi um ambiente autoritário, preconceituoso e violento. É o que somos, o Brasil.
Dos tempos de criança nos anos setenta, me lembro das bebedeiras nos encontros de família, que uma vez ou outra terminavam por causa de alguma desavença provocada pela bebida em excesso.
Na juventude foi pior. Fui morar em outro Estado aos dez anos de idade, no bairro Marta Helena, em Uberlândia, e tive que me acostumar ao novo ambiente do viver. Eram tempos duros, o Brasil vivia a crise econômica dos anos oitenta, a miséria e a carestia faziam parte do cotidiano das massas e a classe trabalhadora se virava para sobreviver.
Não vou adentrar na história da família, não é necessário. O que sei é que deveria ter uns doze ou treze anos quando passei a beber como faziam todos ao meu redor nas ruas e bailinhos do Marta Helena. Imaginem só, o moleque tomava doses de cachaça nos bares porque era a bebida mais barata e a rapaziada ficava toda corajosa e doidona com um trago de cachaça. E nos encontros de família me juntei aos familiares como mais um tomador de cerveja. Muita cerveja!
O resumo da ópera, ou da comédia, ou da tragédia, ao gosto do(a) leitor(a), é que bebi muito até quase uns trinta anos de idade.
Imagens na memória: me lembro da molecada fazendo arruaça nas madrugadas do Marta Helena; me lembro de algumas vezes nas quais bebi até vomitar muito (cara, que merda vomitar de tanto beber!); me lembro de me expor a riscos desnecessários de propósito porque estava bêbado (às vezes, queria morrer); me lembro do bar do Chaplin, na frente da Faculdade do ITO em Osasco, eu levava as pessoas de moto pra casa delas estando bêbado...; me lembro de magoar pessoas e fazer pessoas que gosto chorarem porque não tinha limite estando bêbado.
Que merda é lembrar de tanta coisa que vivi estando bêbado. Perdi um dos tios com o qual tinha mais proximidade porque ele virou um alcóolatra e não conseguiu sair dessa condição. Vi outras mortes relacionadas ao consumo sem limites de álcool. Quantas vidas perdidas sem necessidade!
Esse pequeno relato de um ser humano, uma pessoa que bebeu muito e por muito tempo, é um relato comum. Milhões de pessoas bebem como eu bebi desde sempre. E bebem muito mais do que eu bebi.
BEBER SOCIALMENTE - A extensão do que se costuma denominar de "beber socialmente" é enorme e também é meio hipócrita. Tem pessoas que bebem nos finais de semana e dizem que bebem socialmente; tem pessoas que bebem quase todos os dias e dizem que bebem socialmente; tem pessoas que bebem tudo que aguentam (não aguentam!) de uma vez e só de vez em quando e dizem que bebem socialmente... e por aí vai.
Por isso abri esta parte do texto dizendo que somos seres contraditórios. As pessoas defendem ideias de um determinado tipo de sociedade e mundo e todos os dias praticam atos que são absolutamente contrários às ideias e tipo de sociedade e mundo que vendem por aí. Falam de saúde e afogam o mundo em álcool, falam de solidariedade e só pensam em si mesmas, pregam a paz e só praticam as diversas violências cotidianas possíveis. Seres contraditórios.
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UM DIA DECIDI QUE NUNCA MAIS FICARIA BÊBADO
Cada pessoa sabe de sua vida, até certo ponto somos seres livres. Porém, é certo que somos altamente influenciáveis. A cultura do consumo de álcool no capitalismo está cada dia mais agressiva e as pessoas estão bebendo como nunca, estão se destruindo no álcool.
Não vou entrar em discussões filosóficas e sociológicas sobre liberdade e livre-arbítrio neste texto. Tenho consciência e vivência suficientes para compreender as complexidades inerentes ao que somos, animais da espécie homo sapiens, seres humanos e seres que se aculturam de acordo com as relações sociais e produtivas de onde vivem.
Quando fui eleito diretor do Sindicato dos Bancários de São Paulo, Osasco e região, em 2002, tive a percepção de que a minha vida iria mudar daquele momento em diante e mudaria definitivamente. A pessoa que eu era seria modificada em outra pessoa com a experiência que viveria naquela nova função social. Eu já tinha uns quinze anos de categoria bancária, sendo dez no BB e havia completado 33 anos de idade.
Tive medo, tive receio, passei a viver uma espécie de insegurança que nunca havia sentido. Eu era um grande admirador do Sindicato e das pessoas que representavam a nossa entidade de classe. Nossa chapa foi eleita em abril e só fui liberado do cotidiano do banco em agosto daquele ano. Eu me questionava internamente se estaria à altura da tarefa de representar os colegas e, mais que isso, em um dos maiores sindicatos do país. Foram momentos de grande tensão interna.
Eu era um trabalhador bancário comum, como todos nós da classe trabalhadora somos, em geral. Por não ter sido um militante orgânico da esquerda desde pequeno, como ouvia as histórias do pessoal do movimento sindical, eu me sentia inseguro se conseguiria ao menos fazer uma boa representação e dirigir o movimento como as lideranças que conhecíamos. Sempre havia votado na esquerda, meus primeiros votos com o título de eleitor nas mãos foram em Erundina (PT) e Lula (PT). Mas entendia isso como algo básico, trabalhador(a) vota em trabalhador(a).
