quinta-feira, 21 de maio de 2020

Lembranças - Capítulo 4



Eu e os companheiros Cacaio e Marcel, no
Congresso da Fetec CUT SP em 2006.
(não sei qual de nossos fotógrafos tirou essa)

"Ontem

Até hoje perplexo
ante o que murchou
e não eram pétalas.

De como o banco
não reteve forma,
cor ou lembrança.

Nem esta árvore
balança o galho
que balançava.

Tudo foi breve
e definitivo.
Eis está gravado

não no ar, em mim,
que por minha vez,
escrevo, dissipo.

(A rosa do povo, 1945, C.D.A.)


Estamos no ano de dois mil e vinte. Século vinte e um. Ao olhar para trás e pinçar lembranças de meio século de existência, fazemos vários exercícios ao mesmo tempo. Refletimos sobre aonde chegamos; supomos aonde poderíamos ter chegado caso as veredas escolhidas ou trilhadas fossem outras; olhamos para o instante atual e para aonde vamos ainda. Até que a vida cesse.

Pode ser que nossa impressão das coisas não seja a mais adequada para classificar um tempo, um lugar e uma tendência em relação ao amanhã porque nosso olhar é inevitavelmente atomizado. No entanto, fazemos isso enquanto humanos pensantes. Ao viver cinco décadas é possível avaliar, comparar, traçar esboços sobre ontem, hoje e amanhã. Ainda mais quando tentamos ao longo da vida estudar a história humana e ver no que deram as coisas do passado.

A minha consciência de cidadão foi moldada e desenvolvida em contextos diversos ao longo da vida. Na primeira década, fui criança feliz, de lembranças felizes. Na segunda década, foram tempos de rupturas, despedidas da inocência, dificuldades financeiras e revolta: raiva e ódio de tudo e todos. Na terceira década, novas mudanças na vida, emprego público, estudos universitários, novas revoltas, tentativas vãs de se tornar uma pessoa feliz e cidadã. Nas últimas duas décadas, a maior experiência adquirida na vida: a representação de classe e as lutas coletivas no movimento sindical e popular. Essa fase me salvou e me fez uma pessoa melhor.

Neste momento em que estou fora da política, em que não pertenço mais aos quadros do movimento organizado de lutas da classe trabalhadora, um turbilhão de coisas atormentam nossa consciência: sensações, sentimentos, revoltas, pusilanimidades, outras mais. Eu me revolto em ver a passividade do povo brasileiro frente à hecatombe a qual nos submetemos. O país, o povo, as instituições estão sendo sacrificadas em benefício dos donos da casa grande e dos deuses do império do norte e o silêncio impera nos matadouros sanguinolentos.

Não resolveriam meus tormentos algum companheiro vir me dizer que ao invés de apontar a fraca reação dos movimentos organizados eu, euzinho, deveria fazer algo, sair por aí organizando a resistência. Não funciona assim a organização de uma luta coletiva. A resistência a um regime autoritário, à tirania, ao poder totalitário dos capitalistas e poderosos deve ser organizada e dirigida de forma estratégica e pensada a partir de organizações coletivas. Sem essa de "movimento espontâneo das massas".

E é isso que me revolta: não perceber a resistência e não vê-la acontecer a partir das organizações formais da classe trabalhadora. Tenho a noção das dificuldades, por exemplo, que o movimento sindical está enfrentando após os ataques desferidos pelos golpistas ocupando posições estratégicas no Estado tomado por golpe. As reformas após o Golpe de 2016 esgotaram os recursos dos sindicatos, feriram de morte cada organização dos trabalhadores, mas cada membro dessas organizações tem um mandato e um mandato é muita coisa. Repito o que disse por tanto tempo aos companheiros e companheiras do movimento organizado. Um mandato deve ser exercido até o limite do possível.

