domingo, 2 de janeiro de 2011

Teoria da Narrativa: Posições do Narrador (Prof. Davi Arrigucci Jr)


(as marcações sublinhadas no texto são do blog)


FLT0124 Introdução aos Estudos Literários II

TEORIA DA NARRATIVA: POSIÇÕES DO NARRADOR

Prof. Davi Arrigucci Jr.
Professor de Teoria Literária e Literatura Comparada da USP


Conferência de abertura das atividades do Depto. Científico da SBPSP do ano de 1998.

Abertura: Liana Pinto Chaves, Membro Efetivo e Diretora do Depto. Científico da SBSPS.


Liana: O Prof. Davi Arrigucci Jr. vai conversar conosco sobre teoria da narrativa. Eu gostaria de historiar um pouco como foi feito esse convite.

Quando fui conversar com ele, contei-lhe um pouco sobre o que foi no ano passado a nossa prática de apresentação de material clínico e algumas coisas que surgiram em função da diversidade dos materiais apresentados, principalmente, do estilo de cada pessoa, de cada analista, ao fazer a sua narrativa.

Todos que participaram devem lembrar-se de que cada caso era um caso. Além do paciente e além do analista, cada apresentação era uma e isso gerou muita conversa entre nós de que este seria um tema em si mesmo. A tal ponto, que Sandra Schaffa achou que isso daria um bom número para o Jornal de Psicanálise: a questão da narrativa e em que consiste o relato clínico.

Fomos então conversar com Davi e pedimos que ele nos desse algum subsídio pela via da literatura.

Bom, vocês conhecem o Davi. Ele é professor, um dos nossos críticos mais conhecidos e importantes. Eu acho que vai ser um ótimo começo para o nosso ano.


Davi:


Bem, vou tentar dizer alguma coisa no sentido do que me propuseram.


O assunto da narrativa certamente é muito amplo, complexo e inesgotável. Vou escolher alguns aspectos – os mais próximos talvez das questões que me foram expostas – para tentar estimulá-los a me colocarem questões comuns ou afins entre literatura e psicanálise ou que ao menos possam suscitar paralelos entre os problemas da narrativa literária e os relatos de casos.


Em 1940, Jorge Luís Borges, Adolfo Bioy Casares e Silvina Ocampo, mulher de Bioy Casares, publicaram uma antologia da literatura fantástica que fez muito sucesso (Antologia de la literatura fantástica, Buenos Aires, Sudamericana, 1940). Naquele tempo, embora já houvesse uma tradição da literatura fantástica na Argentina e no Uruguai, o gênero não alcançara ainda a importância que veio a ter depois. Entre as histórias ali reunidas, aparece uma anedota, uma espécie de chiste, uma historieta breve e engenhosa, de um filósofo chinês de 300 a.C., Chuang-Tzu, autor de um livro recheado de histórias exemplares de ampla repercussão na tradição ocidental. Por isso mesmo, talvez já a conheçam:

“Chuang-Tzu sonhou que era uma borboleta. Ao despertar, ignorava se era Tzu que havia sonhado que era uma borboleta, ou se era uma borboleta e estava sonhando que era Tzu”.


Nessa anedota há uma espécie de fantasia metafísica sobre a questão central da identidade, que é um dos problemas recorrentes na obra dos três autores da antologia. Mas é ainda uma questão que se coloca também para a narrativa em geral, porque na historieta há uma espécie de labilidade do sujeito – surge um sujeito escorregadio que dá o que pensar sobre o modo de narrar e suas consequências. Chuang-Tzu ou a borboleta podem ser a perspectiva a partir da qual a narrativa se entretece. Vamos dizer que essa fantasia metafísica sobre a identidade é também sobre a identidade do narrador, propõe uma questão sobre a identidade do narrador. Quando vamos contar qualquer história, uma das questões básicas é esta que a historieta propõe: como narrá-la, de que ângulo narrá-la. Penso que é essa a questão que se aproxima um pouco do interesse de vocês, pois envolve a questão da narrativa literária e de toda narrativa, também a dos historiadores e a dos psicanalistas, de quem quer que conte uma história.


Como narrar? Essa questão do como narrar leva, por sua vez, ao problema da possibilidade da narrativa. Será possível narrar? Essa pergunta atravessou toda a narrativa literária do século XX, desde o final do século passado. A questão de como narrar, que coloca o problema do narrador, atravessa também toda a história da literatura deste século como uma questão em aberto. Será possível narrar? Ou seja, o narrar se torna problemático durante a nossa época. As raízes históricas desse problema geral são vastas e complexas; não cabe tratar delas agora. Mas, antes do narrador problemático da narrativa moderna, quando se conta qualquer história se coloca sempre o problema do narrador, da perspectiva de onde narrá-la. Essa questão constitui, vamos dizer, o problema técnico essencial da narrativa, da narrativa literária, quer dizer, o problema do narrador e dos modos de narração. A posição do narrador é o centro da técnica ficcional: quem é o narrador? De que ângulo ele fala? De que canais se serve para narrar? A que distância coloca o ouvinte ou o leitor da narrativa? Estas perguntas constituem as questões que desafiam qualquer narrador, seja um narrador da tradição oral, da velha arte de contar histórias que se perde na noite dos tempos, seja um romancista de vanguarda. Para este, o simples ato de narrar pode ter se tornado uma questão problemática ou até mesmo impossível em nosso tempo.


O filósofo Theodor W. Adorno tem um ensaio sobre a posição do narrador no romance contemporâneo que começa justamente interrogando como narrar quando é impossível narrar e a forma do romance exige a narração. Podemos, depois, discutir essa questão da impossibilidade de narrar própria de nosso tempo. Mas, supondo-se que narrar seja possível, há uma série de problemas que se colocam para qualquer narrador. Esses problemas constituem a base da técnica ficcional: o problema do tom e o problema do ponto de vista. Esses são os termos técnicos e recobrem feixes de problemas conjugados.


Em geral pensamos em tom como sendo a atitude que o narrador assume diante daquilo que tem para contar. Podemos tratar disso também posteriormente. Todos entendem decerto o que seja o tom. Posso ter duas histórias semelhantes que, contadas com tons diferentes, tomarão sentidos diversos. Basta dar um tom irônico para eu inverter e dar a entender exatamente o oposto do que estou dizendo. Assim, o tom é uma atitude que pode compor a entonação da frase na narrativa oral, ou a ironia dramática, inscrita na história.


De outro lado, há o ponto de vista. As principais questões da técnica ficcional na teoria da narrativa podem ser consideradas como relativas ao ponto de vista ou foco narrativo, que são expressões usadas em geral como sinônimas, embora em certos autores possam implicar matizes diferentes. A expressão “ponto de vista” vem das artes plásticas, e “foco narrativo” vem da física, mas são usadas indiferentemente. Na tradição moderna, esses problemas exigiram o trabalho dos próprios romancistas, quando refletiram sobre a arte de contar histórias. Assim, no livro de Miriam Allot que reúne romancistas falando sobre o romance, vão ver que há um conjunto de autores debruçados sobre as dificuldades de narrar e os problemas envolvidos nos modos de narração, na adoção de uma voz narrativa capaz de comunicar os fatos ao leitor.

(...)


Bibliografia:
Jornal de Psicanálise do Instituto de Psicanálise - SBPSP - Volume 31, 1998, n.57

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