Um de meus receios na capacidade de ser um bom representante de classe era por causa de minhas características pessoais. Eu era uma pessoa impulsiva, de opiniões fortes e muito centrado em mim mesmo. Desde a adolescência, fui uma pessoa intolerante. A tomada de consciência de meus novos desafios e do que eu seria a partir daquele momento me fez refletir sobre atitudes novas que deveria ter para conseguir ser um bom dirigente da classe trabalhadora.
Nossas memórias nos auxiliam no olhar para trás, mas não adianta querermos romantizar as lembranças de tudo. Não sei o dia exato em que defini que nunca mais ficaria bêbado como ficava às vezes quando bebia em rodas de amigos, mas jurei a mim mesmo que nunca me veriam bêbado como diretor do Sindicato.
RESPEITO PELO SINDICATO, A CASA DOS TRABALHADORES - Me lembro como se fosse hoje o dia em que entrei no Edifício Martinelli para começar a exercer o mandato de diretor do Sindicato. Aquelas fotos e quadros de movimentos sociais, as militâncias e lideranças andando pra lá e pra cá, aquela aura de energia para mudar o mundo e defender a classe trabalhadora... eu sei que aquele foi um momento inesquecível para mim. Eu faria de tudo para ser um bom dirigente e representante dos colegas de trabalho.
Me lembro que decidi que nunca mais ficaria bêbado, não era uma questão moral, entendo que qualquer pessoa tem o direito de fazer o que quer, se não for contra a lei. O que eu defini pra mim mesmo é que não achava adequado como um representante de pessoas ser visto na condição de bêbado em espaços públicos. Eu não era mais CPF para fazer a merda que quisesse.
Um conjunto de atitudes passaram a balizar o meu comportamento como político, como representante de classe. Além de decidir que não era adequado um dirigente beber até perder a consciência e o domínio da razão, entendi também que não poderia mais ser intolerante e agressivo como era. Imaginem um dirigente com a camisa do Sindicato ou da CUT brigando por aí e facilitando a vida de nossos inimigos de classe que usam imagens e as mídias para manipularem as pessoas contra nós. Já bastavam as mentiras inventadas contra nós.
Enfim, fiz uma avaliação política e mudei atitudes comuns ao meu comportamento anterior para assumir um novo papel social. Nunca deixei de "beber socialmente" como dizemos no popular. No meu caso, consegui encontrar o equilíbrio necessário durante eventos com bebidas alcoólicas para beber pouco enquanto participo do convívio social. Entretanto, sabemos que nem todas as pessoas conseguem estabelecer o limite quando ingerem bebidas alcoólicas. Essa é uma das dificuldades ao lidar com essa droga de grande circulação e estímulo em nossa sociedade.
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ÁLCOOL E ALCOOLISMO: PERDAS E DANOS IRREPARÁVEIS, PESSOAIS E COLETIVOS
Vamos para a parte final dessa reflexão sobre o consumo de bebida alcoólica na forma de um depoimento pessoal, texto reflexivo e também argumentativo, tendo como objetivo sensibilizar leitoras e leitores a respeito da importância de reduzir o consumo dessa droga ou abandonar o consumo para o caso das pessoas que não conseguem parar de beber quando começam a "beber socialmente" e sempre passam dos limites de consumo. Lembro aqui: as pessoas morrem por causa de bebidas alcoólicas.
De cara, temos que ter claro que bebida alcoólica é uma droga, legalizada no Brasil, mas é uma droga. Todo consumo de droga tem algum efeito e alguma consequência para os consumidores e para a coletividade, porque somos seres sociais e vivemos em sociedade.
Seria simplório de minha parte dar crédito sem limites à tal liberdade de escolha das pessoas, ao livre-arbítrio de cada um etc, como se não fôssemos seres humanos movidos pelas paixões, mesmo sendo classificados como seres racionais. O que nos movem em geral são as paixões e não a razão. E o que nos move hoje são os desejos e necessidades que movem o modo capitalista de organização do mundo, a mercadoria e o lucro.
PORRES HOMÉRICOS
Uma história clássica não me sai da cabeça quando penso em bebedeiras e porres que transformam pessoas em zumbis ambulantes. Falo dos clássicos gregos Ilíada e Odisseia, epopeias atribuídas ao aedo Homero.
Após quase dez anos de guerra e sem conseguir derrotar os troianos em sua cidade fortificada, o sábio Ulisses tem a ideia de construir um monumento de madeira gigante e ofertar aos troianos, como se reconhecessem a vitória deles na guerra. Um grupo de soldados gregos se escondeu dentro de um cavalo de madeira. Os troianos avaliam bem a questão e decidem levar o monumento para dentro da cidade. Bebem até caírem de bêbados pelos cantos da cidade na comemoração... (os guerreiros bêbados se foderam!)
O estratagema da construção do Cavalo de Tróia é ideia do engenhoso Ulisses, é verdade. Porém, o porre homérico dos troianos após a comemoração pela vitória pode ter facilitado muito a vida dos gregos na batalha surpresa após invadirem Tróia a partir do presente de grego.
Eu sinceramente não consigo entender como um guerreiro consegue baixar a guarda desse jeito, ficar bêbado e à mercê de ser facilmente derrotado. Conhecemos o dito popular: mais fácil que empurrar bêbado em ladeira.
(Me lembro de descobrir estratégias e táticas de militantes de correntes adversárias à nossa em períodos de greve, por exemplo, ao me juntar a eles em mesas de bar nos finais dos dias de luta... é triste, mas é fato: o álcool libera até segredos de disputas de hegemonias de mundo)
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