Enfim, a classe trabalhadora precisa resistir à destruição de nosso mundo. Não só com boa vontade ou com posturas conciliatórias, pois não se concilia e ou negocia sem o outro lado estar disposto a isso. É preciso juntar indignação, tesão em lutar contra as injustiças, inteligência tática e estratégica, capacidade para se reinventar e, sobretudo, é hora de resgatar os princípios, as concepções e práticas sindicais que nortearam a criação do Novo Sindicalismo e a Central Única dos Trabalhadores - CUT -, movimento de massas exitoso que vigorou do final dos anos setenta até as experiências dos governos do Partido dos Trabalhadores na Presidência da República. Percebo que os movimentos sindical, partidário e estudantil refluíram perigosamente nos dias que correm.


A IMPORTÂNCIA DA ALTERIDADE, DA OPOSIÇÃO E DO DIFERENTE NA FORMAÇÃO DA GENTE E NA EXISTÊNCIA DAS INSTITUIÇÕES HUMANAS

- ME LEMBRO que a proposta chegou à reunião da Executiva com a melhor das intenções. A liderança que a trouxe havia feito um grande esforço para construir a unidade com as mais diversas forças atuantes no movimento, incluindo a oposição, e se a proposta fosse endossada por aquele fórum e pela diretoria do Sindicato começaríamos a campanha salarial dos bancários em 2005, em tese, com menos embates entre as forças do movimento e mais focados no embate com os banqueiros. Mesmo não sendo mais diretor executivo porque decidimos no nosso coletivo político que eu iria desempenhar outro papel a partir de 2005, estava naquela reunião porque era representante de São Paulo na Comissão de Empresa dos Funcionários do BB (CEBB ou COE) e o sindicato tinha definido que as representações em instâncias de outros graus - federação, confederação e central -  participariam das reuniões da Executiva. A proposta em pauta era definir por indicação das forças políticas os delegados e delegadas de nossa base para os encontros regionais e nacionais - BB, Caixa e Conferência Nacional. Apesar de ter um certo sentido a construção de unidade proposta, pedi a palavra e apontei algumas questões que deveriam ser levadas em consideração em relação àquela proposta de início de campanha salarial. A mais importante delas era o fato de que não haveria assembleia geral para início do processo de campanha da categoria. No movimento, existem diversas formas de definição de delegação para encontros, conferências, congressos e demais fóruns coletivos, mas o mais tradicional e representativo ainda é a assembleia de base. Meu questionamento causou um certo mal-estar e a reunião ficou bastante tensa a partir daquele momento. Cada dirigente apresentava seus argumentos a favor da proposta. Insisti que não começar a campanha salarial com assembleia de base poderia comprometer todo o processo e macular nossa história cutista. A reunião foi interrompida. O tema voltou um ou dois dias depois. Vocês podem imaginar a "correria" que foi. O prazo foi suficiente para boas reflexões e conversas com mais lideranças do movimento. Acredito que todos aprendemos com aquele processo. A decisão foi realizar assembleia. A direção e os funcionários do Sindicato fizeram a convocação da base com um excelente debate político e a campanha começou e terminou de forma muito positiva. Uma posição contrária, e respeitada, em meio às demais valeu a pena. Se o processo na época fosse o simples "vamos votar e contar os votos" tudo poderia ter sido diferente, com perdas a todos. Naquele dia, fiz o papel do jurado nº 8, o senhor Davis (Henry Fonda), no clássico "Doze homens e uma sentença", de 1957.

- ME LEMBRO que a gestora responsável pela área que cuidava da organização das conferências de saúde da Cassi, área que fazia a relação com as unidades administrativas e com as CliniCassi, veio me dizer meio sem jeito que a coordenação do Conselho de Usuários daquele Estado onde haveria conferência mandou me dizer que não era preciso que eu fosse ao encontro. Depois soube que não era pra eu ir lá. Ser gestor eleito da maior autogestão do país não seria algo simples, tínhamos noção clara do desafio que enfrentávamos. Ainda mais porque eu havia aceito a missão de participar do processo eleitoral consciente que, se fosse eleito, teria que manter minha postura em relação aos princípios, concepções e práticas sindicais que aprendi como dirigente do maior sindicato de bancários do país e da nossa confederação. Eu nunca abri mão de fazer trabalho de base e estar próximo aos representados. Disse para nossa gestora que a agenda estava mantida e eu estaria na conferência conforme planejado. Chegando ao estado, fiz tudo que estava previsto, visitar órgãos do banco, fazer reunião com o Conselho de Usuários e fazer minha palestra na conferência. Não fui destratado em momento algum, as provocações políticas foram aquelas às quais estávamos acostumados. Eu tenho muito respeito ao processo político porque a política é a melhor alternativa para a solução de conflitos nas sociedades humanas. O inverso da política é a violência e a guerra, é a intolerância e o desejo de extermínio do outro. Neste caso específico, eu voltei ao Estado outras vezes e, felizmente, conseguimos criar uma relação de muito respeito com as lideranças de outros campos políticos, relação que chega a me emocionar. É possível superar diferenças com humildade e convicção naquilo que acreditamos.

