terça-feira, 19 de maio de 2020

190520 (d.C.) - Diário e reflexões



Refeição Cultural

"Ontem

Até hoje perplexo
ante o que murchou
e não eram pétalas.

De como este banco
não reteve forma,
cor ou lembrança.

Nem esta árvore
balança o galho
que balançava.

Tudo foi breve
e definitivo.
Eis está gravado

não no ar, em mim,
que por minha vez,
escrevo, dissipo." 

(A Rosa do Povo, 1945, CDA)


Hoje é dia 19 do mês de maio posterior à pandemia do novo coronavírus (ano 1?). Essa invenção de calendário é um treco interessante por parte dos homo sapiens. As definições são sempre arbitrárias. Nos dias que correm aqui no Ocidente, temos em vigor o calendário gregoriano, que substituiu o juliano. Estamos no ano de 2.020. Pelo calendário do judaísmo, estamos no ano 5.780. 

Calendário é um invento tão arbitrário que poderíamos estar no ano 5 bilhões e alguma coisa, já que o planeta Terra tem essa idade e vem fazendo seus movimentos de rotação e translação e dando voltas na órbita do Sol durante esses bilhões de anos aí. Hoje poderia ser dia 19 de maio do ano da graça do Big Bang de 5.000.000.001, o 1 ficaria por conta da nova realidade humana após a Covid-19 (arbitrário também, mas... e daí?).

Neste momento em que escrevo, estão contabilizados 321.999 mortos pelo vírus Covid-19, que já contagiou 4.876.906 humanos. De cerca de 200 países do mundo, o que eu vivo é praticamente o único no qual o governo central, presidido por um monstro inumano, atua de forma inversa no combate à pandemia mundial em relação ao que preconiza a OMS: o isolamento social e a quarentena para evitar a velocidade de contaminação das pessoas, o colapso dos sistemas de saúde e a morte de multidões de vítimas sem atendimento médico. 

Vivo num país jabuticaba, com um povo mais bárbaro que os outros. Os monstros no poder pretendem praticar uma forma de eugenia, eliminando pela pandemia multidões de pobres e idosos e parte das vítimas são tão ignorantes e bárbaras que são manipuladas pelos sistemas de ideologia vigentes na atualidade: líderes de religiões com grande facilidade de retórica e sistemas de comunicação que permitem acesso irrestrito a cada indivíduo o tempo integral de sua vida, redes sociais.

Mudando de assunto, afinal de contas, se seguir descrevendo essas desgraças, minha pressão arterial subirá mais ainda e meu corpo vai acelerar a destruição interna dos órgãos que me fazem existir...

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Abri a postagem com um poema de Drummond: "Ontem". 

Antes gostava de motos, ouvia muito mais música que hoje, queria ir a lugares e fazer um monte de coisas. Fiz a vida seguir adiante perseguindo objetivos inventados justamente para seguir caminhando, mesmo sabendo que não há caminhos e que somos nós que fazemos as trilhas, as veredas, as jornadas. O caminho é mais importante do que o fim dele, os sábios apontam isso faz tempo.

Neste momento de minha vida, tá tudo esquisito. Na minha e na de milhões de pessoas. Tá difícil definir objetivos a perseguir, definir metas que façam valer a pena o existir diário. Se o existir não for uma jornada, uma vereda que leve a pessoa a algum lugar, tudo perde o sentido, a motivação. Isso não é uma contradição com o que disse no parágrafo anterior. Se o topo do Himalaia é o sonho, fazer as montanhas brasileiras poderia ser uma realidade de caminhos felizes: Monte Roraima, Pico da Neblina, Pico da Bandeira, Pedra da Mina. 

Se eu olhar para trás, verei claramente que num momento defini que queria isso ou aquilo, que iria fazer isso ou aquilo, e tudo passou a fazer sentido, as dificuldades eram apenas etapas difíceis do caminho. Amassar barata na cara em barracos que morei, quebrar concreto e mexer com encanamento com fezes dos outros, furar latas de palmito podre, sofrer e chorar por uma humilhação ou outra, uma frustração, uma perda... enfim, quando se tem metas traçadas, e firmeza de propósito, a gente aguenta o peso do mundo duro.

Acho que está faltando algo que me faça aguentar suportar a existência do mal, suportar que parte de meus familiares e gente que eu conheço são bárbaros apoiadores do bolsonarismo, suportar as fragilidades que temos por sermos animais humanos, frágeis como uma flor que desabrocha ao Sol ou como um filhote indefeso que acaba de nascer. Somos tão frágeis que uma bosta de um vírus põe em risco nossa espécie e pode nos matar em dois ou três dias. 

Passei a vida inventando objetivos e perseguindo eles para fazer valer a pena estar vivo neste mundo duro. Durante umas duas décadas, foram objetivos pessoais que me moveram. Durante outras duas décadas, foram objetivos coletivos. Minha vida de representação da classe trabalhadora é mais conhecida de meus amigos atuais. Foram anos de dedicação, ética sindical e lutas solidárias.

Paraquedismo, me enfiar em cavernas, me pendurar em cachoeiras, ter uma Sete Galo (Honda 750 four), acampar, pegar estrada, fazer projetos de grandes viagens (que não fiz), ter uma casa própria; sonhos inventados que faziam os dias valerem a pena como uma jornada, a vida que era vida no dia a dia. Esses foram meus tempos antes do movimento sindical. 

A vida tinha uma lógica que fazia a gente suportar as coisas. Quando você conseguia uma boa moto, lá na frente você se via tendo uma Harley Davidson. Se já conhecia paisagens legais de meu mundo, algumas que fossem, ainda tinham muitas aqui e acolá para conhecer. Eu sonhava com o Himalaia, o Grand Canyon. Sonhava fazer mil quilômetros no Caminho de Santiago de Compostela. 

"Tudo foi breve
e definitivo.
Eis está gravado

não no ar, em mim,
que por minha vez,
escrevo, dissipo."


Engraçado. As coisas já haviam mudado antes da Covid-19. Eu mudei. A gente muda o tempo todo. Somos hoje o resultado de ontem, como disse o professor Antonio Candido.

Ontem, já não via mais sentido ter uma Harley Davidson. Me questionava se pegava a estrada ou não para fazer o Caminho de Santiago. O Grand Canyon se tornou algo indigesto pelo ser que sou hoje. O Himalaia, na minha condição atual aos 51, é algo tão distante... mesmo outra montanha, pois eu era apaixonado por montanhas, natureza, rios, lagos, matas.

Que temos pro momento? Minha pressão descontrolada... Sensações estranhas nas entranhas que podem ser qualquer coisa, até tristeza, chateação... Ter moto e um cretino passar por cima da gente por estar olhando celular... 

Estou nas leituras, mas às vezes sinto que é um ritual de autoengano. Não acho que vou encontrar paz em leitura alguma. Mas sigo lendo com disciplina. Vamos procurando até onde for possível.

William
Um leitor

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