- ME LEMBRO que quando assumi o Complexo São João do Banco do Brasil senti aquele frio na espinha porque sabia da história daquele local, a famosa Agência Centro (018). No Sindicato, tínhamos algumas estratégias de trabalho de base por parte da diretoria e dos funcionários políticos. Politicamente, nos organizávamos por regionais e por coletivos de bancos. Nosso coletivo do BB foi uma verdadeira escola política para mim. Após a campanha salarial de 2003, acabei sendo escolhido para fazer parte da Diretoria Executiva do Sindicato, sem pasta inicialmente e depois fui para a Organização. Ao deixar de ser o responsável político pelas questões do BB nas regionais Oeste e Osasco, entendemos que era importante que eu mantivesse o trabalho de base que vinha fazendo, mesmo estando na Executiva. Definimos que eu seria responsável pelo São João, que era ao lado do Edifício Martinelli, sede do Sindicato. Evidente que seria difícil conciliar os trabalhos da Executiva e o trabalho de base num local gigante com 22 dependências à época e quase dois mil funcionários. Com as estratégias que aprendi de OLT nas regionais anteriores, fui a campo. Caderneta na mão, firmeza e humildade para ouvir os bancários, e começamos o trabalho de base, andar por andar. Foi uma das experiências sindicais que mais me exigiram formação política porque havia muitos colegas de forças políticas distintas, ou seja, havia uma forte oposição à corrente majoritária da direção do Sindicato, a Articulação Sindical/CUT. Como eu mapeava tudo, me lembro que eram perto de uns 40 militantes de oposição, parte mais radicalizada, parte com mais diálogo. Tratei logo de organizar uma militância de no mínimo uns 40 colegas que apoiavam o nosso trabalho no local. Foram tempos nos quais os bancários se acostumaram a participar de muitas reuniões com posições diferentes, história do movimento, definições de táticas e estratégias para lutar por nossos direitos. Eu acho que nunca estudei tanto em minha vida (quer dizer, depois estudei do mesmo tanto na direção da Cassi). Ao voltar da base, já tratava de estudar mais ainda os temas que discutíamos e lia e escrevia e pesquisava e conversava com os dirigentes mais experientes etc. O debate ser bem feito no São João era fundamental para qualquer definição política do movimento porque a proximidade com o Auditório Azul no Martinelli e com a quadra dos bancários na Tabatinguera fazia com que a maior parte de uma reunião de base fosse oriunda de complexos como o São João. Ainda me lembro de dezenas de colegas do período, da oposição e próximos a nós. Muitos são amigos até hoje. Eu sou muito grato ao fato de ter havido tanto pensamento e posição política diferente no local onde eu era responsável. Me fez crescer como dirigente e como ser humano. Acredito que fizemos um trabalho honesto e ético naquele complexo do BB. Ganhamos assembleias importantes no período, com debates respeitosos entre os diferentes. Não ir para o TST em 2004 foi uma das assembleias marcantes em minha vida. Havíamos feito intensamente esse debate com as bases no BB, dos prejuízos que isso nos causaria. A decisão foi apertada e a contagem foi por urnas. Mais de mil votantes. Ganhamos por cerca de 100 votos. Praticamente o único sindicato no país que votou contra a ida ao TST naquele período de longa greve de um mês. Enfim, a democracia e a política são fundamentais em nossas vidas. Eu sempre dizia nas reuniões que os bancários não deveriam votar nos colegas por serem seus conhecidos; deveriam votar nas propostas e nas consequências delas. Vejam o que deu parte grande de nossos colegas da ativa e aposentados votarem no inumano que chegou ao poder por fraudes em 2018. O voto sempre terá consequências.

- ME LEMBRO de algumas posições políticas que tive e que foram derrotadas no movimento sindical. Entendo que isso faz parte da política e da democracia. Uma vez, houve uma assembleia específica do Banco do Brasil na base de nosso Sindicato para decidir sobre as regras da PLR. A direção do banco e a direção do movimento estão sempre disputando suas teses e suas preferências em relação às formas de distribuição dos recursos apartados para o pagamento de lucros e resultados. A direção do banco tem preferência por alocar mais recursos para o topo da pirâmide, os gestores e setores de confiança deles; a direção do movimento busca equalizar o máximo possível a distribuição dos recursos para o conjunto dos trabalhadores, sem excluir ninguém, por entender que todos contribuíram para a produção daquele resultado. Para vocês terem uma ideia do que estamos falando, antes de 2003, do governo do PT e da assinatura de Acordo de PLR com a confederação da CUT, a direção do banco distribuiu recursos a título de PLR por diversos semestres entre 1998 e 2002 excluindo dependências de receber, não pagando nada para milhares de bancários e a diferença entre o que se pagava para os altos executivos e os escriturários era absurda. Só com a greve de 2003 é que os funcionários do BB passaram a receber PLR com regras contratadas com a CNB/CUT, sem excluir ninguém e com regras claras a todos. Ia contando sobre uma assembleia de PLR em que fiz a defesa de rejeição da proposta e a maioria foi favorável a ela. A direção do banco sempre teve birra com funcionários mais antigos de casa. Toda negociação e propostas patronais sempre queriam favorecer gente nova e deixar de lado os mais antigos. Foi assim que estourou a greve de 2003, quando a direção propôs índice de 6,6% mais duas letras de antiguidade, prejudicando os colegas das letras E11 e E12, que teriam reajustes menores. O banco propôs que a regra de PLR seria não pagar os escriturários e caixas na parte relativa aos salários de acordo com o que cada um ganhava. Propôs pagar a média da função (E6), pois não queria pagar mais aos caixas e escriturários antigos (sabemos que esse segmento sempre foi vanguarda do movimento). A estratégia tinha uma lógica, puxar para o lado do banco os funcionários novos. Ao fim das negociações, eu não concordei com isso. Meus companheiros da direção ficaram divididos, mas acabei ficando sozinho porque existe uma lógica pragmática em final de negociações coletivas. Eu entendo isso. Pedi licença aos companheiros para me posicionar contrário, porque a questão me incomodava muito. Na assembleia fiz a fala explicando que isso era uma disputa ideológica por parte da direção do banco e que deveríamos forçar mais para retirar esse detalhe do item de porcentagem do salário (individual ou a média E6). Outra pessoa defendeu que era pegar ou largar, não me lembro se dirigente ou bancário de base. A assembleia aprovou a proposta de PLR. A vida seguiu. Mas não tenho o que reclamar. Ao longo dos anos, nós melhoramos muito a PLR do BB para os bancários e eu tive participação importante nisso, em sempre puxar parte substancial do montante apartado para a base da pirâmide, para as funções básicas e médias de carreira.

São muitas lembranças que temos sobre a importância de permitir o debate de ideias nas definições políticas no movimento sindical e político, nas mais diversas instâncias da sociedade humana.

Hoje, vivemos um dos piores momentos da história da luta de classes no Brasil. O mal chegou ao poder e estamos sendo destruídos, tudo, os direitos civis, sociais e políticos. 

Temos que construir unidade nas representações da classe trabalhadora para enfrentarmos as representações daqueles que estão no poder e representam a classe patronal, representam os donos de todos os meios de produção e que avançam para uma exploração cada vez maior da imensa maioria do povo.

William


Post Scriptum:

Capítulo 1, ler aqui.
Capítulo 2, ler aqui.
Capítulo 3, ler aqui.

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